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Dois modelos opostos de assistência religiosa

PARTE II CAMPO PSIQUIÁTRICO E CAMPO RELIGIOSO: MORFOLOGIAS

4.2 ASSISTÊNCIA RELIGIOSA: A CONSTITUIÇÃO ATUAL

4.2.4 Dois modelos opostos de assistência religiosa

● O monopólio da capelania brasileira e a diversidade da aumônerie

francesa

A reflexão sobre o modelo de assistência religiosa existente atualmente pode ser ainda mais enriquecedora se confrontada a uma realidade cultural distinta daquela do Brasil, como é o caso da França; pois, apesar de possuírem uma diversidade cultural religiosa complexa, portam propostas distintas e paradigmáticas no âmbito do serviço religioso hospitalar. Por intermédio de casos específicos, como o do HCFMUSP e o do APAHP (Assistance Publique Hopitaux de Paris), é possível – mediante a visualização das aproximações e diferenças existentes entre esses dois hospitais públicos no que diz respeito ao formato dos serviços religiosos oferecidos – colocar em pauta o tipo de assistência religiosa hospitalar oferecida atualmente no Brasil.

O caso francês, ao contrário do brasileiro, tendo em vista a maior organização e abrangência do serviço religioso colocado à disposição do paciente nos hospitais na França, pode servir como uma ferramenta importante para se pensar sobre a qualidade de um mesmo serviço religioso, em toda sua diversidade, no Brasil.

Na França, país secular por tradição, as funções da ciência e da religião estão desde muito tempo bem delimitadas e, talvez por conta disso, o serviço da aumônerie (equivalente à capelania religiosa hospitalar brasileira) está bem distribuído entre as diferentes denominações religiosas222. Existe um rol definitivamente amplo e culturalmente rico de serviços religiosos (católico, muçulmano, israelita, protestante, budista, evangélico armênio, ortodoxo russo) nos

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Mesmo sendo o catolicismo a principal religião estruturante da identidade religiosa francesa – de forma que Bréchon (2000, p. 15) caracteriza a França como “un pays catholique de culture laïque et/ou un pays laïque de culture catholique” – as religiões minoritárias se desenvolvem e tem espaço garantido na sociedade. O fato de não haver a identificação com uma determinada religião faz com que o Estado francês tenha uma atitude mais neutra no trato com as diferentes religiões.

hospitais franceses223 que, comparados ao serviço religioso de um hospital da envergadura do HCFMUSP – cuja oferta restringe se à ordem cristã – suscita o questionamento sobre os motivos de uma tal limitação em um país comprovadamente multirreligioso como o Brasil.

É válido lembrar que a multiplicidade religiosa na França e no Brasil é consequência de um processo histórico diverso, o qual merece atenção. De uma maneira geral, a convivência de cultos distintos no Brasil, como se sabe, está ligada ao próprio processo colonial, ao longo do qual ocorreu o sincretismo de religiões originárias de seus dois grandes elementos étnicos, portugueses e africanos, além daquelas religiões trazidas por imigrantes no final do século XIX e início do século XX (protestantes, budistas, mulçumanos, judeus, etc.); enquanto que na França, majoritariamente católica, a coexistência, nem sempre pacífica, de outras religiões (como o islamismo) está ligada à história mais recente da imigração de indivíduos pertencentes às ex colônias francesas (Argélia, Marrocos, Senegal, Gabão).

Os hospitais parisienses são claros com relação aos direitos do paciente, dentre os quais inclui o de ter atendimento religioso: “A APAHP proporciona, deste modo, o livre exercício da prática religiosa em seus hospitais, em conformidade com a lei de 9 de dezembro de 1905 que separa a Igreja do Estado”. (Disponível em: <http://www.aphp.fr/site/actualite/mag_droits_malade_cultes.htm> Acesso em: 13/02/07, tradução nossa). Esse livre exercício de culto é o que os representantes dos hospitais chamam, por um lado, de liberdade de consciência dos doentes – “O respeito à liberdade de consciência dos doentes hospitalizados constitui uma regra fundamental” – e por outro lado, apontam como sendo o respeito a uma laicidade aberta. (Disponível em : <http://www.aphp.fr> Acesso em: 13/02/07, tradução nossa).

Em respeito a uma laicidade aberta, todo doente pode, na medida do possível, seguir os preceitos da sua religião. Ministros dos cultos católico, ortodoxo, protestante, muçulmano e israelita estão à sua disposição e a de sua família. Para solicitar a visita de um ministro, basta fazer o pedido ao enfermeiro chefe. (Disponível em : <http://www.aphp.fr> Acesso em: 13/02/07, tradução nossa).

Outro exemplo do apoio dado à diversidade religiosa nos hospitais franceses é a existência do que eles chamam de L'oratoire multiconfessionnel224, situado no hospital Bretonneau. Trata se de um espaço do qual todas as pessoas podem fazer uso, independente da sua crença, quando necessitam de um ambiente reservado para entrarem em contato com o seu “eu” religioso.

O espaço de culto e de recolhimento está localizado num local de 35 m2, completamente neutro [...] um oratório aberto aos que pertencem às três religiões do livro sagrado como também àqueles que não pertencem a nenhuma confissão religiosa. Prova disto, são as inscrições nas paredes: uma passagem da Bíblia (Livro do Exôdo 3, 2 5), uma passagem do Alcorão (a Surata XXV 58) e uma passagem da Torá (o mesmo excerto do Livro do Exôdo, mas em hebraico). As paredes servem também como suporte a molduras vazias, testemunhas da ausência de religião, um convite à reflexão e à meditação225. (Disponível em <http://www.aphp.fr/site/actualite/ mag_droits_malade_cultes.htm> Acesso em: 13/02/07, tradução nossa).

A França, assim como o Brasil, é um país de imigrantes, mas lá, ao contrário daqui, as particularidades culturais relativas ao religioso parecem ter um status maior de importância. Muçulmanos, judeus, ortodoxos russos, evangélicos armênios, budistas têm seu espaço de culto garantido e muito bem organizado nos hospitais. No Brasil, onde também existem esses mesmos grupos religiosos e outros mais, como os espíritas kardecistas, os seguidores das religiões afro e de religiões orientais diversas, etc., o que se percebe em relação ao serviço religioso hospitalar é uma garantia que se restringe à Igreja católica e a denominações protestantes. Ou seja, apesar da diversidade religiosa brasileira, observa se no interior do HCFMUSP o monopólio dos cultos de origem cristã, não existindo dessa forma uma abertura tão grande para a participação de outras denominações religiosas.

Talvez não tenha havido no Brasil o total desenlace entre Igreja e Estado como ocorrido na França, onde é clara a não interferência “legal” da religião nos outros setores da vida, por ter sido o seu lugar bem definido no seio da sociedade, fato este que permite uma maior participação de outras crenças. A religião e os seus representantes conhecem bem o seu papel na sociedade e, no caso em questão, tem noção do seu lugar junto ao hospital. E, ao contrário de se fazer impor, o

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Essa obra foi realizada no âmbito de uma encomenda pública fundada sob uma parceria entre o AP HP e o Ministério da Cultura e da Comunicação Francesa.

ministro religioso do hospital (L'aumônier) deve procurar “se convertir au monde hospitalier”, é o que afirma o pastor Hamon, que é aumônier protestante há treze anos. (Disponível em: <http://www.aphp.fr/site/actualite/mag_droits_malade_cultes. htm>

Acesso em: 13/02/07).

A ideia de um serviço democrático de capelania religiosa no HCFMUSP, que dê abertura para a participação de diferentes crenças (ainda que essa participação não se restrinja à garantia de um espaço físico), é muito tímida, sendo enxergada somente num futuro bem distante. Neste, a tendência, como acredita AR1, será de cada Igreja ter o seu meio de contato, não necessitando haver um religioso presente diretamente no hospital: “Eu acho que um dia vai chegar [o momento] que – porque hoje tudo você respeita direito do paciente – não vai ter mais essa coisa de ir a todos os leitos: quem quer assistência religiosa chama” (AR1). Nesse formato será necessário haver, segundo o depoente, um espaço onde isso se processe. Isso ocorrerá em oposição à presença fixa de religiosos, pois não há espaço físico – “não vai montar uma galeria de capelas” (AR1) – para que cada um tenha seu representante presente. Além do que, como afirma AR1, semelhante atitude não se faz necessária, visto que existem credos que não têm representatividade entre os pacientes: “Por exemplo, quantos islamitas internam aqui?” (AR1).

A análise comparativa específica dos casos francês e brasileiro, no que se refere à presença religiosa no interior dos hospitais, traz os elementos para reflexão na medida em que há no país europeu em questão uma organização de serviços religiosos intra hospitalar que não ocorre aqui. Provavelmente tal fato deva se à forte presença de uma imigração recente, de nacionalidades e culturas diversas, que devido a uma confrontação mais acirrada com a comunidade francesa metropolitana conseguiu colocar em primeiro plano a diversidade religiosa e cultural dos indivíduos, em detrimento da vontade de um único segmento religioso que se encara como o oficial e exclusivo.

Pode se deduzir, a partir dessa análise comparativa entre esses dois modelos de assistência religiosa, a existência de modos de relacionamento diversos no que diz respeito ao diálogo entre as diferentes religiões no interior dos hospitais. O paralelo entre duas alternativas de atuação paradigmáticas como essas indica que, apesar da pretensa maioria cristã, é possível proporcionar a todos os internos o contato com não importa qual tipo de crença ou religiosidade. Evidencia, ainda, que

um modelo que contemple a diversidade de opções religiosas não é fantasioso, nem impossível, muito pelo contrário, pois, como se viu, ele é posto em prática num país radicalmente laico como a França. Resta, portanto, refletir a partir da seguinte indagação: Por que no Brasil – considerado um país laico assim como a França – os serviços de assistência religiosa hospitalares não abrem a possibilidade para participação das diferentes crenças que representam a população nacional?

PARTE III – CAMPO PSIQUIÁTRICO E CAMPO