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A infanta D. Beatriz, filha mais nova de D. Sancho IV, o Bravo, rei de Leão e Castela, e de D.  Maria de Molina, nasceu em Toro no ano de 1293. Ainda criança, celebrou‑se o acordo matrimonial com o infante D.  Afonso, sucessor do trono português, aquando da assinatura do tratado de Alcañices, no ano de 1297, quando D. Beatriz teria apenas três ou quatro anos de idade1. O casamento

era, na Idade Média, utilizado como um instrumento para regular relações, criar e consolidar alianças entre reinos, cimentando, deste modo, a política externa2.

Os interesses político‑económicos sobrepunham‑se no momento da escolha dos cônjuges, apartando muitas jovens do seio da sua linhagem para as enviar para os novos reinos.

Foi, assim, após a assinatura do acordo de casamento que a jovem Beatriz veio viver para Portugal. Em terras lusas, esta infanta teria sido criada na corte dionisina pelos seus futuros sogros, D. Dinis e D. Isabel. O tipo de ligação afetiva que existia entre D. Beatriz e a sua sogra era, simultaneamente, também devido à posição social ocupada por ambas, uma relação “semi‑privada” e “semi‑pública”,

* Instituto de Estudos Medievais – FCSH/UNL.

1 Fr. Francisco Brandão – Monarquia Lusitana. Ed. por A. da Silva Rego. Parte V. Lisboa: Imprensa

Nacional‑Casa da Moeda, 1974, fl. 501.

2 Ana Maria Rodrigues – Infantas e rainhas: garantes de paz, pretexto para guerras. In A guerra e a socie‑

dade na Idade Média. VI Jornadas Luso‑Espanholas de Estudos Medievais. Actas. Vol. II. Campo Militar de

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onde os comportamentos se desenrolavam num âmbito social muito próprio. Neste contexto, D.  Isabel terá desempenhado a função de educadora, transmi‑ tindo não só os valores e o comportamento que uma futura rainha devia assumir, mas também os costumes do seu novo país, assim como as tradições familiares3.

Sobre este assunto refere Maria Filomena Andrade que a Rainha Santa proporcio‑ nou aos infantes, seus filhos, e aos bastardos de seu marido, bem como à futura nora uma educação baseada na “aprendizagem dos gestos e orações rituais, bem como do comportamento a ter na igreja e nos seus rituais e celebrações”4.

Como futura consorte, a jovem infanta teria, no entanto, uma educação mais cuidada no sentido que lhe seria útil para acompanhar o seu marido nas funções de governante do reino5. Todavia, não é esta formação que nos leva a escrever

estas linhas, mas sim os ensinamentos religiosos ministrados e assumidos na vida por D.  Beatriz. A  educação feminina compreendia, além da aprendizagem dos trabalhos de costura, de bem falar e estar em sociedade, uma forte componente religiosa e de piedade pessoal, uma vez que uma rainha piedosa podia ser a fonte inspiradora de um verdadeiro e justo poder. Como princesa católica e educada por uma rainha extremamente devota, a formação de D. Beatriz passou certamente pela via religiosa. Neste campo, deverá ter tido o acompanhamento de alguns membros eclesiásticos, dedicando‑se também à leitura de obras de espirituali‑ dade. Estes ensinamentos visavam não só iniciar a jovem Beatriz no catolicismo, mas acima de tudo incutir‑lhe valores essenciais de uma boa mulher e mãe, como fossem a compaixão e o amor maternal6. A principal responsabilidade materna,

que neste caso concreto era desempenhada pela rainha D. Isabel, assegurava os deveres para com Deus, através do respeito das horas de oração, pelas leituras religiosas e restantes boas práticas de devoção. Neste contexto, D. Isabel deve ter ensinado à infanta a leitura dos Livro das Horas com o objetivo de inculcar na jovem o espírito de justiça e pobreza. Todas estas práticas deveriam ser acompa‑ nhadas pela assistência à missa diária juntamente com a rainha. Frei Francisco Brandão7 afirmou que D. Beatriz aprendeu muito bem os bons ensinamentos e

exemplos de sua sogra, apelidando a infanta de “discípula”8 de D. Isabel.

3 Fr. Francisco Brandão – Monarquia Lusitana, VI, fl. 501.

4 Maria Filomena Andrade – Rainha Santa, mãe exemplar. Lisboa: Círculo de Leitores, 2012, p. 114. 5 Veja‑se, George Duby – O modelo cortês. In História das mulheres. Vol. II: A Idade Média. Lisboa: Círculo

de Leitores, 1993, p. 331‑351; María Carmen Pallares Mendez – Las mujeres en la sociedad gallega bajo‑ medieval. In Relaciones de poder, de producción y parentesco en la Edad Media y Moderna. Aproximación

a su estudio. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1990, p. 351‑374; Margaret Wade

Labarge – La mujer en la Edad Media. Trad. esp. San Sebastián: Nerea, 2003.

6 “Las mujeres para quienes la cultura es sólo instrumento de su proprio perfeccionamiento espiritual”

(María Carmen Pallares Mendez – Las mujeres en la sociedad…, p. 356).

7 A mensagem veiculada na Monarquia Lusitana corresponde ao estereótipo das virtudes inerentes à con‑

dição de qualquer rainha.

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Seguindo as palavras daquele autor9, sabemos que D. Beatriz acompanhava

com frequência D.  Isabel nos exercícios de piedade. Ambas assistiam, com as freiras de Santa Clara de Coimbra, aos ofícios e a jovem infanta acompanhava a rainha no refeitório do dito convento onde na cozinha ajudavam a “por as igua‑ rias que a comer as Donas apresentauão ante ellas”10. Sempre que se deslocava a

Coimbra, a rainha era acompanhada pela nora, “sua companheira nestes exercí‑ cios de piedade”11 e praticavam as suas ações com muita humildade.

Todos estes relatos de Fr. Francisco Brandão são imbuídos de carácter apo‑ logético e visavam a glorificação das virtudes de uma consorte que se pretendeu exaltar como uma fiel seguidora da rainha Santa Isabel. Talvez devido ao facto de ter sido educada e criada por D. Isabel, a cronística deixou‑nos uma imagem de D. Beatriz decalcada da mesma, mas sem nunca lhe ser atribuída a profundidade espiritual e a santidade de D. Isabel12. Não consideramos que esta glorificação das

virtudes de D. Beatriz seja somente uma construção de Fr. Francisco Brandão, uma vez que ficaram registadas nas fontes coevas alguns exemplos de uma con‑ sorte conciliadora e fiel seguidora da rainha D. Isabel. Assim, a título de exemplo, na Relaçam da vida da gloriosa Santa Isabel Rainha de Portugal, considerada uma biografia hagiográfica da mulher de D.  Dinis e escrita por alguém muito pró‑ ximo da rainha (uma freira de Santa Clara ou o bispo D. Salvado, seu confessor), D.  Isabel é já considerada “como beata e prepara a canonização que ocorrerá séculos mais tarde”13. Nesta Relaçom é narrado o momento que antecede a morte

de D. Isabel que ficou doente ao chegar à vila alentejana de Estremoz. D. Bea‑ triz foi ter com a sua sogra para a tratar e confortar. Sofrendo de uma maleita e num acesso de febre elevada, D. Isabel teve uma visão de uma senhora vestida de branco que percorria o seu quarto e contou‑a a D. Beatriz, que se encontrava próxima da soberana doente14. Após esta visão, D.  Isabel cerrou os seus olhos

para o sono eterno. Anos mais tarde, após o assassinato de D.  Inês de Castro,

9 Fr. Francisco Brandão – Monarquia Lusitana, VI, fl. 263. 10 Fr. Francisco Brandão – Monarquia Lusitana, VI, fl. 516. 11 Fr. Francisco Brandão – Monarquia Lusitana, VI, fl. 263.

12 Vanda Lourenço Menino – A rainha D. Beatriz e a sua Casa (1293‑1359). Dissertação de Doutoramento

apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Lisboa: 2012, p. 113.

13 Maria Filomena Andrade – “Isabel de Aragão: a construção de uma identidade”, comunicação apresen‑

tada no XIII Colóquio Internacional: La Historia de las mujeres: perspectivas actuales, que se realizou de 19 a 21 de outubro de 2006, em Barcelona, organizado pela Asociación de Investigación de Historia de las

mujeres, p. 5. A sua canonização foi realizada em 1625, pelo Papa Urbano VIII.

14 Monarquia Lusitana, VI, fl. 522. “A memória da exemplaridade da vida de D. Isabel, da santidade da

sua morte e da abundância dos seus milagres, atravessará todo o século XV, incorporando‑se, desta forma, na tradição recordatória da família real a memória dos seus antepassados.” [Elisa Maria Domingues da Costa Carvalho – A morte régia em Portugal na Idade Média. Aspectos rituais e atitudes perante a morte.

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o infante herdeiro D. Pedro revoltou‑se contra o seu pai. A soberana D. Beatriz envidou todos os esforços para promover e restaurar a paz no reino, mas tam‑ bém a ordem pública. Podemos inferir destes relatos a existência de uma ligação estreita entre D. Beatriz e D. Isabel, na qual se exaltavam sempre a conduta moral e as vivências religiosas. Estas características inseriam‑se no propósito de atribuir a D. Isabel a imagem de uma rainha cujas excelentes virtudes éticas e espirituais se prolongavam entre aqueles que a acompanhavam, como era o caso de D. Beatriz. Esta decalcou de sua mentora, a rainha D.  Isabel, atitudes e intervenções para salvaguardar e promover a paz15.