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o compadrio na primeira metade do século XVIII (Minas Gerais)

Moacir Rodrigo de Castro Maia1

Os ritos de iniciação e purificação são comuns a várias religiões. No cristianismo, por exemplo, a passagem bíblica do batismo de Jesus Cristo nas águas do rio Jordão tornou-se referência para os cristãos, havendo alusões a essa prática nos “manuscritos do mar Morto”. O batismo, principal sacramento ligado à conversão do adulto, significou, a partir do século III, a libertação do pecado original, a aceitação da fé católica e o ingresso na vida cristã.2

Nesses dois mil anos, o significado teológico do batismo foi elaborado e transformado. Os termos padrinho e madrinha apareceram no século III, sugerindo que essas personagens existiam anteriormente. No entanto, foi no século IX que a Igreja Católica definiu a função do parentesco ritual no batismo e proibiu pais de se tornarem padrinhos dos filhos.3 Sendo fiadores,

diante de Deus, da fé do afilhado, o celebrante do ritual deveria informar aos padrinhos que eles se tornavam pais espirituais do batizado.

Segundo Stephen Gudeman, essa proibição aos pais viria da pressão e constatação, pelo clero, das práticas sociais de convidar outros indivíduos para patrocinador do ritual e, conseqüentemente, alargar o número de pessoas envolvidas.4 O ato de apadrinhar tornava-se,

entre a população, um instrumento socializador, ampliando ou reforçando laços sociais. A Igreja incorporou, pois, a prática costumeira das camadas populares às suas determinações. Embora essa nova diretriz estivesse amparada nas vivências de leigos e em suas estratégias de alianças com outros indivíduos fora do núcleo familiar básico, ela não contrariava as noções de teologia cristã, que distinguem os laços como naturais, originados do intercurso carnal – consanguíneo ou por aliança – e os laços espirituais, nascidos da recepção do batismo.

Teologicamente, com o batismo, a criança nascida de uma relação carnal, biológica , seria libertada do pecado original e os padrinhos se tornariam os “segundos pais”, fiadores de sua aceitação da fé cristã. Dessa forma, o parentesco ritual era investido de caráter sagrado e superior ao parentesco natural. Encontrava-se, nas leis cristãs, a justificação da proibição de os pais biológicos serem também pais espirituais.

Portanto, o ato batismal institucionalizava dois sistemas sociais: o apadrinhamento, a relação entre afilhado e padrinhos; e o compadrio, que ligava os pais àqueles escolhidos para

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segurar a criança na celebração do batismo e serem os protetores do batizando.

Com o movimento da Contra-Reforma, a Igreja quinhentista promoveu outras diretrizes para o sacramento e novas responsabilidades e deveres sociais foram acrescidos aos anteriores. Aos padrinhos, a partir de então, cabia a responsabilidade da formação moral e religiosa do afilhado e, por serem parentes espirituais, estavam impedidos de casar e de manter relações sexuais com os participantes do rito.

O Concílio de Trento (1545-1563) determinou a obrigatoriedade da administração do sacramento a todos os recém-nascidos, visando maior controle da população e de suas práticas religiosas. Portanto, todas as paróquias deveriam manter livros para registrar os batismos, bem como casamentos e óbitos, buscando a constituição de um aparato burocrático que pudesse informar sobre os ciclos de vida de cada indivíduo. O batismo era a porta principal de entrada na vida cristã: purgar o pecado original significava a libertação espiritual e a igualdade na comunidade de fiéis. Sendo o primeiro sacramento, esse ritual foi amplamente administrado e desejado, pois abria a porta para os demais sacramentos da Igreja.

Entretanto, o rito de iniciação ultrapassava o caráter religioso e envolvia em novas relações sociais os que estavam ligados pelo parentesco espiritual. “Ao contrário do parentesco consangüíneo, o ‘espiritual’ é fruto de uma escolha.”5 Ademais, diferentemente do matrimônio,

que também era voluntário, as relações estabelecidas pelo batismo, o compadrio e o apadrinhamento, não traziam riscos ao patrimônio familiar.

Além de significar a participação na comunidade cristã, libertação e proteção espiritual, o ato batismal possibilitava a eleição de indivíduos com quem se gostaria de estreitar relações e de fortalecer o convívio. Os escolhidos para padrinho e madrinha deveriam ser fiéis, sendo que o padrinho deveria ter mais de 14 anos e a madrinha mais de 12, idades necessárias para se habilitar ao matrimônio – o que representaria a entrada na vida adulta. Essas exigências, principalmente a de ser batizado, eram essenciais para a função religiosa a ser assumida, mas a Igreja não determinava o estatuto social dos padrinhos. No entanto, a própria definição teológica do parentesco ritual, laço superior ou mais elevado do que o laço carnal, sugeria que o convite fosse feito a pessoas importantes para o círculo social da família ou mesmo a pessoas distinguidas pela sociedade.6

Segundo Stephen Gudeman e Stuart Schwartz, em várias culturas os possíveis benefícios advindos desse ritual eram medidos pela família da criança. Confirma essa afirmação o fato de os padrinhos, em várias sociedades, serem “quase sempre de status igual, ou mais elevado que o de seus afilhados”.7 A eleição do parentesco ritual, mesmo tendo um significado teologicamente

superior, era orientada muito mais pelas relações sociais mantidas do que por motivos religiosos.

Um padrinho e um afilhado são sempre algo mais do que parentes espirituais. São atores cuja relação total inclui características “extra-eclesiásticas” Se o padrinho e a criança fossem confinados apenas ao domínio da Igreja, o status social de cada um seria irrelevante. No entanto é tarefa precisamente do padrinho estender a religião a novos membros e trazê-la para fora do contexto de momentos e lugares estritamente religiosos.8

Segundo o Dicionário Morais e Silva, “estar compadre de alguém além de significar o que serve de padrinho a um menino também significa estar em boa amizade”.9 Além disso, o termo

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padrinho tinha o sentindo de protetor, aquele que se responsabilizava pelo protegido. No Vocabulário Portuguez e Latino, de Rafael Bluteau (1712), encontramos o mesmo sentido, reforçando as ideias do padrinho como defensor, patrocinador e protetor.10 Portanto, o

apadrinhamento era um ato com pluralidade de sentidos e de significados. Revela a existência de um círculo relacional, em que se pretende reforçar e estreitar os laços, ou um círculo social de que se pretende fazer parte. Nessas duas opções, colocam-se tanto o desejo dos pais dos afilhados – ou dos próprios afilhados, no caso do batismo de adultos –, quanto o desejo dos padrinhos, ou seja, escolher e aceitar ser escolhido. O compadrio é, pois, uma relação na qual grupos sociais interagem, fazendo alianças e se tornando parentes rituais.

As relações de compadrio e apadrinhamento tiveram grande importância nas sociedades do Antigo Regime, tanto na península Ibérica, na Idade Moderna, quanto nas colônias europeias da América.11 O termo usado na América espanhola no século XVIII, compadrado, era derivado do

compadrazgo e significava o ato de se tornarem compadres no momento do batismo cristão. Mafalda Soares da Cunha explica que

Apadrinhar alguém supunha a criação de um conjunto de obrigações morais recíprocas. As que eram cometidas aos padrinhos eram sacralizadas e fixadas pelos próprios rituais religiosos. O laço assim criado era perene e indissolúvel, o que justifica a existência de um leque razoavelmente aberto de expectativas sobre os benefícios, presentes ou futuros, a obter do vínculo parafamiliar que assim se gerava. Nesse sentido, pode, e deve, ser tomado como um importante acto de investimento interpessoal.12

É possível entender os vínculos de compadrio e apadrinhamento como relações de amizade desiguais, nas quais dar e retribuir eram obrigações dos atores envolvidos. Os padrinhos estariam, consequentemente, no polo dominante, como benfeitores, os pais e a criança, no polo oposto, como beneficiados. O mesmo ocorria no caso dos adultos batizados e seus padrinhos. As atitudes esperadas do benfeitor eram de liberalidade e caridade, enquanto no outro pólo eram esperados o sentimento de gratidão e a sua realização pela prestação de serviço.13

Constituía-se o compadrio, portanto, um elo importante das sociabilidades comunitárias. No entanto, a relação de reciprocidade ultrapassava o sentido de doação meramente material ou mesmo ligada apenas ao momento do ato batismal. Assim, a reciprocidade era marcada por visitas, constante convívio, festas, cuidados no momento de doença e apoio nas necessidades da vida colonial, recurso fundamental em nova terra. O compadrio e o apadrinhamento também produziam e reproduziam as relações hierarquizadas de Antigo Regime: de um lado o padrinho e do outro a família e o afilhado, hierarquicamente posicionados.

Para as elites, aceitar tornar-se compadre, especialmente de pessoas com status social inferior, poderia representar a ampliação de sua clientela e, dessa forma, a irradiação do seu poder.

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O compadrio e apadrinhamento dos inocentes escravos: a

importância dos laços rituais para a sociedade colonial

mineira

No projeto de colonização do Império Português, os escravizados foram integrados à sociedade colonial especialmente pela sua admissão como novos cristãos. A passagem pelo batismo marcaria a entrada na comunidade, como símbolo de conversão e subordinação ao Estado Cristão e a seu senhorio. Na conversão e no controle de diferentes povos e etnias, o Catolicismo foi recebido, ressignificado e apropriado pelos cativos de forma ativa e criativa.

A escravidão impunha limites à ação do indivíduo cativo e esses obstáculos apareciam claramente na constituição de laços familiares, como destacaram diversos estudiosos. Nos povoados mineradores, especialmente na Leal Vila de Nossa Senhora do Carmo (atual Mariana), esses limites no estabelecimento de relações de parentesco são evidenciados pelo pequeno número de matrimônios, reflexo especial da política senhorial, e pelo acentuado desequilíbrio sexual das povoações com forte atividade mineradora nas primeiras décadas do século XVIII.

Em uma sociedade em formação, como era a interiorana Capitania de Minas Gerais, o batismo representava a grande possibilidade de estreitamento de laços e, em outras palavras, fazer parte dos grupos estabelecidos da comunidade. Nesse sentido, o batismo e os laços que ele gerava tinham como propósito o enraizamento social, a utilização das regras comunitárias de sobrevivência e a organização dos indivíduos e de suas redes relacionais. Como o sacramento mais disseminado e obrigatório no passado colonial, havia constante aprendizado e assimilação desse ritual do mundo cristão, tanto para aqueles que nasciam em território do Império Português, quanto para os indivíduos que nele se estabeleciam. Os que mais vivenciaram e circularam pelo batismo cristão foram os africanos, homens e mulheres que, se não fossem batizados, deveriam sê-lo assim que estivessem estabelecidos nos domínios portugueses. Dessa forma, homens e mulheres de diferentes etnias aprenderam, assimilaram e se utilizaram desses laços parentais. Laços que, no cativeiro americano, ganharam significado em suas vidas, pelas dificuldades de criação de outros vínculos, como os matrimoniais, que dependiam da aceitação dos senhores e da possibilidade aberta ao pagamento das exigências para o enlace.

Além disso, após o ritual do batismo, os contatos entre os compadres, padrinhos e afilhados se perpetuavam por toda a vida. Era comun o cuidado dos padrinhos com as obrigações religiosas do afilhado, com o encaminhamento para o aprendizado de algum ofício, bem como com presentes e verbas testamentárias deixadas, ao final da vida, para o afilhado. Especialmente para os que se mostravam obedientes, respeitosos e que mantinham bom convívio com seus protetores.

A historiadora Ida Lewkowicz aponta especialmente para uma parcela de homens e mulheres libertos, em grande parte africanos que escreveram suas últimas vontades e ressaltaram a preocupação e o cuidado com seus afilhados ao longo dos anos setecentos, o que reflete como muitos escravos e ex-escravos valorizavam o compadrio e o apadrinhamento:

TERMO DE MARIANA | História e Documentação 39 amigos e antigos senhores. Os afilhados, se não fossem contemplados com a totalidade do patrimônio dos padrinhos, recebiam quantias significativas, pois comumente conviviam intimamente com seus benfeitores.14

Neste estudo, apresentamos várias faces do compadrio e como ele foi apropriado pelos moradores da Vila do Carmo. Tomamos os batizados cujas mães viviam em cativeiro. Assim , seus pequenos infantes nasciam com as marcas da escravidão. Acompanhamos as atas batismais da matriz da Vila e outros corpos documentais para observar comportamentos dos habitantes negros e de seus distintos companheiros em Minas Gerais entre 1715 e 1750, período-chave da constituição e enraizamento das populações e, de forma marcante, da escravidão nos cenários mineiros.

A paisagem das vilas mineiras: as mães escravas e seus