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FELIZ MUITO FELIZ CHORANDO SURPRESA RAIVA

3.2.2 Características morfológicas da Libras

A morfologia é um campo dos estudos linguísticos que se dedica à análise da constituição das palavras e dos fenômenos através dos quais elas são formadas, levando-se em consideração suas partes constituintes, ou seja, os morfemas. Nas línguas de sinais a morfologia também se encarrega do processo de formação dos sinais; contudo, há particularidades intrínsecas à mobilidade e visualidade dos sinais.

Enquanto nas línguas orais a disposição linear dos morfemas dita o significado, gênero, número e grau das palavras, nas línguas visuoespaciais, a simultaneidade de execução dos parâmetros fonológicos é que determina tais aspectos, auxiliada pela duração e direção do movimento, bem como da intensidade de sua realização. Os parâmetros fonológicos, vistos no subitem anterior, atuam também como morfemas. Cabe pontuar que as LSs não são línguas com morfologia predominantemente flexional, de modo que não são adicionadas partículas à maioria dos sinais no intuito de determinar desinências nominais ou verbais. Nessa conjuntura, o que observamos, com maior frequência, é a execução de dois ou mais sinais sequenciais para a criação de um outro ou para determinar características gramaticais. Tem-se, ainda, o uso do contexto de fala como elemento determinante para a compreensão adequada de gênero, número, grau e significado do sinal utilizado.

No que tange à formação, assim como as palavras, os sinais podem ser simples, quando formados apenas por um sinal (ex.: CAVALO); ou complexos, formados pela sequência de dois ou mais sinais (zebra = CAVALO^LISTRA-PELO-CORPO). No entanto, a forma como as línguas visuoespaciais combinam ou aglutinam elementos para a formação de novos itens lexicais varia bastante em relação às orais.

Nas línguas orais, de modo geral, as palavras são formadas a partir de dois processos: derivação (novas palavras surgem a partir da adição de prefixos, sufixos ou ambos ao radical de itens primitivos); e composição (dois ou mais radicais são ligados por justaposição ou aglutinação, atribuindo-se novo significado a tal combinação). Nas LSs, contudo, sinais complexos “resultam frequentemente de processos não-concatenativos em que uma raiz é enriquecida com vários movimentos e contornos no espaço de sinalização” (KLIMA;

BELLUGI, 1979, apud QUADROS; QUARNOPP, 2004). Conforme Felipe (1993 e 1997), os sinais, tomando por base os verbos, são formados a partir de 4 processos: modificação de raiz, derivação zero, processos miméticos e composição.

No processo de modificação de raiz, um tipo de derivação, os parâmetros fonológicos (CM, PA, M, Or e ENM), funcionam como morfemas e desempenham o papel de desinências verbais ou se justapõem às raízes de alguns sinais como afixos. Isso ocorre, por exemplo em pares verbo nominais em que o verbo, que demonstra a ação, é executado com movimento mais alongado, repetido, enquanto o substantivo aparece mais curto e retido (BICICLETA x ANDAR-DE-BICICLETA, VASSOURA x VARRER-COM-VASSOURA)19; ou ainda para demonstrar a intensidade de algumas ações como em TRABALHAR e TRABALHAR- MUITO, sendo que, nesse caso, a intensidade da ação é mostrada através do movimento repetido do verbo trabalhar associado a expressões faciais que definem a intensidade do ato, se foi cansativo, ou feliz, etc. (FELIPE, 2006).

A modificação de raiz ocorre, ainda, através da incorporação de algum elemento a um dado sinal para modificar o seu sentido. Os principais exemplos desse tipo de incorporação são a adição de numerais, de 1 ao 4, aos sinais de DIA, MÊS, ANO, formando: os sinais UM-ANO, DOIS-ANOS, etc.; e a incorporação de elemento negativo a verbos, como GOSTAR / GOSTAR-NÃO, ENTENDER / ENTENDER-NÃO, nos quais a negativa é caracterizada pela modificação do término do sinal, finalizando-o para a direção oposta, no primeiro caso, e pela adição da expressão facial de negação, durante a execução do segundo exemplo.

É considerada derivação, também, casos como o do sinal IMPOSSÍVEL, que mantém o radical, configuração de mãos e ponto de articulação do sinal POSSÍVEL, mas se diferencia deste com a afixação de movimento para os lados, ao invés de para baixo, como executado neste último.

Uma característica peculiar das LSs é a existência de muitos sinais homônimos. Enquanto temos, em português, palavras diferentes para os termos sentar e cadeira, dirigir e carro, estudar / estudo e aula, cozinhar e cozinha, etc., nas línguas de sinais, temos um sinal para cada grupo citado. Quadros e Karnopp (2004) dizem que esse fenômeno linguístico é um tipo de derivação, através do qual um nome surge a partir do verbo, ou vice-versa, diferindo pela duplicação do movimento. Porém, como a característica da repetição do movimento não é frequente na Libras, Felipe (2006) chama esse processo de formação de sinais de “derivação

19 Felipe (2006) por considerar que esse tipo de modificação não é aplicada a todos os pares da língua, não se configurando em um parâmetro morfológico da Libras, prefere classificar o fenômeno como derivação zero, deixando para o contexto de fala o papel de determinar o significado adequado a cada uso do sinal.

zero”. Ou seja, o significado a ser decodificado a partir de sinais homônimos dependerá do contexto em que forem emitidos. Essa é uma especificidade das LSs, que podem utilizar-se de um único sinal para representar, por vezes, um campo lexical e semântico inteiro, a exemplo dos substantivos derivados do verbo aprender: aprendiz, aprendizado, aprendizagem, conforme figura 16.

Figura 16 – Sinal para aprender, aprendizagem, aprendizado, aprendiz...

Fonte: CAPOVILLA et al., 2017, p. 244.

A figura 16, acima, mostra que o mesmo sinal de APRENDER é utilizado para os substantivos que derivam dele, fazendo com que o contexto discursivo seja determinante para a sua decodificação exata.

Não é característica da Libras a existência de grupos de sufixos ou prefixos visuais que sejam adicionados a sinais primitivos de maneira sequencial e ordenada para a criação de sinais derivados e isso ocorre porque, segundo Ferreira-Brito (1997, p. 50), “dificilmente se pode falar em prefixo e em sufixo porque os morfemas ou outros componentes dos sinais se juntam ao radical simultaneamente;” não antes ou depois do radical, dessa forma, prefere-se utilizar o termo afixo para determinar o que se incorpora ao radical de um sinal primitivo.

Tomando como exemplo a palavra batedeira, no português, observamos que ela deriva do verbo bater, adicionando-se o sufixo –eira ao radical bat-, e que esse é um fenômeno recorrente na língua portuguesa para palavras que têm como base verbos e mantêm uma relação do substantivo com a ação desse verbo que o originou (furadeira, parafusadeira, assadeira, colhedeira, atiradeira). Vejamos o caso do sinal para batedeira, na figura 17:

Figura 17 – Sinal para bater e batedeira

Fonte: CAPOVILLA et al., 2017, p. 448.

Ao processo de formação mostrado na figura 17 dá-se o nome de formação mimética ou icônica. Conforme Felipe,

[...] o processo mimético transforma a mímica em uma forma lingüística que representa iconicamente o referente a partir dos parâmetros de configuração sígnica e da sintaxe da língua. Na verdade, não se faz a mímica simplesmente, esta é incorporada pela língua e se estrutura a partir dos parâmetros de cada língua de sinais, como as onomatopéias nas línguas oral-auditivas (FELIPE, 2006, p. 206).

Assim, se compararmos o sinal para o substantivo BATEDEIRA com o do verbo BATER, observamos que os critérios de derivação da língua portuguesa não se aplicam a Libras. A formação do substantivo BATEDEIRA se baseia em critérios visuais, miméticos, que mais se assemelham ao funcionamento do objeto batedeira do que aos sinais utilizados para o verbo BATER (à porta, palmas, colidir, etc). Em Libras, por conseguinte, os critérios de formação dos sinais podem não ser análogos àqueles utilizados no português. A formação mimética de sinais é um processo bastante produtivo na Libras e, por vezes, utilizado para a representação de novos itens lexicais, o que rompe, de certa forma, o conceito de arbitrariedade do signo linguístico, já que, nesses casos pontuais, existe uma motivação icônica, convencionada culturalmente (FERREIRA-BRITO, 1997).

Ainda assim, o que se observa mais claramente é a combinação de sinais distintos na criação de novos e o uso de expressões corporais dando determinada ênfase em sinais que indiquem diminutivos, superlativos, graus de substantivos e adjetivos, em geral, o que faz com que a composição seja considerada o processo de formação de palavras mais comum em Libras. Nesse tipo de formação, itens lexicais se justapõem, formando novos sinais.

Em se tratando da questão dos morfemas flexionais, observamos que, na língua portuguesa, algumas flexões possuem caráter obrigatório. Para se determinar o gênero, número, os tempos e modos verbais, existem sufixos e desinências necessárias à construção coerente da fala. Sendo assim, na língua portuguesa, “[...] existe um conjunto coeso de formas, com pouca

variação, que se aplica sistematicamente a toda a classe ou subclasse de palavras veiculando certas noções específicas” (SILVA, 2009, p.27). Tal característica não é compartilhada da mesma forma em Libras, o que analisaremos, observando o gênero, número e os tempos verbais dessa língua.

Em se tratando do gênero das palavras, em Libras, não há morfemas análogos aos do português que se afixem ao final das palavras para determinar se são masculinas ou femininas (-a / -o), de modo que não há flexão de gênero nesse idioma. O que se observa, contudo, é que quando se faz necessário distinguir o sexo de pessoas ou animais sobre os quais se fala, utiliza- se o sinal HOMEM ou MULHER, logo após o sinal do substantivo mencionado, como no exemplo: CACHORRO-HOMEM / CACHORRO-MULHER, determinando-se, assim, o sexo. No caso em que a pessoa, animal ou elemento sobre quem ou o que se fala está presente no ambiente da conversa, o direcionamento do sinal, apontando para o objeto do discurso, é suficiente para tal especificação.

Existem casos, ainda, em que já existem no léxico da Libras sinais distintos para os gêneros de alguns substantivos. Isso ocorre, por exemplo, nos sinais HOMEM / MULHER, PAI / MÃE, GENRO / NORA, etc. Cabe ressaltar que os substantivos PAI e MÃE são sinais compostos com HOMEM ou MULHER sequenciados com BEIJAR-NA-MÃO, mas nesses casos, os sinais que indicam o gênero são antepostos.

Em se tratando de flexão de número, a Libras também utiliza o mesmo sinal tanto para o singular quanto para o plural e, quando é necessário especificar número, são utilizados os numerais cardinais ou sinais quantitativos, como: VÁRI@S, MUIT@, BASTANTE, POUC@, junto ao substantivo.

Em resumo, a Libras não segue critérios morfológicos semelhantes aos da língua portuguesa. Enquanto no português, a flexão de gênero e número se apresenta com obrigatoriedade, certa regularidade e concordância indispensável, na Libras, a não regularidade no sistema de expressão de gênero e número faz com que a concordância esteja atrelada ao contexto discursivo e não à estrutura morfológica de cada sinal. Observemos as frases abaixo:

a) Vários meninos bonitos estão jogando bola na quadra. b) Várias meninas bonitas estão jogando bola na quadra.

c) VARI@S MENINO BONIT@ ^JOGAR^FUTEBOL QUADRA. d) VARI@S MENINA BONIT@ ^JOGAR^FUTEBOL QUADRA.

Em a e b, observamos orações do português e nelas percebemos a obrigatoriedade de manter as desinências para o masculino, feminino e para o plural, em todos os termos ligados ao sujeito da frase. Já em c e d, exemplos da Libras, percebemos que apenas o sinal referente ao sujeito é modificado para estabelecer o gênero referido na comunicação; já para o estabelecimento do plural, um pronome indefinido com ideia de quantidade maior que um é utilizado na fala. É interessante notar que, no português, o pronome pode ser retirado e a oração permanece com as características de plural; na Libras, contudo, se o sinal VARI@S não for utilizado, a frase passa a funcionar como singular.

No que tange às desinências verbais presentes na língua portuguesa para determinar pessoa, número, modo, tempo, as LSs funcionam, mais uma vez, com base em aspectos visuais. Para determinar as pessoas do verbo, a Libras o faz apontando o dedo indicador e direcionando o olhar para a pessoa ou as pessoas do discurso, ou ainda para espaços que caracterizem os referentes. Os pronomes pessoais do caso reto obedecem, assim, critérios dêiticos utilizados com verbos para estabelecer flexão número pessoal. O número, por sua vez, não se restringe a singular e plural, visto que o plural pode ser dual (dois referentes), trial (três referentes) ou múltiplo (quatro ou mais referentes).

Em se tratando dos tempos verbais, não se utiliza marcação desinencial para identificação do presente, observa-se o emprego de advérbios como HOJE e AGORA, em algumas situações, ou nenhuma marcação temporal. O passado e o futuro, por sua vez, são marcados por advérbios ou locuções adverbiais de tempo, como os sinais ONTEM, ANTEONTEM, JÁ, ANTIGAMENTE, ANTES, AMANHÃ, DEPOIS, DEPOIS DE AMANHÃ, ou pelos sinais PASSADO e FUTURO. Geralmente, esses sinais iniciam as frases para indicar o tempo do discurso, mas podem, também, ocorrer ao final delas. O contexto de fala também é utilizado para marcação temporal, como nos casos EU CRIANÇA, EU ADULT@, EU SOLTEIR@, EU MAGR@, em que o contexto diz se o que se fala caracteriza o passado ou o futuro.

A Libras também tem o seu léxico expandido por empréstimos linguísticos. É interessante observar a forma como esses empréstimos ocorrem, pois tais itens lexicais vêm, em sua maioria, da língua portuguesa, através da soletração manual. O alfabeto manual é utilizado por falantes de Libras, em casos específicos, dentre eles: para dizer nomes de pessoas; termos técnicos; e palavras sem sinal em Libras ou com sinal desconhecido pelo falante. Cabe esclarecer que a “[...] soletração manual não é uma representação direta do português, mas sim, uma representação manual da ortografia do português, envolvendo uma sequência de configurações de mão, que tem correspondência com a sequência de letras escritas do

português” (QUADROS; KARNOPP, 2004, p.88). De modo que não ocorrem diálogos inteiros apenas com soletração manual, a menos que esse seja o objetivo específico de algum projeto; a soletração é pontual e pode ser intercalada no discurso em Libras para a fruição da fala quando termos desconhecidos são utilizados pelos usuários da língua.

Nos alegra perceber a dinâmica e capacidade de adaptação das línguas humanas. Enquanto nas línguas orais, o som é a base dos empréstimos linguísticos, nas línguas visuoespaciaisesse fenômeno linguístico se adapta à modalidade de produção e percepção dos sinais, propondo empréstimos baseados na soletração manual. A Libras apresenta, em seus estudos morfológicos, características da tradição e especificidades próprias. Os sinais, também, se dividem em classes gramaticais; passam por processos de formação; valoriza o uso de morfemas, empréstimos linguísticos, etc. Porém, o embasamento que a Libras adota dos estudos linguísticos tradicionais não é engessado; ele sugere caminhos que são retraçados a partir da vivência visual e suas particularidades de produção.