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MEMÓRIA, GÉNERO E PAPÉIS RELIGIOSOS NUMA ALDEIA DO MINHO*

Tiago Pires Marques**

Chegando pela estrada da Póvoa de Varzim, a entrada em Balasar conduz diretamente a uma igreja ostentando uma imagem, em grande dimensão, da Beata Alexandrina Maria da Costa. No adro, onde dois altifalantes reproduzem música religiosa, ergue‑se uma tenda para dar apoio aos enfermos esperados para esse dia. As portas abrem para uma igreja ainda vazia, ornamentada com flores brancas e amarelas. Duas mulheres de cara enrugada e lenço na cabeça limpam o chão, espalhando um cheiro forte de lixívia. Dirijo‑me a uma delas e peço indi‑ cações para chegar a casa da senhora Felismina. Contactara por telefone a sua irmã Alda, que lhe perguntou se gostaria de falar de Alexandrina com “um inves‑ tigador de Lisboa”. Felismina, 97 anos, vinte dos quais passados à cabeceira da “santa”, aceitava ser entrevistada. Aos 6 anos, Felismina fora deixada à guarda da mãe de Alexandrina; e a sua irmã Alda, doze anos mais nova, hoje freira doroteia, passaria igualmente longos períodos na casa da beata, com a mãe e irmã desta. Felismina cresceu na casa destas mulheres, lembrando‑se de Alexandrina antes de esta ficar “amarrada à cama”, como por vezes dizem os seus devotos.

A espiritualidade e as práticas religiosas da beata Alexandrina Maria da Costa (1904‑1955) são revisitadas, neste texto, através da sua evocação por duas mulhe‑

* Este estudo foi realizado no âmbito do projeto de investigação “The Fabric of Mental Health. Medical Power, Secularity, and the Psychotherapeutic Field in Portugal”, com a referência IF/01589/2013/CP1164/ CT0005, financiado por fundos nacionais através da Fundação para a Ciência e Tecnologia.

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res que com ela privaram e que acompanharam de perto o desenvolvimento da devoção à sua amiga. Numa primeira parte, sintetizamos alguns aspetos marcantes da religiosidade de Alexandrina, nomeadamente os que se referem à importância da direção espiritual na construção de uma interioridade religiosa mística. Num segundo momento, analisamos os testemunhos destas excecionais informantes sobre a espiritualidade da beata e dos seus devotos. Depois de termos analisado, noutros locais, a espiritualidade vitimal de Alexandrina e de algumas mulheres suas contemporâneas1, o nosso enfoque deslocar‑se‑á, aqui, para identidades e

práticas religiosas mobilizando a memória da mística, entretanto beatificada (em 2004). Esperamos, desta forma, aferir permanências e transformações, colocando em evidência os aspetos mais duradouros e estruturantes da espiritualidade das “almas vítima”2, mas também as táticas de autonomização das mulheres relativa‑

mente à disciplina clerical.

Esta análise trará para primeiro plano a problemática do género nas relações de mediação religiosa em contextos populares católicos. Veremos, mais concre‑ tamente, que o monopólio masculino da competência sacerdotal criou situações de “carência de bens de salvação”3 – a direção e cura espirituais, e a eucaristia

– que afetaram principalmente as mulheres. Nesta perspetiva, a chamada “espi‑ ritualidade vitimal” justificou relações fortemente assimétricas entre homens e mulheres, enfatizando a ideia de que interioridade “feminina” cristã depende da intervenção de homens competentes (sacerdotes).

Metodologia

Antes de apresentarmos estes casos, importa explicitar alguns aspetos da metodologia utilizada. Este estudo baseia‑se em fontes de natureza diversa: escri‑ tos hagiográficos impressos e em formato digital, disponibilizados em sítios de Internet; observações etnográficas; e entrevistas abertas realizadas às duas infor‑ mantes acima apresentadas. Sobre as operações críticas exigidas pelo primeiro

1 Tiago Pires Marques – De corpo e alma na margem: Catolicismo, santidade e medicina no norte de

Portugal (c.1900‑c.1950). Topoi. Revista de História, v. 13, n. 25 (2012) 147‑167. Veja‑se ainda o caso seme‑ lhante de Carminda, morta nos anos 30. Benjamim Videira – Carminda. Porto: s.n., 1939. Ou ainda o caso, mais conhecido, Maria da Conceição Pinto da Rocha, referido em Maria de Lurdes Rosa – Hagiografia e santidade. In Dicionário de história religiosa de Portugal. Vol. C‑I. Dir. Carlos Moreira Azevedo. Rio de Mouro: Círculo de Leitores, 2000, p. 326‑36, p. 331.

2 Esta expressão encontra‑se em textos autobiográficos e hagiográficos. Ver infra, p. 162 e ss.

3 Jean‑Pierre Albert – Le sang et le ciel. Les saintes mystiques dans le monde chrétien. [S.l.]: Aubier, 1997,

p.  410‑413. Recorro à noção de “bens de salvação”, cunhada por Weber, tal como foi desenvolvida por Pierre Bourdieu na sua teorização do campo religioso. Com efeito, a relação histórica entre a Igreja e os leigos, nas sociedades rurais católicas, configurava a situação genérica descrita por Bourdieu: a instituição religiosa (a Igreja Católica), representada por especialistas autorizados (sacerdotes), detinha o monopólio da gestão dos sacramentos (a “graça institucional”) e da mensagem religiosa. Ver Pierre Bourdieu – Genèse du champ religieux. Revue française de sociologie. 12:3 (1971) 295‑334: 319‑320.

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tipo de fontes remetemos para o nosso primeiro estudo publicado sobre este tema4. As incursões etnográficas consistiram em três visitas a Balasar: em 16 de

março de 2010 (observações), em 4 de março de 2011 (observações e entrevistas gravadas); e em 13 de outubro de 2011 (observações e entrevistas gravadas).

As entrevistas constituem a nossa fonte principal. A  sua análise acautela algumas indicações metodológicas conhecidas no campo da história oral. Em concreto, tomamos em linha de conta o facto de as nossas informantes serem consideradas pela população local depositárias de uma memória relevante para a vida religiosa da comunidade. Felismina, em particular, é regularmente solicitada para “oferecer memórias” sobre a vida da beata Alexandrina. Este estatuto tem duas consequências: a evocação memorial assume um carácter performativo, devendo a sua narrativa ajustar‑se às expectativas da audiência5. Sendo esta com‑

posta por devotos e curiosos, é previsível que tais expectativas se construam entre dois polos, o da confirmação daquilo que é conhecido, e o da revelação de aspetos acessíveis apenas aos íntimos de Alexandrina. E, com efeito, Dona Felismina dis‑ tingue os elementos que “estão nos livros” daqueles que não estão, e de que ela é a única conhecedora. A entrevista assumiu, por essa razão, um estatuto de conversa quase confidencial, com enunciados proferidos em voz baixa e outros classificados como “segredos”6. Por outro lado, a situação desta informante remete para uma

memória vivida. A convivência com Alexandrina no passado deve ser sugerida no presente. Felismina dispõe de uma série de recursos para tornar presente a beata e a sua relação com ela: a representação, em discurso direto, da voz de Alexandrina e dos seus diálogos; a demonstração de um forte envolvimento emocional nas estórias contadas; e a gestualidade evocativa das expressões faciais e corporais da mística. As suas narrativas não podem, por isso, ser analisadas simplesmente como processos de transmissão de informações, mas como um processo de apre‑ sentação atualizada da figura religiosa em questão7.

A memória das nossas informantes é, pois, uma memória social, já que se conforma a expectativas partilhadas e significativas para a comunidade. Como

4 Tiago Pires Marques – De corpo e alma na margem…

5 Paul Ricoeur analisou, de forma magistral, os mecanismos da “memória exercida”, isto é, a memória

enquanto forma de ação, dirigida a um outro, comportando duas dimensões, cognitiva e pragmática. Guardiã da “profundidade do tempo e da distância temporal”, a memória exercida inscreve‑se nos pro‑ cessos sociais como um “presente do passado”. Por outras palavras, o exercício da memória é um modo de provocar efeitos no presente que tem por particularidade a referência autorizada, orientada pelo valor da verdade, a um passado (o “real anterior”). O exercício da memória deve analisar‑se na perspetiva do seu uso (necessariamente social), dos seus bloqueios (patologia) e dos seus abusos (ideologia), Paul Ricoeur –

La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Seuil, 2000, p. 68‑69.

6 Tiago Pires Marques – Caderno de notas das visitas a Balasar. Entrevista a Felismina dos Santos Martins

realizada a 4 de março de 2011.

7 No encalce de Michel de Certeau, Ricoeur refere que uma das ações executadas pela memória exercida é

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tal, o passado é utilizado como recurso de atualização de sentidos na situação presente. Ou seja, o discurso sobre o passado é determinado por aquilo que esse passado pode fazer no presente8. Por outras palavras, os episódios evoca‑

dos transmitem, criam e recriam significados úteis para a situação vivida pelas informantes. Assim, as narrativas, anedotas e emoções suscitadas pela memória de Alexandrina são reveladoras da sua situação presente. Este aspeto torna estas entrevistas particularmente valiosas para a compreensão da sua vida religiosa atual.

Desordem interior e práticas de reparação espiritual

A história da vida de Alexandrina tem sido divulgada através de uma multi‑ plicidade de meios: obras hagiográficas e académicas, sites na Internet e narrativas de devotos. É, pois, quase redundante apresentar mais uma “versão dos factos”, tanto mais que estes se apresentam agrupados na forma esquemática de grandes momentos e fases da vida da mística. Porém, para a análise que se segue, importa ter presentes alguns dados biográficos (ou hagiográficos). Nascida num meio rural e pobre do Baixo Minho, Alexandrina não conheceu o pai, tendo sido criada pela mãe e pela irmã Deolinda. Desde cedo trabalhou no campo e participou nas liturgias católicas da aldeia onde cresceu, Balasar. Uma febre tifoide marcou a sua adolescência, debilitando a sua saúde, até aí vigorosa. Porém, outro aconte‑ cimento seria porventura mais marcante. Aos 14 anos, o seu antigo patrão e dois rapazes da aldeia terão entrado em sua casa com o objetivo de a violar. Para lhes fugir – nas narrativas religiosas, fala‑se em proteger a sua virgindade ou “pureza” – saltou da janela do quarto. Daí resultou uma lesão e uma inflamação crónica da espinal medula, que a levaria definitivamente à cama aos 25 anos. Sofrendo de grandes dores, decidiu oferecer‑se como “alma vítima”, em expiação dos pecados da humanidade. Teve um primeiro diretor espiritual na década de 1930, o padre Mariano Pinho, um jesuíta que a introduziu à “via mística”, familiarizando‑a com figuras tais como Santa Teresa de Ávila, São João da Cruz e Santa Teresa de Lisieux. Nos anos 30, sentiu‑se perseguida pelo Demónio, que combateu com a ajuda do padre Pinho. Chegou à atenção da hierarquia católica, tendo então sido observada por médicos e por uma comissão de teólogos. Na década de 1940, era já uma celebridade local, visitada por numerosos devotos que vinham assistir às manifestações em êxtase da paixão de Jesus, todas as sextas‑feiras, e pedir‑lhe intercessões milagrosas. Em 1943, deixou de comer e beber, apenas ingerindo a

8 Numa obra de referência sobre a memória enquanto objeto de estudo da história, James Fentress e Chris

Wickham deslegitimam a sua pretensão referencial (a memória enquanto portadora de vestígios de um presente passado), defendendo uma abordagem radicalmente pragmática. A memória deve ser estudada nas suas “funções sociais” no presente histórico da sua enunciação. James Fentress; Chris Wickham –

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hóstia consagrada. Teve acompanhamento permanente de um médico católico até à sua morte. As suas memórias e pensamentos, ditados à irmã Deolinda, dão conta da sua adesão à espiritualidade vitimal da época e às grandes referências da via mística católica.

Ainda que a narrativa hagiográfica assim esquematizada apresente uma sequência linear, levando à santificação em vida, certas passagens dos textos, e, sobretudo, alguns testemunhos orais recolhidos dão conta de interpretações conflituantes com a narrativa oficial. Estas brechas na hagiografia constituem uma oportunidade para observar a inserção da figura de Alexandrina na vida religiosa local, à margem da codificação clerical do seu significado. Nas minhas visitas a Balasar, conversei com alguns dos seus habitantes, procurando abordar o tema de Alexandrina. Rapidamente surgiram referências aos boatos, que ainda hoje circulam, de que se tratava de uma bruxa ou de “um corpo aberto”. Ora, alguns estudos históricos e etnográficos ajudam‑nos a compreender estas alusões. José Pedro Paiva identificou a designação de “corpo aberto” em documentos da Inquisição, relativos a julgamentos por bruxaria, remontando ao século XVII. De acordo com o historiador, os “corpos abertos” existiam exclusivamente no litoral norte português, região à qual pertence Balasar. Invariavelmente aplicada a mulheres, esta designação refletia a crença de que estas mulheres estão “aber‑ tas” à possessão pelos mortos, com os quais poderiam comunicar. Considerados detentores de poderes curativos e divinatórios, os “corpos abertos” integravam o sistema terapêutico popular local. Aos olhos do clero, e particularmente da Inquisição, os “corpos abertos” situavam‑se fora da ordem cristã, aproximando‑se perigosamente do mundo demoníaco. As mulheres que entravam nessa categoria eram suspeitas de terem tomado partido pelo Demónio. Podiam, por isso, tornar‑ ‑se bruxas9.

Uma investigação recente sobre os rituais terapêuticos populares na mesma região demonstra o vigor atual destas categorias e da sua integração num sistema terapêutico tradicional. Os seus agentes qualificados têm igualmente a designação de “corpos abertos”, uma categoria comummente atribuída a mulheres (ainda que hoje também a homens). As pessoas incluídas nesta categoria são consideradas particularmente vulneráveis à possessão por espíritos dos “mortos maus” e às influências nefastas das bruxas, os “maus olhados”. Se possuídas ou sob influência, as vítimas entram em crise. Em tal estado, a única forma de a vítima resolver a crise pode ser pela própria transformação em bruxa ou bruxo, caso manifeste poderes de cura ou de adivinhação. Para que um “corpo aberto” se transforme num agente terapêutico, atuando principalmente no campo das doenças do espí‑ rito, é necessário que se submeta à direção de um guia espiritual, normalmente

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um santo. Ora, a região alberga vários santos, reverenciados e temidos pelos seus poderes sobrenaturais10.

Aplicada a Alexandrina, a sua condição de “corpo aberto” significa, pois, a sua condição de particular vulnerabilidade espiritual, que a colocava em perigo de desordem demoníaca. Os testemunhos das nossas informantes permitem carac‑ terizar as condições sociais e biográficas dessa vulnerabilidade, ao mesmo tempo que lançam luz sobre o repertório de práticas de reparação espiritual então dis‑ poníveis. Com efeito, Alexandrina era filha ilegítima, tendo o seu pai constituído outra família e emigrado para o Brasil. A atividade da mãe – parteira, enfermeira, detentora de virtudes curativas – poderá ter contribuído para adensar as suspei‑ tas sobre a integridade moral das suas origens e ambiente familiar. Alexandrina, segundo a sua própria descrição, era, em criança, alegre e impulsiva. Os traços de personalidade que atribuía a si mesma eram então considerados eminente‑ mente masculinos, referindo, por exemplo, que gostava de trepar árvores e que lhe chamavam “maria‑rapaz”. Independentemente da factualidade da tentativa de violação, episódio central da sua biografia, torna‑se clara, na sua narrativa, a oposição repetida às investidas dos jovens da aldeia e uma rejeição veemente da perspetiva do casamento. Sem nenhum suporte masculino, as mulheres da casa de Alexandrina viviam em situação de grande pobreza numa casa que, segundo Felismina, era cobiçada pela família do lado materno. A doença de Alexandrina e sua via mística teriam, nesse sentido, ajudado a assegurar o seu lugar, juntamente com a mãe e a irmã, na casa e na comunidade. Facilitadora de uma integração simbólica, o sentido religioso atribuído à doença justificava igualmente o suporte financeiro dos vizinhos e devotos. (De acordo com Felismina e a Irmã Alda, nos seus últimos anos de vida, Alexandrina ajudou financeiramente membros da família paterna, auxílio que selaria a vitória sobre a vulnerabilidade que marcara a sua juventude.)

A integração pela via religiosa, e especificamente mística, reflete as estratégias devocionais e espirituais de recristianização desenvolvidas a partir do último quartel do século XIX11. Mais concretamente, a vida religiosa de Alexandrina e

das nossas informantes de idade mais avançada evidencia marcas da espirituali‑ dade vitimal, associada às devoções ao Sagrado Coração e à Eucaristia, promovida

10 Miguel de Montenegro – Les Bruxos: Des thérapeutes traditionnelles et leur clientèle au Portugal. Paris:

L’Harmattan, 2005, p. 50‑58; Miguel de Montenegro – Un culte thérapeutique au Portugal. Entre Moise et

Pharaon. Paris: L’Harmattan, 2006, p. 8‑9. Sobre o culto dos santos na região, ver Giordana Charuty – Folie, mariage et mort. Pratiques chrétiennes de la folie en Europe occidentale. Paris: Seuil, 1998, p. 171‑178.

11 Manuel Clemente – A vitalidade religiosa do catolicismo português: do Liberalismo à República. In

Manuel Clemente e António Matos Ferreira (coord.) – História Religiosa de Portugal. Vol. III: Religião e

Secularização. Lisboa: Círculo de Leitores, 2002, p. 108‑115; Richard D. E. Burton – Holy Tears, Holy Blood: Women, Catholicism, and the Culture of Suffering in France, 1840‑1970. Ithaca: Cornell University Press,

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pelos Jesuítas e apoiada pelo Papado a partir da década de 1870. Articulada com uma doutrina anti‑modernista, a espiritualidade vitimal valorizava o sacrifício quotidiano pela redenção do mundo, identificado com o corpo místico de Cristo, sofredor dos “males da modernidade”. O sacrifício significava a identificação com o Cristo sofredor, apoiada na oração, na mortificação e na comunhão regular. Adaptando‑se à capacidade de cada indivíduo, os sacrifícios variavam habitual‑ mente entre o preenchimento de bilhetes de intenções e a prática da caridade. Porém, poderiam tomar a forma de uma dádiva de si próprio em expiação dos pecados da humanidade, e em particular dos pecados dos sacerdotes contra a castidade. Esta espiritualidade, sintetizada na divisa “orar, comungar e sofrer”, foi levada às camadas populares através dos párocos, de congregações religiosas e de novos movimentos eclesiais, tais como o Apostolado da Oração, a Cruzada Eucarística das Crianças e, associação especificamente feminina, as Marias dos Sacrários‑Calvários12.

Ora, o introdutor e principal dinamizador destas três organizações em Portu‑ gal foi o diretor espiritual de Alexandrina, o padre Mariano Pinho. O padre jesuíta foi igualmente o fundador e diretor de várias revistas, com tiragem significativa, visando difundir a prática da comunhão frequente e a devoção mariana ao Sagrado Coração, tais como o Mensageiro de Maria (1905‑1950) e o periódico Cruzada

Eucarística das Crianças (1930‑1953). Enquadrada pelas chamadas “zeladoras”,

geralmente mulheres que se ocupavam da educação religiosa e moral das crianças, a Cruzada Eucarística das Crianças penetrou nos meios rurais do Norte, chegando a localidades pequenas e recuadas dos centros administrativos. Em 1933, ano em que o padre Pinho iniciou a direção espiritual de Alexandrina, a Cruzada inaugu‑ rou um centro em Balasar, entrando ao seu serviço, como zeladoras, a professora primária e Deolinda, irmã de Alexandrina13. Durante essa década, a própria Ale‑

xandrina participou, a seu modo, na Cruzada Eucarística: a sua casa servia de ateliê para o fabrico dos uniformes das crianças (apesar de a muito incomodar o barulho das máquinas de costura e o movimento de pessoas)14. Alexandrina não foi caso

único. Outras jovens mulheres, também doentes e enquadradas espiritualmente pelo Apostolado da Oração ou pela Cruzada Eucarística das Crianças, morreram em Portugal com aura de santidade nas décadas de 1920 e 1930. Algumas eram também dirigidas pelo padre Mariano Pinho15.

12 Tiago Pires Marques – O Apostolado da Oração e a socialização religiosa das camadas populares. In

António Matos Ferreira (Org.) – Religião e cidadania: Protagonistas, motivações e dinâmicas sociais no

contexto. Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa, 2011, p. 455‑467.

13 In http://alexandrinabalasar.free.fr/cruzada_primeiros_anos.htm. Consultado em 19/5/2011.

14 Maria da Conceição Proença [professora primária em Balasar], “Testemunho do processo informativo

diocesano”. In: http://alexandrinabalasar.free.fr/alex_test_17_saosinha.htm. Consultado em 19/07/2016.

15 O movimento devocional a Alexandrina na Internet refere os casos de Beatriz Marques Pinheiro e de

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A imagética da reabilitação da ordem espiritual de Alexandrina construiu‑se em torno do tema da reparação eucarística. Por exemplo, narrando o desenlace da crise diabólica que acometeu Alexandrina em 1937, o padre Mariano Pinho referia que começara por interrogar o Demónio, em latim, sobre a sua identi‑ dade. “Sou Satanás e odeio‑te”, ter‑lhe‑á respondido pela boca de Alexandrina. De seguida, o padre disse Missa no quarto da doente, oferecendo‑lhe, sem previa‑ mente a avisar, “o santo Sacrifício, em primeira intenção, para que Nosso Senhor a livrasse daquelas vexações diabólicas”16. No fim da Missa, Alexandrina ter‑lhe‑á

declarado que Nosso Senhor lhe dissera não poder atender ao seu pedido, pois “precisa destes meus sofrimentos para acudir aos pecadores”. O sacerdote tentou, então, uma nova estratégia, instando‑a a aceitar que Nosso Senhor substituísse o sofrimento causado pelos demónios por um outro. Alexandrina recusou, entre‑