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3 O QUE OCORRE APÓS A DENÚNCIA?

3.5 A FRAUDE COMO FENÔMENO SOCIAL

A partir desta parte do texto, construo reflexões sobre porque hipoteticamente a fraude não era identificada ou denunciada em universidades públicas. Porque o fenômeno de denúncias de fraude foi tão alto e quase ao mesmo tempo no ano de 2018. Existem diversos fatores sociais, políticos, históricos, no âmbito local e nacional para que as pessoas passassem a se mobilizar para a denúncia. Como tem sido apontado durante o trabalho, a discussão sobre identidades raciais na sociedade brasileira, nesse contexto, está sendo analisada pela teoria do racismo estrutural e institucional.

A fraude é um fenômeno complexo: Quem? Porque? E como? Contudo, é percebido que somente com a denúncia que a fraude se torna “visível” oficialmente. Essa visibilidade, nos conflitos raciais, não direciona o foco para as identidades negras, mas as identidades brancas. Assim, a denúncia de fraude torna visível, e público neste debate, a racialidade do branco, e de seu grupo racial, a branquitude.

Contudo, também identifico, em notícias e na pesquisa, diferentes formas e mecanismos de relativização na definição de fraude. Dos diversos casos de fraude que foram noticiados existem duas questões que atravessam características do ser branco no Brasil e da branquitude: (i) a caracterização mais óbvia de fenótipo branco ainda é o extremo: loiro, pele clara, cabelos lisos, olhos claros e ascendência europeia. As pessoas, no trabalho de campo, tendem a reconhecer muito mais facilmente esse sujeito como branco. E podem omitir ou não a branquitude de outros fenótipos próximos desta imagem, principalmente na cor da pele140. O privilégio racial beneficia todas aquelas identidades raciais que são reconhecidos como parte do grupo racial branco. (ii) Mesmo em casos em que o fenótipo os localize facilmente como parte da branquitude, podem não sofrer nenhum tipo de sanção institucional pela fraude reconhecida. Ou seja, mesmo que o suspeito seja “branquíssimo”, “loiro dos olhos claros”, ou ruivo141, existe a possibilidade de continuar no curso “normalmente”. Então, outras identidades raciais brancas podem “facilmente” se manter na vaga, ainda pelo discurso da mestiçagem brasileira. Isso não torna o debate menos conflituoso ou complexo.

140 IBGE. Resultados de estudo sobre cor ou raça: cor da pele é dimensão mais citada para definir cor ou raça. CENSO 2010, 2010. Disponível em: <https://censo2010.ibge.gov.br/noticias- censo.html?busca=1&id=1&idnoticia=1933&t=ibge-divulga-resultados-estudo-sobre-cor-

raca&view=noticia>.

141 IG. Estudante ruivo se declara pardo e entra em medicina por cotas raciais. Meia Hora, 2020. Disponível em: <https://meiahora.ig.com.br/geral/2020/02/5865187-estudante-ruivo-se-declara- pardo-e-entra-em-medicina-por-cotas-raciais.html>. Acesso em: 11 mar. 2020.

Considerando os pontos descritos anteriormente, existe mais um elemento que torna a fraude um fenômeno “pouco visto” e “invisível” diante das instituições universitárias: o branco é o padrão racial hegemônico na sociedade brasileira (CARONE, BENTO, 2002; MÜLLER, CARDOSO, 2017). Por isso, ainda existe a associação da branquitude e privilégios na população brasileira, como o pesquisador Pedro Alfradique Scotti142 (2014 apud DAFLON, 2017) constatou:

(...) forte associação entre branquidade e privilégio em diversas dimensões, que se estenderam desde a designação de profissões até a atribuição de comportamentos éticos e qualidades morais. As pessoas percebidas como fenotipicamente brancas – e especialmente as não-nordestinas – tiveram as chances mais elevadas de ser: associadas a profissões de prestigio social mais alto, como as de advogado e professor; apontadas como dotadas de mais

estudo; designadas como aquelas que aparentam ser honestas, educadas e inteligentes. Além disso, elas foram também as que apresentaram, entre

todas, as menores chances de serem associadas à pobreza e à falta de oportunidades (DAFLON, 2017, p. 135-136). (grifos meus)

Ou seja, é possível que, considerando casos fenotipicamente facilmente localizados como pertencentes à branquitude, podem nunca serem suspeitos de fraude pelo privilégio branco. Destaco que a partir da tabela 5, é possível identificar dois casos de denúncias realizadas em 2019 em que os suspeitos ingressaram na UFJF em 2014. Abaixo apresento dados mais detalhados:

Tabela 13 – Denúncias de alunos ingressantes entre 2014-2016 na UFJF: Meio e ano de

ingresso:

Curso: Número: Cota: Resultado disponibilizado pela ouvidoria geral:

PISM/2014 Medicina 2 A Processo de sindicância.

Em análise. SISU/ 2014 Engenharia de

Produção

1 D Processo de sindicância.

PISM/ 2015 Jornalismo 1 A Processo de sindicância

Medicina 1 D Matrícula deferida

SISU/ 2015 B.I de Artes e D. 1 D Em análise

Jornalismo 1 A Processo de sindicância

Medicina 1 D

PISM / 2016 Jornalismo 3 D

142 Em pesquisa com autodeclarados brancos, pardos e pretos, eles deveriam identificar fenotipicamente diferentes fotos. Em seguida deveriam responder perguntas para expor suas percepções sobre aqueles indivíduos. Fonte: SCOTTI, P. A. (2014). A desigualdade pelos desiguais: Sociologia das percepções da estrutura social brasileira. Sociologia. Rio de Janeiro, Instituto de Estudos Sociais e Políticos. Doutorado.

D Processo de sindicância A

Medicina 2 A Matrícula deferida

A Matrícula deferida

Pedagogia 1 A Em análise

SISU/ 2016 B.I de Artes e D. 2 A Processo de Sindicância D

Jornalismo 2 A

A

Medicina 1 D

Total: - 19 -

Fonte: Elaborado pelo autor

Ao observar a existência de casos que ingressaram em 2014, 2015 e 2016, se pode ter mais ou menos certeza que estes, caso considerados fraudadores pela instituição, estão muito próximos de concluir o curso. Dos 19 denunciados, 9 são homens, e 10 mulheres. Mesmo que 3 do total já tenha sidos considerado aptos à cota, todos estão em períodos muito avançados de seus cursos, ou em processo de se formar. Os mecanismos institucionais de penalização do uso da cota, de forma fraudulenta, para casos desse tipo ainda estão em discussão e desenvolvimento. Ainda não existe de fato um consenso sobre como dar uma resposta satisfatória ou justa para casos desse tipo143. A comissão de heteroidentificação na matrícula evita, possivelmente denúncias tardias, pois a instituição “já verificou”. Mas isso não significa que esta decisão seja absoluta ou inalterável.

A seguir, construo uma tabela correlacionando a experiência da comissão de sindicância de 2018 com o ambiente universitário. Utilizo a discussão sobre rótulo144 da teoria sociológica de Becker (2008). O autor constrói sua teoria a partir de grupos marginalizados e seus comportamentos considerados “desviantes” diante da norma social estabelecida – como fumadores de maconha. Contudo, neste contexto, ser branco é a norma. A denúncia de fraude aponta a quebra da “invisibilidade” da branquitude. A seguir apresento um quadro descritivo:

143 Como citado anteriormente, o denunciante que tive contato em 2019 realizou a denúncia de uma fraude identificada na foto de formatura da suspeita em redes sociais. Ela entrou em 2013 pela cota A em medicina.

144 Me aproximo da discussão do autor para poder refletir sobre este fenômeno complexo na universidade. Correlacionando a denúncia e a raça social (fenótipo) do suspeito. Deve-se considerar que o padrão racial branco na universidade, e em diversos espaços de privilégio da branquitude, vai absorver, com todos os conflitos e tensões, os autodeclarados pardos que possuem fenótipo branco. Ou seja, mesmo que uma parcela se reconheça como não-branco, ou parda, por variados motivos e justificativas, vão continuar sendo reconhecidos como pertencente à este grupo racial pelo fenótipo. O branco não deixa de se beneficiar do sistema racial por ter consciência (ou não) dele.

Tabela 14 – Tipos de comportamento desviante

Comportamento apropriado Comportamento infrator Percebido como

desviante

Falsamente acusado Desviante puro

Não percebido como desviante

Apropriado Desviante secreto

Fonte: Becker (2008, p. 31).

Tabela 15 – Identidade racial – Denúncia – Fraude na UFJF Instituição UFJF considera a

matrícula como deferida:

Instituição UFJF considera o caso como fraude:

Denunciado “Pardo” Fenótipo branco, pais brancos e

sem experiência com discriminação racial. Não denunciado Negro de pele clara, e branco-

brasileiro.

Racismo institucional normaliza o branco como padrão. Fonte: Elaborado pelo autor

Algumas considerações devem ser feitas na construção desse segundo quadro. Não estou colocando aqui a identificação da fraude como elemento constitutivo do fenômeno porque nem todos denunciam, por variados motivos. A relação estabelecida entre a instituição e as fraudes se deu pela denúncia. Se não existe denúncia, não se questiona a presença ou não de fraude. A universidade trabalhou somente com as categorias do IBGE: preto, pardo e indígena. E como relatado por membros da DIAAF, todos os denunciados eram autodeclarados pardos.

O uso dos termos “negro de pele clara” e “branco-brasileiro” como “não denunciados” X “não fraudadores para a instituição” são utilizados justamente para tornar mais próximo da realidade. Uma parcela dos branco-brasileiros que possuem fenótipo perto do padrão europeu somente serão reconhecidos como fraudadores se não se encaixassem nos três critérios usados na Comissão de sindicância. Como já discutido anteriormente, a fraude para a UFJF tem um perfil específico no grupo racial branco.

A relação “não denunciada” X “considerado fraudador pela instituição” no quadro são aqueles que mais se beneficiam pelo padrão branco da universidade pública. Pois não levantam suspeitas de fraude se não denunciados. O racismo institucional e estrutural considera o padrão racial branco o “destinado” para o ensino superior. E isso inclui brancos pobres também. O pobre também foi por muito tempo excluído desse ambiente, mas racialmente falando, existe

diferenças entre o branco pobre que é tolerado em parte e o negro pobre, que “causa” problemas ou “estranheza” para o ambiente “branco”.

Como será observado a seguir, diante do racismo estrutural, ser branco não é elemento “suficiente” para constituir uma história de fraude. Os narradores ouvem mais elementos sobre cada caso que reforçam ou não o rótulo de fraudador no acusado ou denunciado. Caso isso não ocorra, as pessoas que ouvem “podem” não se convencer da fraude. A fraude racial, puramente, não necessariamente causaria revolta para pessoas sem proximidade ou interesse nos debates sobre desigualdade racial. Também se deve considerar o caráter dos boatos que aparecem entre os estudantes.

Pelas particularidades do contexto de denúncias, os denunciados não constituem de fato um grupo único e coeso, eles possuem mais elementos que os caracterizam para ressaltar a fraude como condenável moralmente. Sem esses escândalos, a fraude poderia não se tornar um fenômeno importante de ser observado e comentado publicamente. Poderia se restringir somente a uma questão administrativa ou jurídica, mas a fraude fala sobre identidade racial, sobre o Brasil, sobre nós, sobre o outro.

Considerando o debate proposto para esta pesquisa, sobre diferentes identidades raciais vinculadas ao fenômeno das denúncias de fraude nas cotas PPI, é importante destacar o caráter simbólico do fenótipo dos sujeitos. Segundo conversas com uma funcionária da Ouvidoria, se afirma que o critério fenotípico é principal para os denunciantes. Contudo, através das histórias e entrevistas com estudantes, se observa como o fenótipo é somente um elemento para se localizar e caracterizar suspeitas de fraude, assim como diferentes identidades raciais. Estas estão constantemente relacionadas com o racismo brasileiro e estrutural. É preciso deixar explícito que são as desigualdades raciais e sociais que constroem relações sobre as identidades envolvidas. Ser pardo, para a política de cotas, não é a única identidade racial envolvida e em conflito neste fenômeno, é necessário pensar quem é branco, quem é o preto, e quem é o indígena nesse debate.