• Nenhum resultado encontrado

2. A vida religiosa e as devoções da rainha

2.1. A Capela régia e o seu significado

A presença de capelães, de um confessor, de alfaias litúrgicas e de relíquias19

revelam‑nos a existência de uma intensa vida devocional [Quadro I]. Porém, esta realidade apresenta‑se muito obscura. Supomos que dentro da “Casa” da rainha haveria um local onde o Sagrado teria o seu domínio, centrado numa Capela. Esta era o espaço no qual D. Beatriz se recolhia em oração e praticava as suas devoções, e os membros da sua “Casa” assistiam às celebrações litúrgicas. A capela integrava também o pessoal que assegurava o culto, bem como os objetos necessários à sua realização, tanto alfaias litúrgicas como livros. Conhecemos a existência de dois capelães (Domingos Peres e Estêvão Tomé20) e dois clérigos (Gil Martins,

prior de Santa Maria de Sintra, e Gomes Martins, prior de S. Miguel de Sintra21),

que possivelmente asseguravam as celebrações litúrgicas na “Casa” da rainha, aos quais se juntava um confessor, fr. Estêvão da Veiga, frade franciscano22. Todos

prestavam serviços religiosos e exerciam, possivelmente, a função de confidentes e conselheiros.

Quadro I – Alfaias liturgicas e relíquias Tipologia

dos seus componentes

Sub-tipos dos

componentes Descrição Fonte

Alfaias

litúrgicas uso litúrgicoObjetos de

Taça de ouro “com sa sobre copa que tem

a figura do Agnus Dei dentro” Testamento 1358 Cruz de ouro que “tem hũ robi no meio

goou, e quatro safiras nos cabos” Testamento 1358 Cruz de ouro que “tem camafeu figura de

cabeça branca em campo preto, e a redor do camafeu esmeraldas, e robis peque‑ nos, e nos cantos da Cruz dous robis, e duas safiras”

Testamento 1358

19 Veja‑se no Quadro I as fontes arquivísticas. D. Beatriz mandou redigir um testamento no ano de 1349

(Provas de História Genealógica da Casa Real Portuguesa, Liv. II, T. I, p. 341‑343); um codicilo foi redigido por Vasco Eanes, tabelião geral do rei, em 1354 (Provas de História Genealógica da Casa Real Portuguesa, Liv. II, T. I, p. 343‑354); em 1357, o mesmo Vasco Eanes redigiu o segundo testamento da rainha [TT, Gav. 6, m. 1, n.º 4, transcrito por Vanda Lourenço – O testamento da rainha D. Beatriz. Promontoria. 3 (2005), p.  100‑107], e no ano de 1358, em Alenquer, foi redigido o seu último testamento (Provas de História

Genealógica da Casa Real Portuguesa, Liv. II, T. I, p. 343‑354).

20 TT, Colegiada de Santa Cruz do Castelo de Lisboa, m. 2, n.º 59 e 70, respetivamente.

21 TT, Colegiada de S.  Martinho de Sintra, m. 1, n.º 22 e Provas de História Genealógica da Casa Real

Portuguesa, Liv. II, T. I, p. 354, respetivamente.

22 Provas de História Genealógica da Casa Real Portuguesa, Liv. II, T. I, p. 342, 350 e 352. Este franciscano

foi também confessor de D. Afonso IV, juntamente com Fr. Francisco e Fr. Diogo (Rita Costa Gomes –



Relíquias

Relíquias “Que andam no christal” Testamento 1358

Objetos com relíquias

Barril de cristal “longo com o pé de prata

e cheio de relíquias” Testamento 1357

Serpe de prata esmaltada “tem religas,

em hua boceta de cristal” Testamento 1358 Relicário “de tres camtos e tem d’hũ

cabo hu roby no meyogeo e três çaphiras nos camtos e grãaos d’aljouffar grossas e meyãao en el e da outra parte tem ima‑ gem de Santa Maria com seu filho”

Testamento 1357 Relicário com “tres safiras em cada camto

huma, e hum rubim no meio grosso, e quatro graõs de aljôfar, e de cassa huma Magestade de Santa Maria no collo, e esta caza he chea de mui boas Reliquias”

Codicilo 1354 Relicário “tem hũ robi, e com pedras

esmeraldas pequenas de redor del, e em outro circo tem quatro esmeraldas gran‑ des, e quatro grãos de aljôfar grosso”

Testamento 1358 Relicário de camafeu “e he figura de Sam‑

sam esee sobre hũ Leom, e o campo he preto, e o homẽ e Leom brancos, e tem esmeraldas, e robis pequenos da redor”

Testamento 1358

A consorte possuía, na sua Capela, alfaias litúrgicas e outros objetos reli‑ giosos que eram preciosos [Quadro I], como a taça de ouro “com sa sobre copa que tem a figura do Agnus Dei dentro”23, uma cruz24, relíquias e um relicário

de camafeu, com a figura de Sansão sobre um leão, ambos em cor branca, mas com o campo em preto. Esta peça possuía, ainda, esmeraldas e rubis pequenos em redor25. O relicário havia pertencido a D. Maria Afonso, filha bastarda do

rei D. Dinis e casada com D. João Afonso de Lacerda26. É ainda relatada a exis‑

tência de mais dois relicários [Quadro I]: um que D. Beatriz havia recebido de D. Afonso IV, seu marido e um outro cuja descrição é, também ela, bastante pormenorizada27. Quanto ao seu barril de cristal com o pé de prata e que estava

23 Testamento de 1358.

24 “A cruz do ouro” que a rainha legou ao infante D. Fernando, seu neto. 25 Vanda Lourenço Menino – A rainha D. Beatriz…, veja‑se Quadro VII.

26 Sobre D. Maria Afonso, veja‑se José Augusto Pizarro – Linhagens medievais portuguesas. Genealogias e

estratégias (1279‑1325). Vol. I. Porto: Centro de Estudos de Genealogia, Heráldica e História da Família da

Universidade Moderna – Porto, 1999, p. 202‑203.

27 “Tem hũ robi, e com pedras esmeraldas pequenas de redor del, e em outro circo tem quatro esmeraldas



cheio de relíquias, ordenou a rainha que fosse colocado na sua capela28, procu‑

rando transformá‑lo num objeto de devoção comunitária e, simultaneamente, de atração de fiéis que venerariam as relíquias aí guardadas.

Apesar das parcas informações relativas à Capela que a rainha teria na sua “Casa”, parece‑nos evidente a existência de uma vivência religiosa na qual se destaca um desejo de promoção de um culto prestigiante e exemplar em que a oração e a meditação pessoais faziam parte integrante do quotidiano. Não terá sido por mero acaso o investimento feito nas relíquias e respetivos relicários, bem como no grupo de capelães e confessores que acompanharam D. Beatriz. Todos em conjunto demonstram a importância da prática litúrgica no seio da família real. A  Capela representava a exteriorização e o prolongar da sua relação com o sagrado e assumia, simultaneamente, e devido à sua riqueza, uma forma de distinção e identidade social. Estes objetos denotam uma piedade pessoal que se traduzia numa ação cultural e devocional fundamental para a construção da sua imagem como rainha piedosa.