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Edilidade e construção do espaço urbano no período colonial

Diogo Fonseca Borsoi1

Sérgio da Mata2

É consensual na historiografia sobre Minas Gerais a assertiva de que seu processo de formação social assumiu um caráter majoritariamente urbano. Porém, de forma geral, a urbanização de tal região tem sido compreendida como fator coadjuvante frente a temáticas que privilegiam aspectos políticos e econômicos, sendo pouco numerosas as pesquisas que têm como interesse principal a formação de núcleos urbanos em seus aspectos propriamente morfológicos.

Nessa perspectiva, constata-se que as obras de referência sobre o assunto foram produzidas por disciplinas afins no campo dos estudos urbanos, como arquitetura e geografia, enquanto a participação de historiadores permaneceu e permanece muito modesta. O estudo da literatura a respeito revela a predominância de análises que, em sua maior parte, tratam os núcleos urbanos coloniais a partir de uma perspectiva que se poderia chamar de à vol d‘oiseau, na qual são eclipsados seus usos, conflitos e apropriações. Isso se deve, em grande parte, ao privilégio dado à documentação cartográfica e às fontes primárias oriundas do Arquivo Histórico Ultramarino, produzindo-se, assim, interpretações focadas nas relações entre metrópole e colônia, nas quais os engenheiros-militares portugueses ganham destaque.

Talvez a obra que melhor exemplifique essa linha de pesquisa é o estudo levado a cabo por Roberta Max Delson, Novas vilas para o Brasil-colônia3. Para Delson, a Coroa portuguesa,

na retaguarda da iniciativa privada de colonização do interior, impôs sua autoridade através da implantação de cidades rigorosamente planejadas em meio a áreas remotas da Colônia. Sua obra apoia-se predominantemente em uma documentação cartográfica, bem como em ordenações e cartas da Coroa portuguesa com as várias partes de sua colônia americana. No estudo de Delson, as vilas e cidades representadas pela cartografia fornecem uma imagem estática desses núcleos, numa visão panorâmica em que os atores sociais quase não aparecem. Isso se confirma para o caso de Minas Gerais. O antigo arraial do Ribeirão do Carmo, atual Mariana, seria o exemplo típico do projeto lusitano de ordenamento espacial precariamente ocupado e, ao mesmo tempo, a expressão urbanística de um projeto de consolidação de seu poder na região através da implantação de um espaço geometricamente calculado.

Em trabalhos mais recentes, como os de Cláudia Damasceno da Fonseca4 e de Rodrigo

matiza as conclusões da última, mostrando que há uma diferença entre o plano ideal (pensado por Alpoim) e o real, efetivamente implantado na cidade. Bastos, por sua vez, argumenta que a implantação de povoações em Minas foi regida por princípios de decoro. Ambos, porém, ancoram suas análises na cartografia e em ordenações lusitanas, e, salvo por exceções, não contemplam a dinâmica de produção espacial das vilas e Cidade do período.

As obras citadas estão inseridas em uma discussão já antiga que questiona se os núcleos urbanos coloniais foram regidos ou não por algum ordenamento e/ou planejamento. Essa discussão remonta à década de 1930, com o trabalho de Sérgio Buarque de Holanda6, que

utiliza o termo “desleixo”7 para se referir aos núcleos implantados na América lusitana em

comparação com os da América espanhola. Para o caso de Minas Gerais, foi cunhada a expressão “desenvolvimento espontâneo” 8 por Sylvio de Vasconcellos.

Em meio a esse debate, subjazem dois conceitos importantes que norteiam os trabalhos em questão: a noção de regularidade, compreendida como a “geometria uniforme no traçado retilíneo de arruamentos e praças”9, e, por oposição, a noção de irregularidade para os núcleos

que não seriam uniformes e nem obedeceriam a um planejamento racional. Tais conceitos, que também aparecem sob a forma de termos como ordenado/desordenado e planejado/ espontâneo, direcionam o interesse do pesquisador para os núcleos ou parte dos núcleos com algum plano prévio, descartando ou subvalorizando os demais, considerados caóticos. Essa rígida dicotomia tem sido revista em trabalhos recentes. Nestor Goulart Reis Filho propôs o conceito de regularidade científica10 para a formação dos núcleos urbanos em Minas Gerais. Para ele, a

noção de regularidade não significaria apenas rigor geométrico, mas também, poderia ser compreendida em um sentido de “repetições regulares”, que consistiriam na “existência de repetições de determinadas características” na produção do espaço urbano mineiro.

Nesse sentido, Nestor Goulart nos fornece uma nova chave interpretativa para o estudo dos núcleos urbanos setecentistas. No caso de Mariana, as reformas promovidas pela Coroa portuguesa e encabeçadas pelo brigadeiro Alpoim seriam apenas um agente frente a outros que, igualmente, intervieram no espaço urbano dos setecentos, atuando não por projetos prévios, mas por uma prática11 de produção espacial norteada pela noção de regularidade

sugerida por Reis Filho.

Nessa perspectiva, a Câmara de Mariana foi agente de destaque na conformação do espaço urbano. Em seu arquivo é possível encontrar séries documentais interessantes sobre suas atividades, que tiveram, por assim dizer, um “impacto urbanístico”. Os livros de Posturas, Acórdãos e Editais, por exemplo, são ricos em informações sobre práticas de produção e administração do núcleo. Uma dessas práticas é a gestão da sesmaria concedida ao Senado pela Coroa portuguesa no momento da elevação do arraial ao posto de vila.12 A sesmaria, bem

como os seus arredores, eram divididos em lotes ou foros por meio de contratos enfitêuticos firmados com particulares. O documento13 que apresentamos a seguir descreve de forma

detalhada as obrigações que o citadino deveria cumprir caso quisesse se instalar no patrimônio da Câmara.

Nesse edital, podemos ainda perceber que a preocupação da Câmara está focada em três pontos principais: a) cadastro e a medição dos foros; b) o controle do que deve ser feito e construído com os foros cedidos; c) fiscalização do pagamento de taxas, vendas ou arrendamento

TERMO DE MARIANA | História e Documentação 199

dos lotes. Na prática, notam-se dificuldades por parte da Câmara para gerir as terras que lhe pertencem, visto que há repetitivos editais sobre o mesmo tema. Em 1744, foi apregoado que

[...] todos os moradores desta Vila que por quanto há nelas algumas pessoas que tem aforado terras no pasto da olaria sem estarem tapadas nem casas levantadas e sem de algumas vezes darem-se por ignorar terem-se aforado a outras pessoas. Mandamos que toda a pessoa que tiver aforado terras na dita paragem levantem nelas casas dentro de um mês com pena de que não o fazendo ficarem [por] devolutas para quem as pedir[...]14

Uma segunda preocupação por parte dos membros do Senado dizia respeito à fiscalização das construções a serem feitas no espaço em questão. Em 1751, os oficiais da Câmara ordenam aos moradores da cidade e seus arredores que

[...] não metam esteios na frontaria das ruas casas nem abram janelas, e portas nem [hinda] nas paredes dos quintais façam obra alguma sem estar presente o escrivão deste Senado, e o arruador [...] e na mesma pena incorrerão os oficiais de carpinteiro e pedreiro que fizerem as ditas obras sem estar presente o dito escrivão e arruador.15

Ademais, os senadores estavam atentos à manutenção dos traçados do núcleo, coibindo iniciativas que feriam o espaço público. Em 1804, Domingos Fonseca da Costa envia uma petição para a Câmara em que afirma que “da outra parte da ponte do seminário se acham terras devolutas no morro que confronta com a cidade e nelas quer o suplicante aforar vinte e duas braças para nelas edificar uma morada de casas [...]”. Alguns dias depois, o fiscal Manoel Barbosa de Carvalho, depois de avaliar o terreno, declara que

Indo a paragem achei que o suplicante pode aforar as terras que requer fazendo casas no [a rente] do córrego deixando o caminho livre os do o que vai para Santa Anna de largura de vinte palmos bem como na f[r]ente for o bem publico e se quis a [tapuje] acompanhando a[s] calçadas que sobe[m] para o pasto, e sem ofensa do rego que [escrito] para cima.16

Podemos perceber que Carvalho, ao avaliar a possibilidade de aforamento, estabelece medidas precisas para a delimitação do foro, atentando para a conservação do traçado da rua e a preocupação de preservar o alinhamento do terreno com a calçada já existente. Sua avaliação evidencia que mesmo sem projetos prévios, havia por parte dos funcionários da Câmara uma prática de ajustamento dos traçados para organização da cidade.

Os pontos abordados acima nos fornecem boas pistas sobre as práticas concretas de produção e conformação espacial do núcleo urbano de Mariana por parte do Senado da Câmara no período colonial, bem como – e isso é decisivo – sobre as formas por meio das quais a população interagiu com (ou reagiu a) essa instância normatizadora. O aprofundamento do