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II. 1. Classificar, Medir e Controlar: Prever

II.1.2 Global e Neoliberal

O segundo aspecto é a naturalização, através de constructos e modelos, de um poder impessoal, onipresente e onisciente de discriminar o produtivo do improdutivo sem qualquer conexão com o trabalho real. Produtivo ou improdutivo emanam de uma completa abstração da realidade feita com tal intensidade que ocorre uma fabulosa inversão segundo a qual a realidade é construída a partir de modelos baseados em instrumentos de observação da realidade, sendo que toda observação da realidade traz em si restrições de alcance e precisão.

A crítica à construção de modelos não tem por objetivo a sua completa desconsideração, ou banimento. No entanto, é preciso lembrar que modelos, em especial modelos nos campos das ciências humanas, são uma abstração da realidade jamais a própria realidade. Por outro lado, qualquer observação da realidade está sujeita a dois constrangimentos limitadores propostos por Werner Karl Heisenberg os princípios do

efeito do observador e da incerteza30:

O princípio do efeito do observador antecedeu ao princípio da incerteza e estabelece que o observador altera o fenômeno e o objeto observados, de tal forma que toda medição será sempre uma aproximação. Pode-se argumentar que os desvios seriam

30 HEISENBERG, WERNER K.; Physics and Philosophy - The Revolution in Modern Science; Harper &

Brothers; NY; 1958; cumpre ressaltar que o Princípio da Incerteza poderia ser traduzido também como Princípio da Indeterminação considerando a escolha na tradução para a língua inglesa de principle of indeterminacy.

lineares, ou seja, que mantendo as mesmas condições de medição todas as medições apresentariam a mesma diferença, e, portanto, a análise das correlações seria válida. No entanto, a própria medição dos desvios implicaria a mesma dificuldade, estabelecendo uma função polinomial de grau “n”, o que descarta uma função linear dos desvios.

A transposição do efeito do observador para o campo da economia política é imediata e com o agravante de que as variações instrumentais serem mais amplas na medida em que mensurar fenômenos econômicos envolve um volume muito amplo de variáveis na pessoa em si, na interação entre pessoas, entre pessoas e o meio ambiente, entre pessoas e a sociedade e que são desconhecidas ou ignoradas. Ou seja, soma-se ao efeito do observador a exclusão de aspectos reais dos fenômenos observados pela limitação necessária de variáveis dependentes e independentes. Os erros de medição, os desvios e a inconsistência serão imensos.

Já o princípio da incerteza, que não deve ser confundido com o efeito do observador, estabelece o limite de conhecimento de fatores interdependentes, vale dizer de compreensão simultânea de um fenômeno sob dois referenciais distintos e complementares, como por exemplo posição e tempo.

No caso de mensurar a produção humana o princípio da incerteza mostra a limitação de conhecer simultaneamente, por exemplo, a mudança e o estado do processo produtivo. A mudança trata da compreensão da diferença pela inovação ou pela adaptação; já o estado trata da compreensão do que é feito, como deve ser feito, a especificação do produto e a receita para garantir a produção repetida. Uma vez que ambos, estado e mudança, formam um par integrado toda medida de produção humana implicará em algum tipo de reducionismo. A questão essencial está na apreensão de simultaneidades que a rigor se multiplicam na medida em que cada trabalhador é uma pessoa em estado entrópico que interage em infinitas mutualidades de influência com todos os elementos presentes na sua vida: outras pessoas, máquinas, animais, alimentos, clima, tempo, memória etc. Essa simultaneidade por definição não pode ser apreendida.

A solução adotada pelos quânticos é a definição dos limites de distorção que a referência “prejudicada” impõe sobre a medição da referência escolhida. Em assim sendo, pela perspectiva do efeito do observador e do princípio da incerteza todo método

de mensurar o humano, individual ou social tem sua confiabilidade restrita a algum limite próprio da existência do que é medido, no caso a vida humana enquanto relações econômicas.

Partindo de outro ponto de vista, a crítica de Pierre Bourdieu ao neoliberalismo denuncia exemplarmente a inversão entre realidade e modelo de realidade.

O programa neoliberal (...) tende a favorecer globalmente a ruptura entre a economia e as realidades sociais, e a construir deste modo, dentro da realidade, um sistema económico ajustado à descrição teórica, quer dizer, uma espécie de máquina lógica, que se apresenta como uma cadeia de restrições que arrastam os agentes económicos.31

Dirigida ao neoliberalismo, a constatação lógica desse delírio economicista apresentado pelo sociólogo francês, associado ao alerta dos princípios do efeito do observador e da incerteza, serve com precisão à crítica sobre todas as demais escolas e doutrinas econômicas desde meados do século XX.

Por fim, um terceiro aspecto relevante da estruturação de dados e informações sobre a produção é a incorporação crescente, a cada revisão ISIC, do trabalho imaterial sob a forma da classificação de serviços. Com a codificação de todas as formas de serviço, também todo trabalho imaterial está tomado como mercadoria, pois em essência todo serviço é trabalho imaterial.

É justamente essa expansão do trabalho imaterial mediada pelo conceito de atividade econômica que chamou a atenção de Negri como uma mudança relevante na categoria do trabalho com potencial para revelar uma nova tendência histórica e uma quebra do paradigma nas relações entre produção e consumo. Para tanto, seria necessário revisitar a história das categorizações do trabalho (produtivo e improdutivo, material e imaterial, concreto e abstrato, morto e vivo) a partir das doutrinas em economia política sobre produção e consumo, oferta e demanda.

De outro lado, o processo de refinamento, institucionalização e internacionalização dos dados e informações sobre as atividades econômicas também ilustra como o

consumo foi sendo absorvido estruturalmente na teoria econômica sob uma perspectiva de racionalidade e controle globais e com a chancela e coordenação de uma organização nascida sob o signo do equilíbrio e harmonia entre nações, a ONU32.

A absorção do consumo pela teoria econômica tem por fundamento a expansão continua dos mercados consumidores e tem já no Mercantilismo suas primeiras considerações teóricas em economia política, como em Jean-Baptiste Colbert e Thomas Mun. A expansão de mercados decorre ou da incorporação de novos mercados, ou do aumento do consumo nos mercados existentes. Sua lógica simples estabelece a correlação direta entre investimento, consumo crescente e lucro crescente, lógica que domina os mercados de capitais nos dias de hoje que esperam a cada novo balanço das empresas cotadas em bolsa um aumento de lucratividade em relação ao mesmo período um ano antes. A globalização também aplica essa lógica centenária de expansão incessante do consumo e da mesma forma que fazia o Mercantilismo, mas já sem as distorções do metalismo graças a Adam Smith.