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Fonte: elaborado pela pesquisadora.

As falas F2, F3 e F4 são sinalizadas, logo no início do filme; nessas cenas, apenas as imagens e os sons das ações dos personagens transmitem o conteúdo significativo da obra. O tradutor decide, então, facilitar a compreensão do conteúdo imagético, fazendo a recriação visual da cena em Libras e sinalizando a percepção de sons significativos. A atuação do intérprete, nessas três falas, funciona como uma explicitação do pensamento do guaxinim, mostrando sua percepção enquanto caminha à procura de alimentos no local, bem como, demonstrando as suas ações (IR COMER MELHOR, PROCURAR AQUI).

Em F2, além de contextualizar a cena, o TILS evidencia a existência de um barulho, que é percebido duas vezes pelo guaxinim. Cabe pontuar que a primeira representação do barulho (ACONTECER BARULHO PARECER) não existe no áudio da cena fílmica exibida. Esse acréscimo parece ter sido feito para chamar a atenção do público para o fato de que havia algo em volta, provavelmente, se movendo, que causava tal barulho. Como a percepção do barulho ocorre duas vezes na sinalização, supõe-se que o público já fique atento à aparição de algum elemento surpresa.

As falas F5, F6, F7, F8, F11, F23, F39 e F40 correspondem a ações construídas ou descrições imagéticas elaboradas pelo intérprete em referência e complementariedade ao material visual ou auditivo disponíveis nas cenas. Conforme Luchi (2014), as descrições

imagéticas são reproduções visuais do discurso, que enriquecem o texto de chegada com construções não lexicais, mas de grande expressividade comunicativa. Nessas criações, o intérprete pode associar elementos linguísticos (configurações de mão, movimentos, expressões visuais e corporais) a outros mais imagéticos e icônicos, que retratam, visualmente, os elementos representados (SEGALA; QUADROS, 2015).

Para tanto, o intérprete optou por utilizar como critérios condutores da sua interpretação o antropomorfismo, recurso que atribui características físicas e sentimentos humanos a animais ou seres inanimados (SUTTON-SPENCE; NAPOLI, 2010); a incorporação dos personagens, “processo de transpor referentes da história, animados ou inanimados, para o corpo do ator ou do contador de histórias” (ANJOS, 2018, p. 122), com o objetivo de auxiliar o público na compreensão das atitudes e comportamentos dos animais ou objetos da trama; e o anaforismo, além do uso constante de classificadores. Os classificadores representam os seres e objetos exibidos em um evento, de modo a preservar a iconicidade na emissão em Libras. Eles denotam características percebidas no elemento representado, mas variam em relação à forma, ao tamanho, à intensidade e ação do que está sendo sinalizado (FERREIRA-BRITO, 1995). Tais estratégias interpretativas convergem para uma perspectiva imagética em que o intérprete/ator teatraliza as cenas visualizadas, fazendo com que a sua interpretação não verbalize apenas as falas orais emitidas na obra fílmica, mas também, a carga dramática vivida pelos personagens do filme.

Acreditamos que a decisão de realizar a interpretação em Libras ricamente acrescida de descrições e criações imagéticas teve como principal motivação o fato da obra fílmica visar, como público alvo, as crianças. Para esse público, em processo de letramento, o transitar entre dois textos exibidos na tela, como a obra fílmica e o da janela de Libras, poderia levar a falhas interpretativas, se a atenção estivesse voltada mais para o intérprete do que para as imagens ou vice-versa. Dessa forma, enriquecer a interpretação com a construção de imagens facilitaria o acompanhamento diegético do filme pelo público alvo. Cabe destacar que existe uma discussão sobre o uso exagerado e a negligência da explicitação no trabalho dos TILS, no sentido de que esse recurso não pode nem ser utilizado em demasia para não tirar do surdo a possibilidade de construir sua própria interpretação a partir dos elementos visuais observados, nem negligenciado, de modo que o público tenha dificuldade interpretativa. De fato, são a experiência e a subjetividade de cada intérprete, que balancearão o emprego de tal estratégia.

O trabalho do intérprete, sob essa perspectiva, assemelha-se, também, ao do narrador de histórias infantis, pois diante de uma língua com enorme carga expressiva visual, como a Libras, ele incorpora os personagens e recria suas ações, fazendo com que a narrativa

transpareça em sua atuação. Essa segunda tela narrativa, o corpo do intérprete, envolve os expectadores por não se tratar da transmissão de um texto meramente informativo, mas dinâmico e expressivo. Conforme Pimenta,

[...] sendo a língua de sinais imagética, também surte o efeito de visualização da narrativa em três dimensões dependendo de como esta é produzida, ou seja, quando uma produção em sinais se limita à composição lexical a narrativa parece linear, plana e até mesmo irreal ou desprovida de sentido. Ao contrário, se são utilizados recursos imagéticos como expressões faciais e corporais, movimentos, gestos, antropomorfismos diversos e classificadores (CL), o interlocutor surdo conseguirá visualizar a história e formar significado (PIMENTA, 2012, p. 61).

Dessa forma, para que o surdo tenha uma experiência de imersão no texto narrativo, este deve prender a sua atenção, levar-lhe ao processamento de informações e produção de sentidos a partir da experiência visual que a Libras proporciona. Assim, observamos que a narrativa em Libras de Raccoon & Crawfish não buscou uma estruturação estritamente lexical, em que sinais convencionais fossem utilizados para toda a enunciação. Ao invés disso, valorizou-se uma sintaxe visual, combinando anaforismo, antropomorfismo, sinais lexicais e expressões corporais para que a sinalização ficasse dentro de um contexto característico do público surdo infantil.

Para “dar vida” à sua produção, o intérprete utilizou-se do antropomorfismo. No caso do filme em questão, o guaxinim e o caranguejo já são personagens personificados na narrativa e esse traço é mantido na interpretação com o antropomorfismo e a incorporação dos personagens feita pelo intérprete. A utilização do antropomorfismo ligado à incorporação dos personagens é observada a partir do momento em que o TILS não atua apenas como narrador do texto, mas assume os papéis dos personagens ficcionalizados na tela, reproduzindo as suas características físicas e comportamentais, bem como, as falas e ações dos personagens na sequência discursiva da obra fílmica. Vejamos a figura 51, a seguir:

Figura 51 – Antropomorfismo e incorporação: caranguejo simulando ataque do guaxinim

Fonte: elaborado pela pesquisadora.

Nessa construção imagética, o TILS observa as características físicas e atitudinais dos personagens, adotando traços que possibilitam a sua identificação na trama. No caso retratado na figura acima, o intérprete adota o posicionamento físico do guaxinim, pronto para o ataque, representando as presas do animal direcionadas para o caranguejo e movendo as suas mãos para baixo para sugerir a eminência da captura. Toda a recriação cênica é reforçada pela expressão facial do intérprete em consonância com a do guaxinim, além de pelo direcionamento do corpo e do olhar do TILS, que se volta para baixo, em concordância visual com a localização do caranguejo, objeto do ataque. Assim, segundo Andrade (2015, p. 66-67), “[...] quando os sinalizantes encarnam uma entidade em alguma história ou poesia, o seu corpo torna-se o corpo da entidade e pode, desta forma, comunicar todas as emoções da entidade, assim como as emoções dos próprios sinalizantes”.

O uso de classificadores ocorre, ao longo de toda a interpretação e em todas as descrições imagéticas. O seu emprego facilita a visualidade da produção e uma melhor compreensão da narrativa. Conforme Pimenta (2009; 2012), os classificadores podem substituir sinais lexicais específicos dentro de uma dada categoria e são utilizados para descrever pessoas, animais e objetos, bem como, para indicar a movimentação ou a localização desses seres. Vejamos um exemplo de classificador na figura 52:

Figura 52 – Uso de classificadores33

Fonte: dossiê da pesquisa.

A figura 52 mostra o uso do classificador IR COLOCAR ALGO NA BOCA, utilizado em F2. Este classificador mostra a imagem do intérprete abrindo a boca e levando algo pequeno, nas mãos, até bem próxima a ela. Essa construção imagética isenta o intérprete de emitir uma narrativa lexical, que o obrigaria a sinalizar cada palavra da sentença. Os classificadores aparecem de formas variadas. Seguindo o exemplo acima, se o elemento levado à boca fosse algo, como uma maçã, uma bolacha, etc., o formato adotado pela mão ou pelas mãos do intérprete se modificaria, uma vez que ele simboliza o contorno, tamanho, peso e as características físicas do tipo do elemento representado.

A fala F5, em suas diferentes versões, traz um exemplo dessas variações, que podem ocorrer nos classificadores: