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4 QUANDO A FRAUDE TEM UMA HISTÓRIA

4.1 COMO COMEÇOU ESSE CASO?

Segundo me contam, as histórias podem ser iniciadas com “Vocês não sabem quem fraudou cota!” / “Sabe aquela ali? Usou cotas.” / “Mesmo que certas pessoas se digam negras, eu não vejo dessa forma. Posso estar sendo muito radical...” / “Descobri um caso de fraude na minha turma...” / “Eu conheço muitos desse boatos! E não são boatos!”, dentre outras possíveis.

Cada uma dessas frases revelam a relação das pessoas com os casos e a forma como reconhecem e identificam diferentes identidades raciais dos acusados. Segundo me contam, alguns não buscam se envolver diretamente no caso, como numa situação em que só apontam o dedo e falam “Sabe aquela ali?”. Outra situação está quando existe uma proximidade maior entre aqueles que ouvem o caso e o acusado de fraude, que deveriam ser surpreendidos com a informação: “Vocês não sabem quem fraudou cota!”.

Existiram situações no meio da entrevista, que indiretamente a pessoa apontava para outras possíveis fraudes, exatamente porque não reconhece que possuam uma identidade negra: “Mesmo que certas pessoas se digam negras, eu não vejo dessa forma. Posso estar sendo muito radical...”. Demonstra como na realidade a fraude também pode ser lida subjetivamente, e a narradora se defende de uma falsa acusação. Para ela, é um grupo mais específico de negros aquele que de fato possui essa identidade racial, não somente aquele que se autodeclara pardo ou preto nas cotas.

E por fim, o início de conversa com um dos entrevistados, quando contei sobre a pesquisa, reagiu da seguinte forma: “Eu conheço muitos desse boatos! E não são boatos!”. Reafirmando que além de ter tido contato com casos, afirma que reconhece a possibilidade de fraude. Assim, essas diferentes situações que iniciam suspeitas e acusações de fraude são muito importantes para entender como desde o primeiro momento os diferentes narradores se posicionam diante do fenômeno. Mesmo que no contexto de entrevista isso se modifique e se torne mais complexo.

Outra questão é que nem todos que identificam a fraude realizam denúncias. O ato de denunciar mexe com os envolvidos, na responsabilidade e peso de estar afetando a vida de outro. A denúncia de fraude, mesmo que teoricamente seja lida somente como um movimento simples, em que a instituição vai definir, precisa sair da subjetividade daquele que identifica a fraude. As pessoas entrevistadas também relatam as angústias e dilemas morais com a denúncia, as vezes mais que a fraude. Esse controle pessoal está presente pelo aspecto jurídico e legal da denúncia. Não é uma simples acusação. Pensam: “Será que me enganei? Será que fui justo?”.

Em um mundo ideal todos denunciariam, mas como demonstrado por vários casos e entrevistas, isso é um conflito moral interno de pessoas que acabaram não denunciando. Mesmo que me relatem que identificam a fraude segundo seus próprios critérios. Torna assim, a fraude e a denúncia fenômenos interligados.

Tabela 17 - Pessoas entrevistadas e citadas neste trabalho.

Larissa É uma estudante de Engenharia Elétrica, mora com a família em Juiz de Fora, todos negros como ela. Pude conversar com ela em vários momentos da pesquisa, ela quem me apresentou Bruno. Ela possui 20 anos e é negra retinta. Já foi membro de coletivo negro da UFJF, o mesmo coletivo de Carlos. Ela reflete como no seu curso é muito branco e, por isso, a partir de amizades, entrou neste coletivo vinculado à estudantes de cursos de humanas. Ela comenta que saiu do coletivo por questões pessoais.

Fernanda Uma estudante que entrou na UFJF em 2014. Ela teve uma trajetória na Odontologia, e após ser aprovada em Medicina, mudou de curso. Se autodeclara espontaneamente como latina. Mas se entende como preta por situações de discriminação que relata. Ela entrou no curso pela ampla concorrência, e teve contato com uma denunciante branca, sua amiga, que denunciou cinco nomes na sala dela. Comenta como no curso de Medicina se fala muito pouco sobre casos de fraude.

Carlos Foi membro de coletivo negro durante um tempo. Ele relaciona teoricamente debates sobre capitalismo contemporâneo, racismo estrutural e racismo institucional. Foi um estudante que pôde estar em contato com denúncias e redirecionar para a ouvidoria. Tem 20 anos. Vem de família multirracial, e comenta como as diferentes trajetórias de seus primos, por exemplo, se deve pela cor e pelas condições socioeconômicas. Ele próprio pôde estudar em cursinhos particulares e entrou pela ampla concorrência. É negro de pele mais clara, e já foi organizado com outros coletivos. Faz Ciências Sociais.

Matheus Foi membro do DCE na época em que as denúncias foram mais intensas na universidade. Tem 29 anos. Ele me relata como foi esse contexto inicial, e as dificuldades que os estudantes tinham com diálogo com a UFJF. Ele comenta que já se autodeclarou pardo, atualmente se considera negro. Ele, como negro de pele clara, explica que o tema é complexo. Mas não vê dificuldades de entender quem frauda. Ele faz B.I de Humanidades atualmente. Também participa de grupo organizado que debate desigualdade racial.

Bruno Ele me conta que possui família miscigenada, com membros de origem turca, mesmo que ele se autodeclare branco. Possui 20 anos. Faz Engenharia Elétrica e entrou pela cota B. Veio de outra cidade para estudar na UFJF a partir de 2018. Ele me explica como a discussão de fraude é muito sigilosa, pois mesmo sabendo de casos, não sabe muitos detalhes.

Rodrigo Ele é um estudante de B.I de Humanidades e entrou em 2014 pela cota B na UFJF. Ele tem 24 anos. Membro de organização partidária local, com atuação em Juiz de fora. Este partido tem debate marxista de luta

de classes, sem perder o foco em discussões mais localizadas como raça e gênero. Ele explica que sua organização não realizou denúncias. O estudante possui contato com muitos alunos de organizações sociais locais e da universidade, entende com mais detalhes os conflitos políticos. É amigo de Carlos. É um estudante que se autodeclara branco. Paula Veio de outra cidade e estudou em uma EPF de alta procura. Estuda

Direito e cursa desde 2017. Ou seja, pouco contato teve com a universidade quanto outros entrevistados. Usou da cota A, possuindo mais reflexões sobre o privilégio de raça e de classe dos denunciados. Ela conhece pessoas que foram denunciadas e que denunciaram. Possui contato com coletivos negros também.

Rosa Ela, assim como Paula, faz parte de um grupo de pesquisa que discute raça e racismo na UFJF. São do curso de Direito e por isso, eu tive pouco contato com ela, exceto para a pesquisa. Rosa está na universidade desde 2018 e entrou pela cota A. É heteroidentificada por mim como uma estudante negra de pele clara.

Vanessa É uma estudante do curso de B.I de Humanidades e tem 26 anos. Ela possui fenótipo mais claro entre os entrevistados. Ela entrou pela cota B, e ressalta na sua trajetória reflexões sobre o contato com pessoas denunciadas, assim como tensões com o debate racial. Ela pôde me ajudar a compreender algumas relações de confiança e proximidade entre membros do mesmo grupo racial.

Cristiana É uma estudante, ex-membro do DCE, e assim como Matheus, me relatou como foi o contexto inicial de denúncias de fraude. Entrou na UFJF em 2015, pela cota A, e faz B.I de Humanidades. Ela é negra de pele clara e relata sobre o processo pessoal de reflexão sobre sua identidade racial. Possui 22 anos. Suas reflexões são muito importantes pela sua posição privilegiada no fenômeno, e os conflitos existentes entre grupos raciais.

Pedro É um homem branco, que descreve sua família como toda branca, que são brancos demais para se declararem miscigenados. Ele fez Publicidade em outra instituição pública de Juiz de Fora. A conversa com ele foi rápida, mas muito importante pelos casos que pôde me contar. Conheceu casos diferentes que passaram pela universidade. Tem 27 anos e diz pertencer a classe média baixa.