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DE JESUS DE AVEIRO

3. Corpo e alma

A antropologia cristã medieval concebe o ser humano como detentor de um corpo e de uma alma. A assunção dual (e não dualista) é, por vezes, entendida ora no quadro de uma estrutura binária ora de um sistema ternário, que distingue corpo, alma e espírito, ou matéria, força anímica e intelecto. Esta conceção de raiz paulina é desenvolvida até ao séc. XII, sendo refutada pela escolástica ducentista, que adota a estrutura dual estrita, mas em que a alma encerra ou uma tripla capa‑ cidade vegetativa, animal e racional, ou, então, uma dupla competência: movi‑ mentação do corpo e faculdade racional, que aproxima o homem ao seu Deus. À teoria da illocalitas da alma, predominante na alta Idade Média, sucede, a partir do séc. XII, a tendência para atomizar a sua localização no coração ou na cabeça, considerados verdadeiros centros anímicos, embora ela se propague, dada a sua natureza incorpórea, à totalidade do corpo. Ainda que não haja consenso quanto ao assunto, predomina na Idade Média a crença de que tanto o corpo como a força anímica são transmitidos pelos pais aos seus filhos no ato da procriação e que a racionalidade da alma é nesse momento insuflada por Deus. A  morte assinala a separação dos dois princípios enformadores da pessoa humana, que, por sua vez, se voltarão a reunir no fim do tempo histórico, na Ressurreição Final dos Justos, feitos corpos gloriosos50.

Tomando estas aportações da Antropologia Histórica francesa como pano de fundo, vejamos como é que a terminologia acerca da relação “corpo e alma” é representada no texto da hagiógrafa aveirense. Ao longo da Crónica é frequente a ocorrência dos vocábulos “corpo”, “alma” e “espírito”. A conceção dual da opo‑ sição corpo/alma ou corpo/espírito a que me referia atrás não coloca qualquer

50 Jérôme Baschet – Âme et corps dans l’Occident médiéval: Une dualité dynamique, entre pluralité et

dualisme. Archives des Sciences Sociales des Religions. 112 (2000) 2‑8. Disponível em: http://assr.revues.org/ index20243.html; Jérôme Baschet – La Civilisation Féodale: De l’An Mil à la Colonisation de l’Amérique. 3ª ed. Paris: Champs‑Flammarion, 2006, p. 581‑598; Jean‑Claude Schmitt – Le Corps, les Rites, les Rêves,

le Temps. Essais d’Anthropologie Médiévale. Paris: Gallimard, 2001; Jean‑Claude Schmitt – Corpo e alma. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Vol. I, p. 253‑259.

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espécie de dúvida. O interesse deste texto reside no facto de aí estar subjacente, de uma forma muito clara, a assunção da localização do centro anímico do corpo no coração51. D. Mécia, por exemplo, “tiinha seu coracõ e sua allma firmada ẽ

soo deus . que parecia todas Cousas nom viia nẽ ouvia” (p.  21). Sobre a forte ligação que ela mantém com a madre Beatriz Leitoa, diz a cronista que é “… como se fossẽ hũu soo Coracõ e allma de hũu querer e võtade” (p.  22), ou “parecia verdadeiramẽte seerẽ anbas hũa alma e hũ soo Coracã em dous corpos” (p. 21). A prioresa, quando perde a sua filha, Catarina de Ataíde, “… seu Coracõ e alma era trespassado de grãde cuytelo de door maternal” (p. 46). Quando Beatriz Lei‑ toa se vê forçada a abandonar o mosteiro, devido ao surto de peste que deflagra em Aveiro, dirige‑se à casa monástica, com as seguintes palavras: “Oo casa sancta . que sẽpre me foste descãsso e Refrigerio de todos meus trabalhos spirituaes e corporaes . ẽ ty era cõssollada minha alma e meu Coracõ . e esforcado ẽ toda fortuna e ãgustia” (p. 57). E despedindo‑se do seu convento: “Ata agora Irmãas muito amadas fuy e andey sẽpre corporalmẽte cõvosco . daqui pera diante cõ ho coracõ e spiritu cõtinuadamẽte vos ey de acõpanhar e veer . e antre vos ey de andar” (p. 60). Sobre a Infanta, escreve que Deus “… verdadeyramẽte ẽchera e penetrara ho Coracam e a alma desta fremosa Infante” (p. 80).

Na quase totalidade dos casos em que a alma ou o espírito são mencionados, eles aparecem unidos àquele órgão corporal. Essa junção acusa a atribuição do mesmo campo de atributos às duas faculdades humanas, tanto o coração como a alma/espírito são dotados de múltiplos sentimentos: desejo, amor, afeição, ale‑ gria e tristeza, prazer e satisfação, paz e angústia, humildade, fervor, devotação, fortaleza, ânimo, confiança, esforço, dor, saudade, consolação e desconsolo. Essa associação parece sugerir que o coração, elemento corporal, constitui o órgão de ligação entre o corpo e a alma, entre a matéria e o espírito. Ele apresenta‑se como metonímia, enquanto parte de um todo, uno, mas dual. Ele é, por assim dizer, simultaneamente corpo e espírito, realidade corpórea e incorpórea. Esta hipótese vai ao encontro da mentalidade medieval, que tende a utilizar metaforicamente existências opostas, fundindo‑as. Corporizar a alma, espiritualizar o corpo são categorias que os medievalistas têm vindo a apontar e a demonstrar, e que subsis‑ tem tanto no discurso dos letrados como na tradição folclórica52.

Retomando a problemática das visões, também elas indiciam a mesma ordem de ideias. De acordo com a categorização avançada por Jean‑Claude Schmitt53 e

51 Cf. Carla Serapicos Silvério – Representações da Realeza na Cronística Medieval Portuguesa: A Dinastia

de Borgonha. Lisboa: Colibri, 2004, p. 49‑50; Carla Serapicos Silvério – A retórica do coração no discurso

cronístico…, p. 201‑215.

52 Cf. Jérôme Baschet – Âme et corps dans l’Occident médiéval..., 12‑16; Maria de Lurdes Rosa – As Almas

Herdeiras...

53 Jean‑Claude Schmitt – Le corps des fantômes. In Micrologus. Vol. I: Discorsi dei Corpi/Discourses of the

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Jérôme Baschet54 – que se referem a uma tríplice dimensão das visões, que podem

ser corporais (percebidas pelos olhos do corpo), espirituais (semelhantes às ante‑ riores, mas formadas no quadro de um horizonte onírico) e intelectuais (perce‑ cionadas no espírito e desprovidas de toda a corporeidade) – aquelas que aqui são reportadas sugerem fazer parte dos dois primeiros tipos. Os visionários veem com os olhos do corpo ou com os olhos da alma (cf. p. 88). Sobre as condições de receção, a hagiógrafa não é muito explícita quanto à diferenciação entre o estado de sono e o de quase‑sono (“leve sono” ou “nõ bem esperto nẽ de todo dormĩdo”), apenas se referindo a sonhos quando se lhes reporta de um modo genérico, para advertir quanto aos cuidados a observar perante tais fenómenos (p. 180). Das oito visões referidas ao longo da Crónica, três sucedem quando os sujeitos se encon‑ tram acordados – no contexto de cerimónias litúrgicas e em oração –, as restantes, naquele estado intermédio a que me referia.

Os visionários recebem visitas do Além, que se mostram perfeitamente sen‑ soriais, experimentadas corporalmente55. Sofrem consequências físicas variadas,

uns ficam consolados e alegres, outros espantados e atemorizados, havendo mesmo uma visionária que permanece durante três dias tolhida, de olhos cerra‑ dos e corpo gelado, sem falar e se alimentar, pelo que:

Foy vista per fisyco e algũus padres cõfessores . os quaes disserõ aquela sỹplez moca Jazer cõ verdade quasy sẽ pulsso pasmada e fora de sy . no que demostrou seer verdade algũa Cousa aver visto nõ deste mũdo mas do outro . o quall cus‑ tuma fazer themor e terror. (p. 181)

Veem a infanta em grande beleza, vestida com ricos tecidos e pedras precio‑ sas ou com o hábito dominicano, envolta em grande luz – sinal claro de pureza da alma – e, por vezes, acompanhada de entidades celestes, sempre dotadas de grande beleza (como as Onze Mil Virgens ou um mancebo), a denotarem a pre‑ sença da santa na glória. As feições das entidades vindas do Além são sempre claras, resplandecentes e emitem muitas vezes sons, quais coros celestes, tangendo e cantando harmoniosas melodias, proclamando palavras proféticas, de conforto, conselho e certificação.

Numa clara alusão à piedade que a santa nutre pela Paixão de Cristo, e a assinalar o exato momento da sua morte, um capelão da infanta, que se encontra em vigília e oração, contempla a Coroa de Espinhos. Durante cerca de um quarto de hora, essa imagem resplandecente e a pingar gotas de sangue fresco e parti‑ cularmente encarnado está envolta num aprazível odor. À medida que a Coroa

54 Jérôme Baschet – Âme et corps dans l’Occident médiéval...

55 Cf. Peter Dinzelbacher – Il corpo nelle visioni dell’aldilà. In Micrologus. Vol. I: Discorsi dei Corpi/Dis‑

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se afasta em direção ao Alto, ouve uma voz que repete: “Falleceo e acabado he”. O movimento ascendente da Coroa parece refletir a ascensão da alma de Joana ao Paraíso, como se o próprio Cristo a viesse buscar, e, ao mesmo tempo, viesse certificar aos homens de fé o fim dos seus sofrimentos corporais, os mesmos que lhe granjearam a salvação.

Ainda que o corpo seja objeto de tamanha atenção neste texto, é por referência à alma – a que ele se subordina – que essa importância deve ser compreendida. O corpo constitui a primeira experiência do homem, mas é o espírito, infundido por Deus, que, em última análise, mobiliza toda a ação humana. É a alma que irá ser submetida a julgamento, logo após a morte. É ela que irá gozar ou sofrer as consequências do veredito que esse tribunal ditar para toda a eternidade. Neste contexto, o corpo não constitui um fim em si mesmo, ele é instrumento. Na sua condição de cárcere da alma (p. 152), ele é miserável, mas é o meio através do qual ela pode agir para dele se libertar e alcançar a salvação.

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DA GRAÇA DE LISBOA: INSTRUMENTO DE ESTUDO