• Nenhum resultado encontrado

4 QUANDO A FRAUDE TEM UMA HISTÓRIA

4.2 CASO 1: “A NEGRA DE TAUBATÉ”

4.2.2 O fenótipo manipulado por brancos

Em complemento, achei conteúdo na internet sobre a fraude nas cotas PPI157, e que usam de click bait158 para informar sobre a política pública. Mesmo que existam muitos conteúdos criados sobre o fenômeno de forma informativa e crítica (sobre afroconveniência, por exemplo), pude localizar vídeos que eram “aparentemente” direcionados para aquele que desejam fraudar a cota. Ou seja, não por pessoas que tem interesse no tema e se informar. O vídeo que uso aqui como referência tem o seguinte título: “Como entrar na federal pela cota de negros sendo branco159”. O vídeo foi postado no dia 10 de março de 2019. A descrição do vídeo é a seguinte: “Você que não tinha nota suficiente para passar na ampla concorrência e só te restou a cota de negro, mas você é branco, venha assistir este vídeo!!!”. Estou colocando esse vídeo aqui exatamente por ser um conteúdo contra a fraude nas cotas. Ele também é relevante por ser feito por pessoas brancas, direcionado para outras pessoas brancas.

O vídeo mostra duas meninas brancas falando supostamente para pessoas que estivessem procurando o que é prometido no título. Elas comentam artifícios para dificultar a identificação racial como o uso de roupas longas enquanto passam uma base para escurecer a pele. Elas falam:

-A gente veio aqui hoje a ensinar você! Você mesmo que quer passar para a faculdade, mas não tem nota suficiente na sua cota. Ou não tem nota na ampla concorrência e você é branco que nem a gente. Mas você na hora do Sisu, no desespero, você colocou autodeclarado negro, pardo e você é branco. A gente veio te ajudar. Com maquiagem né? A gente vai ajudar você que é branco, a entrar nessa cota. Quando você vai fazer a matrícula presencial. Mas antes de tudo você vai precisar de uma base de gente negra da (marca) e numeração (...). Temos iluminador para gente negra. Precisa de pó compacto bronzeador da (marca). A gente vai mostrar para você como faz.

-Tem que cobrir a pele toda, para tirar aquele branco todo né? Se na sua cidade tá fazendo calor que nem aqui, a culpa é tua... problema é seu, mas você vai ter que ir com blusa com manga comprida e você tem que pintar sua mão. Tem que pintar a mão também.

-Vai parecer que você está bronzeada, vai. Mas não tem problema. Quanto mais melhor.

-Não tem problema não pintar perto da raiz do cabelo, mas vá de cabelo solto.

157 Destaco outro vídeo que localizei com o seguinte título: “COMO USAR COTAS DO ENEM SENDO BRANCO e RICO!”. Ele também é um vídeo educativo e informativo. Quem fala é um menino muito branco, loiro que contextualiza a escravidão e a necessidade da política de cotas. É relevante destacar que o homem branco usou de um conteúdo acadêmico para abordar o tema e as meninas brancas usaram da maquiagem para simular como manipular o fenótipo na fraude.

158 Click Bait são títulos muito chamativos para vídeos, textos ou outros materiais difundidos em meios de comunicação. Normalmente querem atingir o maior número de pessoas pela forma que são divulgadas. Mas o conteúdo do material normalmente é totalmente diferente de como é anunciado no título.

-Tá laranja? Tá. Mas calma, a gente passa isso aqui para dar uma corzinha. -Não pode deixar nenhuma parte que é branco, tem que passar no pescoço também. Se quiser fingir que foi na praia, pode também.

-Tá vendo gente? Olha aqui meu braço, “branco”. Minha cara, “negro”, não “pardo”.

-Aqui o meu braço, “branca azeda”. -Parece que eu sai da chaminé. Hahaha!

-No caso, quando vocês forem fazer, façam direito, com calma. -Já dá pra dizer que sou negra.

-Mas tem que passar maquiagem, não só a base. Esse iluminador tem que ser de gente negra. Esse batom é claro e contrasta com a nossa pele que é mais escura.

-Eu estou de lente, inclusive. E passa um rímel tá gente!

-O que acharam? Passamos na cota. Vocês passam com certeza! Com gola alta e cobrindo o pescoço, ninguém pode dizer que não é negra. Aí vocês entram na federal que tanto querem. É difícil realmente e não vamos vacilar né? Eu passo nessa cota e não na ampla concorrência...

-Mas não denunciem esse vídeo ainda, vejam até o final.

Depois de nove minutos de vídeo elas cortam e retornam sem maquiagem na pele ou rosto. Voltam como brancas. E em seguida falam:

Então gente voltamos, de cara limpa. E deixamos claro que o vídeo é uma brincadeira. Não somos a favor disso! E somos totalmente contra dessas pessoas totalmente brancas que usam dessas cotas de negro. Se a cota é para negros devem ser usados por negros. Não é por gente branca. É só uma brincadeira com esse povo aí. E acha que está sendo espertinho, e que sirva de alerta. Gente vai fazer o ENEM de novo! Não tem problema! Chora! Mas não faz isso! Se você não tem direito à cota, vá pela ampla concorrência, luta! Não tire o lugar daqueles que merecem estar ali. E não percam a esperanças na ampla concorrência. Tchau galera! (Risos).

E então, elas decidiram retirar toda a maquiagem que em teoria as tornariam “negras”, para falarem como meninas brancas. Esse vídeo, caso ainda esteja no ar, é o mais próximo visualmente para se entender como a fraude desse caso supostamente foi feito. Ao observar no vídeo, é extremamente perceptível que a pele delas foi escurecida, e que o fenótipo delas não é negro de fato. Elas ressaltam o tempo inteiro na encenação de fraude que a maquiagem deve ser para pessoas negras. Destacam como precisariam pintar muito para disfarçar bem. Elas direcionam o vídeo de forma individual: supõem que existem pessoas brancas que desesperadamente usaram a cota para negros e “não sabem o que fazer” no momento de matrícula. Comentam que após a maquiagem, ficaram com diferentes cores: “parda”, “negra”, “laranja” e “bronzeado”. Elas demonstram como a manipulação do fenótipo é facilmente perceptível. É importante ressaltar quem elas possuem fenótipo branco diferentes entre si. O que torna relevante observar como é visível a maquiagem, mesmo em pele mais escura.

Posteriormente elas revelam a brincadeira do vídeo, que ninguém se engana com esse tipo de fraude e que as cotas não são para brancos. Elas incentivam que estudantes desistam de cometer uma fraude desse tipo, e que a cota é para pessoas negras. Que a ampla concorrência pode ser tentada de novo. Mesmo que elas não comentem que existem grupos de cotas que aceitam estudantes sem a necessidade de autodeclaração. Reforçam a ideia de que o branco somente pode usar a ampla concorrência pela percepção de privilégio e educação de qualidade. Na UFJF o indivíduo branco pode usar as cotas B, B1, C, E, E1 e F. Ao mesmo tempo demonstram como mesmo na tentativa de manipular o fenótipo, é por ele que se identifica a fraude, mesmo dessa forma.

Como no debate sobre comissões de heteroidentificação, ser identificado como pertencente à população negra é essencial para que a política seja direcionada ao público correto. Não descarta a análise de que estes candidatos podem sofrer discriminação racial decorrente do fenótipo. Contudo, é necessário que não sejam brancos, e beneficiados pela branquitude.

Ao contrário da identidade de gênero, a identidade racial é muito mais rígida e visível entre os membros das sociedades. Por isso que a miscigenação e branqueamento da população são processos sociais e políticos na construção do auto-ódio entre negros, e valorização do ser branco. O título dessa sub-sessão de capítulo não especifica se são os brancos que fraudam aqueles que manipulam o fenótipo. Mas exatamente porque a branquitude tem poder sobre o seu corpo e do Outro, no caso os negros. Eles são o padrão social e construído por eles de humanidade e beleza. Por causa da dominação simbólica e racial de brancos sobre não-brancos, indivíduos brancos, como neste caso, podem se sentir “autorizados” a usar da identidade negra como “adereços” para se “justificar” na cota. Esse é o maior exemplo de privilégio branco explícito.