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Capitalismo, Biopoder e Biopolítica: Imaterialidades e Subjetividades

III. Do Biopoder ao Trabalho Imaterial

III. 2. Negri e a Biopolítica: uma tensão entre Poder e Vida

III.2.3 Capitalismo, Biopoder e Biopolítica: Imaterialidades e Subjetividades

A revisão conceitual da biopolítica foucaultiana é essencial para Hardt&Negri estabelecerem as bases para discutirem as mutações do trabalho, quer enquanto prática, quer enquanto categoria: de um lado ocorre a dissolução da relação entre indivíduo e espaços estruturados em instituições de produção (fábrica, caserna, escola, templo, escritório, etc.), pois no contexto da biopolítica tanto as individualidades quanto os espaços estruturados, vale dizer, espaços fixos e formalmente determinados, de produção são dissolvidos.

O papel central previamente ocupado pelo poder de trabalho dos trabalhadores da fábrica de massa na produção de mais-valia está, hoje em dia, crescentemente preenchido pelo poder de trabalho intelectual, imaterial e comunicativo.116.

115 HARDT, MICHAEL and NEGRI, ANTONIO; Empire, op. cit.; pág. 23 116 Ibidem, pág. 29

De outro lado, o objeto de produção deixa de ser exclusivamente a coisa material, ou o serviço definido por um resultado determinado material e temporalmente, e passa a ser flexível e flutuante como é próprio da vida que se pretende controlar através de sua produção. O objeto da produção é tudo que é vida ou serve à vida, de tal modo que se pretende produzir a própria vida. O imaterial toma para si o material e o expande no tempo em afetos e relações.

A rigor, Foucault procurou sim estabelecer a vinculação e relevância da biopolítica para o capitalismo, mas através do biopoder, ao considerar que “(...) este biopoder foi, sem dúvida, um elemento indispensável no desenvolvimento do capitalismo; este não teria sido possível sem a inserção controlada dos corpos dentro da maquinaria de produção e o ajustamento do fenômeno da população aos processos econômicos.”117.

Ademais, aponta o ajustamento dos corpos individuais e da população às demandas do capitalismo de massa, além de pontuar que foram também “necessários métodos de poder capazes otimizar forças, aptidões, e a vida em geral sem ao mesmo tempo torná- los mais difíceis de governar.”118.

Hardt&Negri consideram insuficientes os aprofundamentos oferecidos por Foucault na relação entre biopoder e capitalismo, argumentando que “Foucault falha em finalmente apreender reais dinâmicas de produção em uma sociedade biopolítica.”119. A distinção entre biopoder e biopolítica que fazem invalida a relação foucaultiana entre poder e capitalismo a partir do biopoder como polo ativo e determinante da relação com a biopolítica, ou no mínimo a reveste de insuficiência.

De outro lado, mesmo tendo recorrido a Deleuze na fundamentação da passagem de uma sociedade disciplinadora para uma sociedade de controle, também discordam dele, e de Guattari, quanto à correta apreensão da produção em uma sociedade biopolítica, pois “(...) Deleuze e Guattari descobrem a produtividade da reprodução social (produção criativa, produção de valores, relações sociais, afetos, transformações), mas

117 FOUCAULT, MICHEL; The History of Sexuality - Volume I: An Introduction; op. cit. ; pág. 141 118 Ibidem

conseguiram formular tal produtividade apenas superficialmente e efemeramente, como um horizonte caótico e indeterminado marcado por um evento inapreensível.”120.

Mas, qual então seria a relação “profunda” e “perene” entre biopolítica e produção? Qual seria a real dinâmica da produção em uma sociedade biopolítica?

Para responder tais questões, nos termos de Hardt&Negri, sigo o movimento lógico adotado por Negri em textos como The Labor of Multitude and The Fabric of Biopolitics e

In Praise of The Common este último em parceria com Casarino.

Tal movimento principia por construir uma nova definição de biopolítica, a partir da interpretação do conceito de poder em Foucault, com o objetivo de desfazer sua subordinação da biopolítica ao biopoder.

(...) a relação entre biopolítica e bio-Poder. Sinto que é necessário, na verdade, a introduzir uma distinção dentro do próprio conceito de biopolítica, para distinguir dois aspectos diferentes e antagônicos, ou tendências desse conceito: biopolítica, por um lado, se transforma em bio-Poder [biopotere] concebido como a instituição de um domínio sobre a vida e, por outro lado, se transforma em biopoder [biopotenza] concebido como a potencialidade do poder constituinte. Em outras palavras, na biopolítica concebida como biopoder, é os bios que cria Poder, enquanto em biopolítica concebida como bio-Poder, é o Poder que cria o bios, ou seja, que tenta alternadamente determinar ou anular a vida, que postula a si mesmo como potência contra a vida. 121

Negri enxerga na subordinação da biopolítica ao biopoder a subordinação da vida ao poder, o que seria uma contradição em termos, na medida em que “(...) se o poder possibilita e instala a vida não significa que vida é poder, podemos localizar na vida em si – isto é, no trabalho e na linguagem, mas também nos corpos, no desejo, e na sexualidade – o sítio de emergência de um contra poder, o sítio de uma produção de subjetividades que pode se apresentar como um momento de desassujeitamento (désassujettisement)?”122

120 Ibidem

121 CASARINO&NEGRI; In Praise of the Common; op. cit.; pág. 148

Aparentemente Negri pretende trazer para primeiro plano a consideração que Foucault faz ao conceder à biopolítica o duplo caráter de ser parte ativa de um poder sobre a vida e ao mesmo tempo resistência ativa a esse mesmo poder, pois:

(...) contra esse poder, que era ainda novo no século dezenove, as forças que resistiam se apoiavam no suporte na mesma coisa que ele instaura qual seja na vida e no homem enquanto ser vivo.123.

A luta contra o poder sobre a vida surge em Foucault como continuum desde o século dezenove até o presente; uma luta inevitável contra a usurpação da vida em si, pois “o que foi demandado e o que serviu como objetivo era vida, entendida como necessidades básicas, a concreta essência do homem, a realização do seu potencial, a plenitude do possível”.124

Anteriormente a luta contra o poder soberano era, em essência, uma luta contra a tirania, por liberdade, por autonomia e por isonomia, a partir do advento do biopoder a luta tem sido contra uma vida artificial e reduzida à pura materialidade e utilidade. Nesse sentido atravessam e fundamentam essa luta contra o controle da vida a reificação, a alienação e a real subsunção ao capital. Talvez a faceta mais contraditória do biopoder seja que em nome de uma “boa vida” para todos a vida de cada um é reduzida a coisa, como utilidade para todos, e a forma concreta dessa redução é a assunção do corpo como máquina de produção material e imaterial.

Para Negri biopoder e biopolítica se caracterizam como resultantes de um processo histórico, marcado pelo surgimento, expansão e aperfeiçoamento de uma sociedade de controle. No entanto, biopolítica não é um aspecto do biopoder, ou uma forma sua de manifestação ao lado da anátomo-política, biopolítica é contraparte antagônica intrínseca do biopoder. Enquanto o biopoder representa o exercício do poder sobre a vida, a biopolítica seria a resistência da vida contra essa tentativa de controle.

A chave para compreender corretamente a relação entre biopoder e biopolítica estaria, para o filósofo italiano, na compreensão do poder em Foucault, o qual “nunca é uma entidade coerente, estável, unitária, mas sim um conjunto de ‘relações de poder’

123 FOUCAULT, MICHEL; The History of Sexuality - Volume I: An Introduction; op. cit.; pág. 144 124 Ibidem

que implica condições históricas complexas e múltiplos efeitos: poder é um campo de poderes. Por consequência quando Foucault escreve sobre poder nunca se trata da descrição de um princípio inicial ou fundamental, mas, ao contrário, trata de um conjunto de correlações nas quais prática, conhecimento, e instituições estão emaranhadas.”125

Tratar-se-ia de reconhecer uma mudança que sujeitou à crítica o modelo jurídico de soberania, vale dizer a concepção de Estado em si enquanto um conjunto de leis que o definem, validam e constituem como poder hegemônico e unívoco. Essa mudança revelou, imediatamente, o fenômeno de circulação social do poder, o que leva a uma imensa variabilidade dos fenômenos de subjugação dos indivíduos entre si e pelas instituições de produção, o que poderíamos nominar como a plasticidade da dominação.

De outro lado, paradoxalmente, essa circulação social do poder, pela sua própria variabilidade e despadronização, se apresenta extremamente complexa de manter sob controle, ou seja, ao pretender estender ao todo da vida o poder de controlar, esse mesmo poder se torna incontrolável. E essa impossibilidade de controle configura vida, dá vida e cria espaços de insubordinação e resistência incontroláveis contra a tentativa de controlar a vida em todas as suas manifestações, o que poderíamos considerar uma forma resiliência da vida.

A partir dessas considerações Negri irá declarar que “a gênese do conceito de biopoder deve, então, ser modificada como uma função das condições sobre as quais esses elementos foram dados.”126. Consequentemente uma nova definição de biopolítica passa a ser exigência direta dessa outra gênese do biopoder e poderá ser tanto melhor constituída, quanto melhor for compreendida a passagem da disciplina ao controle a partir das relações de produção e suas mudanças no decorrer do século XX. Nesse sentido, propõe um paralelo entre a passagem da disciplina ao controle e as transformações estruturais na organização do trabalho (cujo início localiza na década de 70 do século XX) como sendo, de um lado, “a crise do fordismo, no momento em que a organização taylorista do trabalho não mais deu conta de disciplinar os movimentos

125 NEGRI, ANTONIO; The Labor of the Multitude and the Fabric of Biopolitics; op.cit. 126Ibidem

sociais”127, e de outro lado”(...) a crise das técnicas macroeconômicas kenesianas, as

quais não se mantiveram efetivas na mensuração do trabalho”128.

Negri entende que naquele período, durante a década de 70 do século XX129, foi configurada uma mutação do poder indissociável de um processo de profundas transformações econômicas e, portanto, laborais. O par biopoder-biopolítica foi então reconfigurado sobre outras bases: o primeiro elemento do par como um poder sobre a vida que pretende “uma suicida redução de bios a zoe a qual consegue remover todo poder biopolítico de qualquer ato que seja perpetrado (a despeito do julgamento que se possa ter sobre tal ato) ”; o segundo elemento seria a biopolítica, como a poderosa e excessiva reação da vida ao poder, ao biopoder, que instala uma produção biopolítica (bioprodução) que pretende alcançar todas as formas individuais e sociais de vida. Biopolítica é então:

A tentativa de construção de pensamento, a partir de formas de vida (sejam individuais ou coletivas), para remover o pensamento (e a reflexão sobre o mundo) da artificialidade — entendida como a recusa de qualquer fundamentação natural — e do poder de subjetivação. Biopolítica não é um enigma, nem um conjunto de confusas e incompreensíveis relações das quais a única saída parece ser a imunização da vida: pelo contrário é o terreno recuperado de todo o pensamento político, na medida em que é atravessada pelo poder dos processos de subjetivação”130.

Esses ‘processos de subjetivação’ são entendidos, por Hardt&Negri a partir das reflexões de Foucault e Deleuze como produção de subjetividades segundo um conceito de produção ampla, a bioprodução, o qual utilizam para denominar a tentativa de produzir vida em todas as suas manifestações e suas condições, direta e indiretamente, conforme pretende o biopoder. A bioprodução é conceituada em linha com a tradição marxista de materialismo histórico no qual as organizações e reorganizações sociais e políticas estão em direta correlação com as mutações da produção e do trabalho.

127 Ibidem 128 Ibidem

129NEGRI, ANTONIO; “Biocapitalismo e constituição política do presente” em “Biocapitalismo”, Iluminuras,

2015, pág. 57 - 61