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Posição sacerdotal central: estratégia

PARTE II CAMPO PSIQUIÁTRICO E CAMPO RELIGIOSO: MORFOLOGIAS

4.2 ASSISTÊNCIA RELIGIOSA: A CONSTITUIÇÃO ATUAL

4.2.3 Posição sacerdotal central: estratégia

Ainda que não seja oficializada, há certamente uma aliança entre autoridades religiosas católica e evangélica (pastor e padre), pois estas consideram que a abertura para a presença oficializada de outros grupos religiosos pode complexificar a ação religiosa dentro do espaço hospitalar. Dessa forma, fazem resistência para não deixar entrar. Isso exemplifica a asserção feita por Bourdieu (e anteriormente muito bem trabalhada por Weber214) de que as religiões não são apenas ideias, mas também interesses.

Não as idéias, mas os interesses material e ideal governam diretamente a coduta do homem. Muito frequentemente, as ‘imagens mundiais’ criadas pelas ‘idéias’ determinaram, qual manobreiros, os trilhos pelos quais a ação foi levada pela dinâmica do interesse. ‘De que’ e ‘para que’ o homem desejava ser redimido e, não nos esqueçamos, ‘podia’ ser redimido, dependia da imagem que ele tinha do mundo. (WEBER, 1963, p. 323, aspas do autor).

Pode haver riscos de uma contaminação de elementos considerados “mágicos” na prática religiosa intelectualizada. Talvez seja por essa razão que as duas autoridades religiosas (padre e pastor) são aliadas numa posição sacerdotal central, e sintam os outros grupos215como feiticeiros, isto é, como fazendo parte de uma religião mágica, já que eles vêm fazendo concorrência mediante promessas como “Deus pode curar, vai ter milagre” (que é o lado feiticeiro da religião). Entretanto, a religião nos moldes éticos, ainda que esteja voltada para este mundo,

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Cinco religiosos “magicizados” e três racionalizados abordam a questão.

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Segundo Ortiz (1983, p. 22), a análise feita por Bourdieu da ação enquanto maximização dos lucros ou investimento é, na verdade, uma retomada da sociologia dos interesses de Max Weber.

215 Entretanto, como é possível notar, os próprios voluntários ligados aos dois serviços religiosos

fazendo com que o homem atue nele de acordo com os mandatos divinos216, dá ênfase mais à ética do que propriamente à súplica ao Deus no sentido de obter a salvação, a cura milagrosa.

Os especialistas precisam dos leigos, por intermédio dos quais procuram alargar sua participação para ocupar o espaço. Ou seja, preencher o espaço é uma estratégia religiosa – se a autoridade religiosa não pode ir, envia no seu lugar um voluntário, assim o doente se sente ligado e não vai receber, por exemplo, outro grupo religioso. Para isso, as autoridades religiosas precisam ter à sua disposição um grupo de pessoas, que na sua maior parte não é composto por especialistas, há pessoas de todos os níveis de capital religioso, o que faz com que elas façam “nas costas” dos especialistas um trabalho antinômico ao esperado, o qual propala curas, milagres.

A posição centralizadora217 colocada em prática facilita a homogeneização da assistência religiosa, visto que possibilita o entrosamento entre os religiosos. Obviamente, o relacionamento entre religiosos de uma mesma linhagem tem probabilidades maiores de acontecer de forma tranquila, sem grandes tumultos (ainda que possa haver alguns atritos). Por exemplo, é possível notar uma postura de tolerância dos evangélicos em relação aos católicos, pois estes se aproximam da perspectiva evangélica, já que são cristãos. Eles podem ser encarados como diferentes no sentido de terem um modo distinto de enxergar o cristianismo, mas isso não os torna totalmente contrários. Além do mais, a ideia de que “Deus é um só” ajuda a amenizar as discrepâncias (entre cristãos, naturalmente), ela é o lugar comum dos religiosos, especialmente dos protestantes/pentecostais. Para estes não importa (VR12) o fato de existirem várias denominações dentro do protestantismo, pois “ultimamente têm surgido muitas placas de igreja, mas Deus é um só”. (VR2). Os católicos também acreditam que “a palavra de Deus é uma só (VR13) e que por isso não se deve “desfazer de uma para a outra” (VR13), entretanto, é conhecimento

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Sendo que a cura da alma para que se atinja o outro mundo na condição de salvo tem que se dar (ou ao menos se evidenciar) no mundo temporal. Segundo Weber (2004), a ação do protestante dá se nesse mundo, especialmente no econômico e profissional. Ele retira se do mundo, não usufruindo dos seus prazeres, numa recusa seletiva. Porém, não se trata de uma atitude religiosa extramundana; ao contrário diz respeito ao ascetismo intramundano. Ou seja, a salvação é uma finalidade, mas em função dela dá se a atuação no mundo conforme requerida por Deus.

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A ideia de ampliar a representação do CARE, por intermédio da participação de outros grupos–

posta em prática pela recente inserção dos espíritas no referido comitê – ainda não é forte o suficiente. Tal iniciativa tem sido, ainda que disfarçadamente, embargada.

de todos que sempre “tem uns mais radicais” (VR4). Os voluntários católicos são mais tolerantes em relação aos espíritas, pois acreditam que estes “dão muito valor à pessoa doente” (VR1) e “aceitam a Igreja Católica, rezam juntos, vêm à missa, faz [sic] uma fusão” (VR10).

Deus pode aparecer como um só também na perspectiva de alguns pacientes que, de seu lado, não fazem distinção, às vezes, entre as denominações confundindo a missa católica com o culto evangélico, o que se pode explicar pelo fato de que, para além da indistinção, “a pessoa que está doente aceita tudo que vem” (VR13). Além disso, acontece, por exemplo, de o evangélico convertido sentir falta do passado católico e querer um contato ainda que provisório: “Geralmente são os evangélicos, os que já foram católicos, toda hora que a gente vai fazer as orações, vai receber a comunhão que é muito sagrada, tem aquela saudade” (VR7).

O ecumenismo é a quinta essência do discurso dos religiosos218, seja no sentido de querer expressar a importância do trabalho em conjunto – “a gente trabalha em uma linha ecumênica; ninguém está escrito aqui católico, evangélico” (VR4) – seja para demarcar uma característica do serviço religioso, que é o seu traço cristão: “Ecumênico são todas as religiões porque o papa, quando esteve no Brasil, falou que a gente tem que ser ecumênico, respeitar todas as religiões que tenham batismo e tenham tido Pai, Filho e Espírito Santo. Cristãs” (VR10).

A situação pluralista, descrita por Berger (1985), é análoga à situação e à lógica de mercado. Desse modo, as instituições religiosas assemelham se a agências de mercado e as tradições religiosas tornam se muito parecidas a mercadorias de consumo. A partir do momento em que a religião adquire esse caráter mercadológico, ela será obrigada, assim como o mercado econômico, a produzir resultados e a reduzir os riscos nas suas empreitadas. Na busca por resultados, ela será forçada a se burocratizar para que se torne mais eficiente. Tais características mercantis farão com que todas as religiões dessa configuração venham a ser muito semelhantes umas em relação às outras, a ponto de haver o nivelamento de tipos distintos, como o sacerdote e o profeta, visto que agora não

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O discurso do ecumenismo parece funcionar no que concerne ao protestantismo de um modo geral, o que não acontece em relação ao espiritismo kardecista com o qual se choca em muitos aspectos, já que este último não é considerado como fazendo parte do cristianismo pelos religiosos. Como já foi notado em outro momento, o ecumenismo é em relação aos cultos cristãos; ou seja, é tomado de um ponto de vista teológico.

importa o perfil, mas sim a adaptação às exigências do papel burocrático. O estabelecimento de vários pontos em comum em decorrência da burocratização faz com que se abra caminho para o ecumenismo, para uma colaboração amigável entre os vários grupos, a qual é exigida pelo processo de pluralização219. O relato de AR1 ilustra muito bem essa questão: “Acho que isso é uma tendência que vai caminhar porque hoje tudo é a questão do cliente: isso satisfaz a pessoa, traz o bem estar da pessoa? Isso é coisa que, na minha maneira de ver, vai caminhar”. O depoente curva se, pois, ao que parece ser a realidade e um caminho sem volta para o campo religioso: a criação de um mercado religioso onde todas as religiões competem formalmente220em igualdade de condições.

A definição do produto religioso pela clientela221 será um dos resultados da situação pluralista. Assim, o conteúdo religioso é alterado de acordo com suas necessidades, pois, o que conta agora, em última instância, é a preferência do consumidor, tal qual numa economia de mercado. Sendo que a secularização e o tipo de camada social também influenciam na direção da mudança do produto. O lugar institucional da religião é outro fator responsável por essa mudança, ou seja, produtos que correspondam às necessidades da esfera privada são preferidos pelo consumidor.

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Segundo Berger (1985), a cooperação é necessária para que haja a racionalização da própria competição, de forma que esta seja viabilizada e venha a funcionar realmente. Ou seja, a livre concorrência impõe restrições para impedir possíveis deslealdades nas disputas. Com isso, a competição é racionalizada por meio da cartelização, o que possibilita um acordo entre os diversos concorrentes e auxilia na redução dos possíveis riscos de uma empreitada. Em outras palavras, a cartelização reduz o número de concorrentes mediante incorporações, e faz com que os restantes estruturem o mercado por intermédio de acordos mútuos. Não obstante, contrariamente ao que se tende a concluir, a referida cartelização não reconduz ao monopólio, a sua tendência é oligopolística (BERGER, 1985).

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Essa é uma competição formal, isso não quer dizer que aconteça realmente. No Brasil, por exemplo, ela não acontece: a tradição católica é tão forte que a Igreja está sempre querendo interferir. O acordo que o governo Lula fez com o Vaticano é algo inusitado. Sob o pretexto de o Vaticano ser um Estado constituído, alega se ser possível fazer acordo; entretanto, o acordo é sobre religião.

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Apesar de Berger (1985) ter lembrado que os conteúdos religiosos não são determinados pela preferência do consumidor tout court, ele não aborda especificamente, como faz Bourdieu (1999), a importância dos produtores religiosos nesse processo.