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Entre o Povo e a Multidão

III. Do Biopoder ao Trabalho Imaterial

IV. 1. A Fundamentação

IV.1.3 Entre o Povo e a Multidão

Além do materialismo histórico atualizado e da centralidade do trabalho o marxismo de Negri tem um terceiro elemento essencial: o conceito de multidão recuperado, segundo ele, da filosofia de Espinosa.

A multidão de Negri não é um conceito independente recortado de Espinosa e enxertado no marxismo, é parte de uma ampla revisão crítica do marxismo cuja

necessidade radical tem sua raiz na dolorosa realidade de uma derrota da esquerda italiana durante a década de 70, a qual foi aceita como lição e tomada como desafio. Nas palavras de Negri, o desafio era “não ser derrotado por uma derrota”216.

Multidão

Do ponto de vista etimológico multidão vem do latim multitudo palavra constituída pela sufixação de multi (muitos, vários, muito) pelo sufixo tudo. Vindo do adentra a filosofia política pela pena de Maquiavel no século XV, sobretudo nos Discorsi, e é retomado por Espinosa dois séculos depois no Tratado Teológico-Político e no Tratado

Político. Em Maquiavel Multidão significa o povo sem unidade, sem lideranças, sem

identidade ou função política. A multidão deve necessariamente ser liderada e controlada.217

No Tratado Teológico Político de Espinosa a multidão responde pela massa inculta que deve ser liderada, em consonância com a perspectiva maquiaveliana. No entanto, no

Tratado Político acontece uma variação relevante nessa tematização quando Espinosa

fala de um poder da multidão.

Este direito, que é determinado pelo poder da multidão, geralmente é chamado de Domínio. E, falando em geral, detém o domínio, aquele a quem são confiados, por comum consentimento, os assuntos de estado — como estabelecer, interpretar e revogar as leis, a fortificação de cidades, a decisão sobre guerra e paz, etc. Mas se este comando pertencer a um Conselho, composto da multidão geral, então o Domínio é chamado uma democracia; Se o Conselho for composto por determinadas pessoas escolhidas, então é uma aristocracia; e se, por último, o cuidado dos assuntos de estado e, consequentemente, o domínio repousar em um homem, então, é uma monarquia.218

Em outra passagem é possível entrever como Negri fundamenta em Espinosa a retomada do conceito de multidão em um contexto marxista:

(..) e como o direito da Comunidade (commonwealth) é determinado pelo poder comum da multidão, é certo que o poder e bem da Comunidade serão tanto mais reduzidos quanto mais for dada ocasião para alguns conspirarem juntos”.219

216 CASARINO&NEGRI; In Praise of the Common; op. cit.; pág 170 217 MAQUIAVEL, NICOLAU; Discursos; 2007; Capítulo XLIV;

218 ESPINOSA, BARUCH; Tratado Político; Capitulo II – Do direito Natural, seção 17; Editora WMF Martins

Fontes; 2009,

Considerando que Maquiavel e Espinosa são autores relevantes para a filosofia política, cumpre perguntar o porquê da submersão do conceito de multidão no cenário da filosofia política por ao menos longos três séculos e meio.

No século XVIII a filosofia política inglesa estabeleceu o termo People (Povo) acompanhado de todo um conjunto de implicações conceituais, sobretudo quanto ào que seria a constituição do Estado laico moderno, de tal modo que foi imediatamente estabelecido um confronto teórico-político em torno dos seus fundamentos. Tal confronto se desenrolou sob um capitalismo mercantilista global largamente dominado pelo império britânico o qual patrocinou a transição para o modo de produção capitalista industrial de escala. Assim, segundo Paolo Virno “as duas polaridades, povo e multidão, tiveram sua paternidade atribuída respectivamente a Hobbes e Espinosa”.220

Ao retomar desde Espinosa o conceito de multidão e insistir na distinção com o conceito de povo Negri confronta a longa dominância da tradição filosófico política inglesa fundada sobre Locke e Hobbes.

Os autores da trilogia Império, Multidão e Commonwealth elaboram a distinção entre os conceitos de povo e multidão como elementos fundamentais e representativos de dois sistemas antagônicos ao declararem que “multidão é a alternativa viva que cresce no interior do próprio Império”. O conceito de povo fica então claramente associado a uma estruturação do estado como poder capitalista global, que denominam de Império, enquanto multidão passa a ser uma das essências de um estado alternativo baseado em um poder distribuído, em rede e no comum viabilizado pela produção imaterial.

Se por um lado em um império globalizado, para manter controle e dominar através de conflitos constantes, uma rede integrada e global de hierarquias e divisão de trabalho é requerida, por outro, essa mesma globalização gera uma outra rede dentro da rede composta por circuitos de cooperação e colaboração que se espalham independentemente de fronteiras políticas e de povos. Essa outra rede local-global propicia uma infinidade de interações e encontros para além de um controle hierárquico

220 VIRNO, PAOLO; Grammatica della Moltitudine - Per un’analisi delle forme di vita contemporanea;

baseado na geração de conflitos. Enquanto uma rede hierarquizada de poder baseado no conflito requer preliminarmente divergências, uma rede autônoma ponto a ponto gera infinitas conexões de convergência sem qualquer possibilidade de hierarquias ou conflitos de valor. Circuitos autônomos propiciam alternativas de estar com o outro que atendem tanto a multiplicidade quanto à singularidade.

Multidão, Povo e Classes

Em Hardt&Negri a distinção entre multidão e outros coletivos como Povo, População, Classe, Massa, etc. é feita segundo três vetores de diferenciação aplicados conforme o caso.

O primeiro vetor trata da cardinalidade. Povo é uma unidade, ou seja, partindo de uma população que traz em si todo tipo de diferença, o conceito de Povo reduz a população ao Um, um Povo, fazendo existir para uma população a contradição de uma identidade singular com a qual todos as pessoas podem se identificar como o mesmo, um mesmo.

O povo tem sido tradicionalmente uma concepção unitária. A população, é claro, é caracterizada por todos os tipos de diferenças, mas o povo reduz essa diversidade a uma unidade e faz da população uma identidade singular: “o povo” é um. A multidão em contraste é “muitos”. A multidão é composta de inumeráveis diferenças internas que nunca podem ser reduzidas a uma unidade, ou uma simples identidade – diferentes culturas, raças, etnias, gêneros, e orientações sexuais; diferentes formas de trabalho; diferentes maneiras de viver; diferentes visões do mundo; e diferentes desejos. A multidão é a multiplicidade de todas essas diferenças singulares.221

Da mesma forma que multidão o conceito de massa contrasta o de povo pois uma massa também não pode ser reduzida a qualquer unidade ou identidade. No entanto massa e multidão guardam entre si uma divergência fundamental estabelecida a partir de outro vetor de caracterização, qual seja a indiferença. Segundo Hardt&Negri as massas têm como característica fundamental a indiferença, sem produzir uma identidade a

massa não pode ser reduzida a uma unidade, não pode ser nominada222. Da mesma forma que o povo a massa desconhece diferenças, pois em seu interior todas as diferenças são dissolvidas. Diversamente na multidão, a ausência da unidade e identidade, vale dizer sua impossibilidade, não implica desconhecer internamente a diferença.

Já para o conceito de povo a diferença deve se apresentar conforme os limites próprios da identidade, no caso a identidade de um povo, o que permite abrigar discriminações, reduções ao mesmo e exclusões. Povo é necessariamente excludente das diferenças e assim estabelece algum tipo de fechamento; já multidão seria um conceito aberto, multiforme e inclusivo de todas as formas de vida e diferenças.

Ainda nesse vetor da diferença os autores realizam a crítica do conceito de classe, em particular classe trabalhadora. Segundo Hardt&Negri no seu uso mais estrito classe trabalhadora se referia apenas aos trabalhadores no setor industrial, no seu senso mais amplo se refere a todos os trabalhadores assalariados, excluindo pobres, trabalhadores domésticos não remunerados e todo tipo de trabalho não assalariado. Mais do que incluir todo tipo de trabalhador, o conceito de multidão está vinculado a um conceito de trabalho mais abrangente que ultrapassaria a dimensão puramente econômica e trataria da produção ampla, uma produção social, “... não apenas a produção de bens materiais, mas também a produção de comunicação, relações e formas de vida”.223

O terceiro vetor, portanto, é o fator de organização, tanto produtiva quanto política. Ao contrário de povo e massa, a multidão se organiza segundo o comum. É a “descoberta” do comum que constitui a condição de possibilidade para que exista comunicação e ação conjunta. No entanto, o comum é ao mesmo tempo condição e produção, pois “Nossa comunicação e colaboração não estão baseadas unicamente no comum, pois por seu turno elas (comunicação e colaboração) produzem o comum em uma relação que se expande em espiral”.224

222 Ibidem 223 Ibidem 224 Ibidem

Do ponto de vista da organização política a multidão solicitaria uma democracia absoluta225, sem mediações de poderes centrais, em um modelo de autoridades distribuídas em relações colaborativas.

Negri pontua, na conversação com Casarino226, que essa organização política onde o poder está distribuído nas relações cooperativas pressupõe superar inteiramente o adágio hobbesiano “homo homini lupus”. Mais ainda, o conceito de povo decorreria da estrutura de poder própria de uma falsa democracia, pois “(...) aí reside uma profunda mistificação: demos se coloca, na verdade, como base de legitimação política — isto é, como a fundação do poder — quando na verdade demos é o produto da soberania e, portanto, da rédea disciplinadora do poder”.227

Negri define duas democracias ligadas a duas linhagens distintas e conflitantes: uma pensa a democracia como uma forma de governo e seria composta por Hobbes- Rousseau-Hegel dentre outros possíveis pensadores. Outra linhagem pensa a democracia para além das formas de governo, mas antes e sobretudo, como forma de viver em comunidade, condição de possibilidade de governar, e seria composta por Maquiavel- Espinosa-Marx.228

Eis, portanto, uma outra explicação para a longa submersão do conceito de multidão, ao menos nos termos propostos por Hardt&Negri. Todos os demais termos coletivos estiveram a serviço de uma estruturação política de poder onde existe o governo de todos pelo Um, ou seja, a democracia que foi naturalizada desde a modernidade não é o governo do povo para o povo, simplesmente por que povo é uma categoria que na verdade atende a uma inversão solicitada pelo poder concentrado pelo capital, tratar-se-ia na verdade de um povo para um governo. Muitos que se unem para se definirem como uma unidade que elimina a multiplicidade.

225 CASARINO&NEGRI; In Praise of the Common; op. cit.; pág. 101 226 Ibidem

227 Ibidem

Desde Império, e com muito maior ênfase em Multidão e Commonwealth, Hardt&Negri defendem o diagnóstico de que a democracia nascida na modernidade baseada em instituições sociais e políticas de representação está corrompida ao extremo de uma corrupção ética, um diagnóstico, dizem, que toda gente concorda.

Estabelecidos os referenciais que fundamentaram a construção da trilogia Império,

Multidão e Commonwealth resta estabelecer qual a visão prospectiva que Hardt&Negri

oferecem e como respondem à pergunta fundamental: como a perspectiva do capital determinar o trabalho tem sido dominante229, desde ao menos a primeira revolução industrial, recoloca-se a questão que Deleuze retoma de La Boetie e Espinosa através de Reich e entende ser fundamental em economia política: por que os homens lutam por sua servidão tão determinados como se lutassem por sua salvação?

IV. 2. Visão Prospectiva: Determinação, Implicação e Contradição