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PARTE II CAMPO PSIQUIÁTRICO E CAMPO RELIGIOSO: MORFOLOGIAS

3.1 POSICIONAMENTO DO PSIQUIATRA NO CAMPO PSIQUIÁTRICO

3.1.4 Capital científico

Como foi possível perceber, os posicionamentos no campo psiquiátrico funcionam de maneira que há os que ocupam lugar: 1) em dois campos (os psiquiatras bi posicionados ou “espiritualistas”), 2) em um campo (os psiquiatras mono posicionados ou “puros”), 3) neutro (os psiquiatras que fazem uma síntese humana, tendo um posicionamento moderado e menos comprometedor)134. Resta saber quem, de fato, detém capital mais alto nesse campo.

Bourdieu (como já foi abordado detalhadamente no capítulo 1 da parte I) afirma que em todo campo tem um jogo – com formas de capital, bens em jogo – e todos lutam porque há nele interesses (não necessariamente econômicos, pode

falar de coisas pessoais, manter certo distanciamento (M8, M14)/ Se a questão aparecer é porque é importante, então o médico precisa entender essa dimensão (M26)/ Faz parte da nossa cultura, da vida da pessoa (E9, E4).

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Aqui alguns bi posicionados falam dos trabalhos científicos que vêm sendo publicados mostrando a importância de se pensar a interface ciência/religião. Procuram evidenciar que possuem o respaldo de um grupo de especialistas com lugar de destaque na comunidade científica dos EUA.

134Estes destacam mais os aspectos culturais de um modo geral do que simplesmente os aspectos

haver também interesses propriamente religiosos, científicos). O que produz campos diferentes é o fato de possuírem interesses próprios. Ao pensar nesses termos, tende se a apresentar os fatos de uma forma um tanto quanto “materialista” no sentido de que o capital é muito importante. Entretanto, essa é uma discussão que não pode deixar de ser realizada em se tratando do mundo social, visto sob a perspectiva bourdieusiana pela qual se fez opção neste estudo.

Quando se fala da diferença de capital entre os psiquiatras ou entre estes e os religiosos, é possível fazer diferentes suposições135. Por exemplo, poder se ia cogitar a hipótese de que o psiquiatra mono posicionado tem capital mais alto que o psiquiatra bi posicionado, o qual – ainda que não sofra, claramente, preconceito – poderá ter, no campo, uma posição baixa (com menor capital), denotada como “suspeita” no sentido de que indiretamente será sempre indagada se traz consigo um posicionamento mais científico do que religioso136 ou o contrário. Já quando se compara o psiquiatra (independente da sua posição) ao religioso, pode conjecturar se que o primeiro tem mais capital cultural certificado por diploma que o segundo137. Pode falar se em posse de um saber secreto, um dom quando se compara o psiquiatra ao religioso, entretanto, existe uma diferença que se instaura como um abismo entre esses dois profissionais: a frequência à instituição escolar e a caução da cidadela científica. Estas conferem autoridade ao médico, o que não acontece com “a posse de um dom ou de uma graça particular por si só” (BOLTANSKI, 2004, p. 50), que não constituem “uma fonte de autoridade suficiente” (IBIDEM). Não são todos os religiosos – exceto as autoridades – que possuem diploma para atuarem, ao contrário dos médicos que obrigatoriamente necessitam possuir o certificado de nível superior.

A reflexão sobre as posições, consequentemente, coloca em pauta o espaço do NEPER/ProSER não apenas dentro do IPQ, mas também em relação à discussão de fora (por exemplo, em relação às universidades norte americanas tão recorrentemente citadas pelos seus integrantes). Por ser o capital religioso mais baixo que o capital científico, os psiquiatras bi posicionados valem se (além de todo

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Obviamente, trata se de hipóteses alternativas que, apesar de úteis à reflexão, não são os pilares deste trabalho.

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Levando se em consideração a possibilidade real de que o profissional, ao defender uma psiquiatria sensível aos aspectos religiosos/espirituais, volte se excessivamente para esses aspectos em detrimento dos aspectos científicos.

137No hospital, a detentora de poder é a medicina científica, não uma medicina espiritualista, e muito

o seu comprometimento com um trabalho sério de base científica) do lugar privilegiado, no caso os EUA, na busca por reconhecimento e respeito. Nessa direção, a autoridade desses profissionais estrangeiros – os quais, por sua vez, colocam em questão o propalado prejuízo do convívio entre medicina e religião (M13) – é utilizada com vistas à obtenção de aceitação pelos pares.

No começo não tinha nenhum grupo específico que nos inspirava. Mas, com o tempo, na medida em que nós fomos conhecendo... até porque eu não conhecia muito bem a literatura. Eu tinha interesse, mas não conhecia muito bem. Aí comecei a tomar contato com os vários grupos de pesquisa e dois grupos de pesquisa que, com o tempo começaram a me inspirar, foi o grupo do Harold koenig em Duke e o grupo do Ian Steavenson, na Universidade da Virgínia, que é um grupo também de pesquisa bem diferente da Duke, mas que são abordagens que eu acho complementares. Que de um modo geral andam separadas, mas eu acho que são complementares. Isso foi a posteriori, não foi no começo essa inspiração [q] Ao longo do grupo começou a ter como referência que eram grupos, talvez os dois principais grupos, que mais produziam academicamente, publicavam, impactavam a comunidade científica nos seus respectivos campos. (M1).

Eu acho que o pessoal da Duke University, principalmente o Koenig, e o Larson, que antecedeu o Koenig lá na Duke, são grandes influenciadores. A Christina Puchalski, da Washington University, o Benson, da Harvard são pessoas que, realmente, influenciam não só o Brasil. Eles são os modernos que estão hoje, dos que estão aí atuando, porque eu acho que essas coisas sempre existiram. (M27).

O fato de fazer referência aos especialistas internacionais que tratam da questão não torna os psiquiatras bi posicionados menos capazes ou com capital científico insuficiente para sustentar as suas escolhas. Isso mostra, no fundo, a necessidade que esses sujeitos – que estão por trás de um objeto considerado pelos seus pares como “duvidoso” ou de menor valor – têm de buscar apoio e sustentação em universidades e especialistas estrangeiros138 num país dominante econômica e militarmente sobre os demais como os EUA. A despeito de tal justificativa, semelhante mentalidade é analisada por Bourdieu (1983a, p. 130, aspas do autor) como sendo uma “filosofia ingênua da objetividade que inspira o recurso a

138 O que não significa que, no estrangeiro, esse objeto juntamente com os especialistas que a ele

aderiram não tenham também menos valor. No entanto, mesmo ocupando uma posição inferior lá fora, aqui eles ocupam posição mais prestigiada frente ao conjunto dos psiquiatras (adeptos e não adeptos da questão espiritual). Tal situação pode ocorrer devido à dominação econômica e política (e, consequentemente, à valorização ou imposição de tudo que a ela esteja relacionado) exercida pelo referido país.

‘especialistas internacionais’”. Entretanto, é equivocado esse pensamento, pois a situação de observadores estrangeiros não os coloca “ao abrigo dos parti pris e das tomadas de posição num momento em que a economia das trocas ideológicas conhece tantas sociedades multinacionais” (destaque do autor). Ou seja, o fato de estarem distanciados, espacialmente falando, não os isenta de um comprometimento ideológico, para o qual não existem barreiras espaciais.

Inicialmente, o medo de resistência por parte dos profissionais da área atemorizou aqueles que davam os primeiros passos na direção de constituir um espaço diverso às perspectivas psiquiátricas. Uma ideia um tanto quanto inovadora no que diz respeito ao tipo de temática e ao lugar escolhido para executá la tem grandes chances de situar o psiquiatra bi posicionado num lugar/posição considerado pela maioria como suspeito, fazendo com que o profissional que dele aproxime se seja mal visto139. A resistência pode não ser direta, mas seguramente ocorre mediante comentários que indicam o estranhamento com relação a uma temática tão diferente do que normalmente espera se em relação ao ambiente acadêmico científico.

Eu tive um caso específico que foi engraçado: durante o doutorado eu mandei, por exemplo, um artigo sobre essa área, para uma revista médica e recebi uma negativa sem nenhum comentário, sem nada140. Eu pedi um parecer porque veio um parecer completamente preconceituoso de que a psiquiatria, a medicina não deveria se ocupar disso porque isso não tem nada a ver com medicina e que isso é propaganda de religião. Coisas do gênero. Teve, eventualmente, episódios assim, mas isso foi esparso, foram coisas pontuais e que, de forma alguma, atrapalharam o andamento. (M1).

O NEPER/ ProSER pode ser visto como um lugar – e a religião, um objeto – com posição baixa pelo fato de não haver os seus especialistas acumulado capital necessário (como, por exemplo, uma grande quantidade de artigos publicados). Muito provavelmente, esse lugar (ou esse objeto) não seja interessante para quem

139Em comunicação proferida no I Simpósio Paulista Saúde, Espiritualidade e Educação uma relação

simbiótica, palestrante afirma que normalmente os médicos acham que estão expondo se demais, “manchando sua carreira ao trabalhar com espiritualidade” (informação verbal).

140 Thomas Sazsz é um exemplo paradigmático de psiquiatra que devido a um posicionamento

inovador no campo psiquiátrico foi vítima de incompreensão e perseguição pelos seus pares: “Durante toda a sua vida, Thomas Szasz demonstrou a coragem de defender seus princípios sozinho. Ele desafiou uma profissão poderosa e foi banido de publicações influentes; altas autoridades do governo fizeram todo o possível para arruinar sua carreira”. (Disponível em <http://www.ordemlivre.org/textos> Acesso em: 20/10/09).

tem capital alto no campo psiquiátrico no sentido de serem suspeitos, duvidosos, podendo levar ao rebaixamento de quem os procura. Na verdade, automaticamente, esse lugar e esse objeto são considerados baixos por ser o campo religioso dominado pelo campo científico. Entretanto, é importante lembrar que, segundo Bourdieu, a dignidade dos objetos sociais não ultrapassa a dignidade de quem ocupa os lugares. Em outras palavras, a dignidade científica do objeto depende do capital intelectual investido no estudo e não no objeto de escolha em si (informação verbal)141.

Ainda que tenha havido a adesão inesperada de um número acima do previsto – com profissionais interessados pela temática, porém, sem espaço para expô la142–, o estabelecimento do NEPER/ProSER foi facilitado, em grande medida, pelo apoio de profissionais (simpatizantes da temática) com capital científico considerável e que, por isso, eram respeitados no IPQ.

Quando a gente começou esse estudo, todo mundo tinha medo de resistência e na realidade a resistência foi muito menor e havia muitas pessoas que tinham interesse no tema, mas que nunca haviam comentado isso. No contexto médico, no contexto acadêmico começava a ficar mais à vontade para falar sobre esse tema. Então nós começamos a descobrir muitos aliados, muitas pessoas realmente interessadas no tema que nunca tinham tido a oportunidade de falar por resistência, por falta de espaço, por algum temor [...] Eu, pessoalmente, achei que ia ter muito mais resistência do que efetivamente houve. Dentro do Instituto especificamente, a gente teve, de um modo geral, muitos apoios. É claro que a respeitabilidade, por exemplo, do Professor Neto também foi muito importante, uma pessoa que já tinha feito uma livreAdocência nessa área143, um professor muito respeitado no Instituto. Com isso, as pessoas ficavam um pouco mais tranquilas de que estavam sob uma boa guarda. Eu acho que tem um pouco isso: esse modo meio dele ser um avalista, digamos assim, do grupo. Acho que isso apoiou muito. Ele é uma pessoa que apoia muito vários tipos de abordagens, de estudos. Ele está muito aberto pra isso. Então, isso foi muito importante. (M1).

O capital (que é o núcleo do mundo social na perspectiva bourdieusiana) aparece como um aspecto importante para pensar não somente as relações entre os

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Informação obtida com François Bonvin em reunião para discussão do projeto de pesquisa desta tese.

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Segundo um psiquiatra neutro, ao ser indagado se existe um espaço para que os religiosos participem das reuniões clínicas: “Conhecendo a instituição Instituto de Psiquiatria em especial não existe um espaço definido pela instituição. Mas acho também que não tem uma proibição desse espaço. Como em todos os lugares, os espaços só vão surgir se as pessoas ocuparem (M26).

campos, mas também as relações dentro de um campo. No campo psiquiátrico, assim como nos demais, existem posições associadas a mais capital e a menos capital. Normalmente no campo científico, no campo acadêmico há uma forma de capital apenas, ou seja, uma forma de classificação, a qual se relaciona a quem tem mais ou tem menos capital científico. Se o campo funciona como deveria, essa é a única consideração que se faz (BOURDIEU, 1983b, p. 89). Seria um campo subordinado se estivesse preso a outras formas de capital. Nesse caso, psiquiatras bi posicionados – inovadores no campo – assumem uma responsabilidade tal que os obriga a deter muito capital (muitas publicações, títulos elevados, etc) para impor uma mudança que funcione.