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3 O QUE OCORRE APÓS A DENÚNCIA?

3.4 REAÇÕES DO MOVIMENTO ESTUDANTIL CONTRA A FRAUDE

3.4.2 Cara UFJF Branca

Como citado anteriormente, a DIAAF divulgou alguns resultados parciais em abril para estudantes desse grupo contra as fraudes. Esse documento foi enviado por e-mail para alunos que entraram em contato solicitando maior transparência do processo. Somente os resultados finais que foram publicados no site da universidade. Esse documento de resultados parciais

123 Inspirado na série e filme estadunidense “Dear White People” de 2014. Que foi traduzido como “Cara Gente Branca” no Brasil.

informava que dos 28 casos até aquele momento analisados124, somente 2 foram considerados indeferidos, ou fraudulentos. Assim como foram divulgados os critérios que seriam utilizados.

Foi combinado entre os estudantes de se reunir no DCE na mesma semana para debater este documento. Assim como discutir possibilidades de mobilização sobre o tema. Para eles, o silenciamento sobre o processo poderia manter uma percepção comum de que “não daria em nada” a denúncia. É importante entender que a mobilização dessas pessoas, em primeiro momento, manter o assunto ativo na universidade e trazer reflexões sobre privilégio e racismo.

Um cenário ruim seria caso o fenômeno fosse restrito aos processos institucionais. Sem detalhes, sem informações, e sem espaço para contestação ou crítica externa125. Como era a primeira experiência oficial e divulgada diante de denúncias em massa na universidade, e de uma comissão de sindicância, era importante que gerasse impacto e interesse público, considerando a importância local da UFJF para o acesso ao ensino superior público na região.

Após o envio desse documento, os estudantes tiveram acesso à alguns resultados da comissão da UFMG126, e discutiram a criação de um material de sensibilização sobre a comparação entre as duas universidades. Esse material era a carta “Cara UFJF Branca” que seria difundido por redes sociais ou pessoalmente.

Na UFMG o processo era muito diferente da UFJF e isso inquietava, pelo contraste com uma instituição próxima, e de impacto regional. Na UFMG, a comissão avaliou 61 casos, e 34 foram considerados indeferidos, eles também foram processados juridicamente. 17 dos casos foram considerados deferidos, e 10 dos denunciados se desligaram dos cursos. Outro elemento era o critério utilizado: somente o fenotípico. Aquele conjunto de alunos entendia que o processo na UFMG era mais coerente tanto em número de casos acatados – e comparando com a UFJF, que tinha três critérios – quanto nas ações legais acionadas pela instituição. Ao comparar as duas realidades universitárias, esperava-se que a UFJF tivesse mais casos acatados, inclusive pela rigorosidade dos critérios.

Outro problema era, como já citado, as dificuldades de acesso às informações sobre o processo. Uma proposta que surgiu no grupo foi estabelecer contato com a comissão da

124 Uma parcela das denúncias não foi avaliada porque: 1) não estavam matriculados ainda ou estavam na fila de espera, assim não poderiam ser chamados 2) apareceram depois que começaram os trabalhos. 125 Através de entrevistas com membros da DIAAF, e considerando a existência de denúncias no ano de

2019. Não localizei notícias ou comunicados sobre o processo de comissão de sindicância para a população em geral. Sei que a comissão realizada em 2019 já foi finalizada, mas até o momento a UFJF não divulgou da mesma forma que em 2018 sobre resultados e conclusões.

126 UFMG. UFMG vai abrir processos contra 34 estudantes suspeitos de fraudar cotas. Notícias UFMG, 17 maio 2018. Disponível em: <https://ufmg.br/comunicacao/noticias/ufmg-vai-abrir-processos- administrativos-contra-34-estudantes-suspeitos-de-fraudar-cotas>. Acesso em: 05 jan 2020.

Igualdade Racial da OAB/JF, que poderia auxiliar no acesso aos processos. Os estudantes também queriam criar um fórum permanente para discutir os documentos produzidos ao final da comissão. Para o movimento estudantil, para mim como pesquisador, e para a sociedade em geral, era, e ainda é, necessária maior transparência sobre os processos.

A partir do que eu acompanhei, o que chamava a atenção dos alunos que se reuniam no DCE da UFJF foram o próprio texto introdutório que apresenta as justificativas acadêmicas127 dos critérios. Segundo os alunos “(...) todos nós já sabemos e vivemos isso”. Contudo, por outro lado, destacavam os resultados insatisfatórios em comparação com a UFMG. Em resposta ao relatório parcial, no mês de maio, eles organizaram uma carta que reproduzo a seguir:

Cara UFJF Branca,

Nós, que lidamos diariamente com os resquícios de uma cultura que ainda reproduz discursos e práticas escravocratas, entendemos mais do que ninguém a necessidade e a importância da política de cotas.

De fato, vivemos em uma sociedade que, até hoje, favorece o monopólio da

riqueza, do prestígio e do poder pelos brancos. Sabemos que a supremacia

branca ainda é tão presente atualmente quanto foi no passado, de modo que a organização da sociedade impõe ao negro a pobreza e o desemprego.

E é justamente por isso que nós precisamos de uma política de cotas que seja efetiva, que materialize os objetivos que levaram à sua criação, para que ela não seja mais uma prática simbólica e sem eficácia na nossa realidade. As vagas em universidades públicas são um bem escasso no Brasil e permitir que não negros ocupem um espaço que já é predominado por uma maioria branca é reforçar e legitimar um sistema no qual o racismo é estrutural e institucional.

As ações afirmativas no âmbito acadêmico são uma das poucas oportunidades para que os negros ocupem lugares que historicamente lhes foram negados, é a garantia de direitos e oportunidades para todos.

E isso só é possível se as vagas reservadas aos negros sejam ocupadas por quem de fato vive essa realidade.

Nos parece inconcebível que, ao adotar o fenótipo, a ascendência direta e a identidade étnico-racial como critérios para a análise das denúncias de fraude nas cotas, apenas duas matrículas tenham sido indeferidas pela Comissão de Sindicância. É possível perceber, sem grandes esforços, que a maior parte

dos deferimentos são completamente incompatíveis com parâmetros supramencionados.

Dessa maneira, exigimos que as denúncias sejam analisadas com maior lisura e justeza. É inescusável que a Universidade Federal de Juiz de Fora coloque em prática os ideais progressistas que são amplamente divulgados em suas campanhas (porém pouco aplicados na realidade fática).

Não iremos tolerar as fraudes nas cotas. Não iremos tolerar que uma universidade pública seja conivente com essas fraudes. Cara UFJF branca, agora não mais! (grifos meus)

127 O documento enviado tinha 9 páginas, e na maior parte dele se descrevia e explicava as discussões teóricas sobre identidade racial. Principalmente com intenção de explicar a escolha dos critérios. Os estudantes reagiram de tal forma exatamente porque na prática, o documento não apresentava dados sobre a comissão. Somente a partir de entrevista que pude ter conhecimento de como os critérios estavam sendo mobilizados.

A obviedade de que existiriam mais fraudadores que somente 02 pode ser explicada também em consideração ao que foi dito pela carta: com três critérios, que se complementariam, seria impossível um indivíduo com fenótipo branco ou próximo disso ser considerado apto para a cota. E também a defesa de que as fraudes nas cotas são feitas por não-negros que se aproveitam da autodeclaração. Como debatido anteriormente, o padrão de brancura e a hegemonia de privilégio branco já exclui os negros de acesso à serviços públicos de qualidade e oportunidades de vida. Os racismos institucional e estrutural são colocados como elementos principais da sociedade de exclusão dos negros em vários espaços de poder, como a universidade pública (ALMEIDA, 2019).

Para este movimento o sujeito identificado como fraudador é branco (fenotipicamente também). Cristiana em entrevista destaca essa percepção coletiva. Como ela relata, até onde ela pôde ter contato com denunciantes, existia a preocupação de denunciar pessoas nessa localização racial. Na leitura do movimento, também era importante destacar que o indivíduo branco é o único beneficiário da estrutura racial da sociedade brasileira.

Nessa carta fica evidente que estão denunciando o indivíduo que não sofre discriminação ou racismo em sua vida por ser reconhecido ou identificado socialmente como branco. Localizando aquele como digno de uso da cota como o negro que está nesse ciclo de desvantagens e genocídio (NASCIMENTO, 2017).

Esse manifesto demonstra como para o grupo de estudantes negros e coletivos organizados aqueles que estão sendo denunciados, considerando que são brancos e beneficiados pelo racismo, são parte do padrão hegemônico na sociedade racial brasileira. E ao afirmarem que a UFJF é branca demonstra como ser negro nesse ambiente é ser o “estrangeiro”. A mobilização estudantil criticava os resultados da comissão não em uma visão individual, exatamente porque não eram estes quem denunciavam. Eles criticavam o racismo institucional e estrutural. Na leitura de alguns estudantes, a fraude beneficia a branquitude em espaços de poder, é responsabilidade da instituição agir para impedir a fraude.