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5 CAMINHOS DA TRADUÇÃO E INTERPRETAÇÃO EM JANELA DE LIBRAS DO FILME RACCOON & CRAWFISH: UMA GÊNESE VISUAL

5.1 CONTEXTOS DE CRIAÇÃO: OBRA, TRADUTOR/INTÉRPRETE E DOSSIÊ GENÉTICO

Raccoon & Crawfish é uma animação fílmica estadunidense dirigida por Mark Edwards, Peter Hale, Heather Carpini, Shaun Foster, Karabo Legwaila e Cal Waller, em 2007.

A produtora responsável pela criação de tal filme foi a Four Directions Productions, que é um dos empreendimentos da Nação Indígena Oneida, tribo de origem norte americana. A referida obra fílmica destina-se, especialmente, ao público infantil e conta uma lenda difundida por várias gerações entre os membros da Nação Oneida. Tal filme baseia-se na lenda The Raccoon and the Crawfish, literatura divulgada oralmente por contadores de histórias e familiares às crianças da tribo. Nessas ocasiões, os membros se reuniam, e, através das histórias e lendas contadas, ensinavam valores, crenças e costumes do seu povo.

Tais narrativas ocupam, destarte, um espaço de comunicação oral no qual a contação de histórias tem papel importante no processo de ensino, aprendizagem e difusão cultural. Dentre os temas contemplados nas lendas, observam-se a apresentação e explicação: de fenômenos da natureza; da origem dos acontecimentos passados da tribo; de fatos sobrenaturais; além de orientações sobre boas e más condutas, culturalmente estabelecidas, dentro do grupo. Os episódios de contação de histórias costumam culminar com reflexões sobre comportamentos e atitudes pessoais a partir da moral e dos valores da sociedade na qual o grupo está inserido. As lendas são, desta forma, narrativas que revelam e difundem aspectos culturais de povos diversos, ou seja, elas fazem parte do “[...] patrimônio cultural de um povo e se constituem num elemento de coesão social, de agregação e de formação da identidade e do comportamento social de seus membros” (COELHO, 2003, p. 18-19).

Como característica comum entre as lendas, em The raccoon and the crawfish, os personagens, que dão vida à narrativa, vêm do mundo animal, são eles: o raccoon (guaxinim) e o crawfish (lagostim). Ambos os personagens são personificados para denunciar os perigos e as consequências que o orgulho e a ostentação podem causar. A produção desse curta-metragem surgiu como parte do projeto Four Directions Media, voltado para o arquivamento e registro dos elementos culturais da Nação Oneida. As tradições culturais desse povo (ritos, lendas, crenças), antes transmitidas, apenas, oralmente, passam a ter sua memória salvaguardada e difundida através de publicações, documentários, exposições e curtas, criados e desenvolvidos dentro de tal projeto. Observamos, assim, o papel da memória como uma das matrizes propulsoras da criação do filme Raccoon & Crawfish. Segundo Bosi:

Começa-se a atribuir à memória uma função decisiva na existência, já que ela permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no curso atual das representações. [...] Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes com as percepções imediatas como também empurra, “descola” estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora (BOSI, 2003, p.36).

Dessa forma, tanto a tradução intersemiótica feita com base na lenda oral/escrita para a animação fílmica Raccoon & Crawfish, quanto a legendagem do filme em português e, agora, a tradução e interpretação em Libras representam formas de arquivamento, suplemento e sobrevivência da obra de partida em seu próprio contexto social, bem como, nos demais para os quais tal lenda é divulgada. Isso não significa, contudo, que o testemunho oral terá um fim com a criação de arquivos; “ele ressurge no fim do percurso epistemológico no nível da representação do passado por narrativas, artifícios retóricos, colocação em imagens” (RICOEUR, 2007, p. 170).

Podemos dizer, então, que a criação do filme fará com que tal memória passe a ser arquivada e documentada. Esse arquivamento, por sua vez, amplia o campo receptor da obra, visto não ser mais difundida apenas oralmente dentro de um grupo específico; “os testemunhos que encerra desligaram-se dos autores que os ‘puseram no mundo’; estão submetidos aos cuidados de quem tem competência para interrogá-los e assim defendê-los, prestar-lhes socorro e assistência” (RICOEUR, 2007, p. 179). Dessa forma, o arquivamento desse fragmento da cultura indígena Oneida se faz, também, no Brasil por meio da obra fílmica, que se torna compreensível dentro da cultura brasileira através da sua legendagem e janela de Libras. As formas de tradução audiovisuais empregadas se configuram como novos textos, que suplementam o filme na língua de partida “como um significante disponível que se acrescenta para substituir e suprir uma falta do lado do significado e fornecer o excesso que é preciso” (SANTIAGO, 1976 p. 88); o filme é renovado, assim, através do acréscimo de elementos verbais escritos ou visuais-espaciais do sistema cultural de recepção.

Para estudar o processo de criação de uma tradução e interpretação em janela de Libras, optamos, então, por tornar a animação Raccoon & Crawfish, acessível ao público surdo do Brasil, mas, especificamente, ao de Salvador, elaborando a sua tradução, interpretação e gravação na Língua Brasileira de Sinais. Tal processo de criação durou cerca de quatro meses, considerando a data em que o tradutor e intérprete de língua de sinais (TILS) assistiu ao filme pela primeira vez e aceitou o convite para interpretá-lo em janela de Libras, 12 de julho de 2016, até o dia em que nos foi enviado o último vídeo do filme, com a janela integrada, 03 de novembro de 2016.

Os ensaios, aos quais tivemos acesso, e a gravação final da interpretação ocorreram em um estúdio profissional, localizado em Salvador, no dia 15 de outubro de 2016, entre 9:10 e 11:30 da manhã. Dentro do intervalo de tempo citado, ocorreram, também, orientações para o enquadramento do intérprete em cena, posicionamento para a gravação, bem como, iniciou- se a edição da janela de Libras, visando a sua incorporação ao vídeo do filme de partida.

O profissional responsável pela interpretação de Raccoon & Crawfish foi Uerbson Nunes Coutinho, intérprete da Universidade Católica do Salvador – UCSAL e professor de Libras da Associação de Pais e Amigos de Deficientes Auditivos do Estado da Bahia – APADA. Uerbson é licenciado em Língua Portuguesa e Libras pela Universidade Federal da Paraíba, especialista em Libras pela Faculdade São Luís e possui a certificação do Ministério da Educação de proficiência em Libras – Pro-Libras45.

O primeiro contato com o intérprete ocorreu no dia 07 de julho de 2016, às 22h:22min, por meio de troca de mensagens pelo aplicativo Whatsapp e a confirmação de que o trabalho poderia ser feito ocorreu 5 dias depois, em 12 de julho de 2016, conforme figura 33, abaixo:

Figura 33 – Primeiro contato com o intérprete e aceite do trabalho46

Fonte: Elaborado pela pesquisadora.

Em 10 de julho de 2016, foram enviados por e-mail o link do filme em inglês para apreciação do intérprete, bem como, um arquivo com as legendas em português para que se pudesse acompanhar o que era dito em tela. O vídeo com legendas integradas só foi disponibilizado ao TILS, após aceite do trabalho.

O desejo de analisar um processo criativo tão específico, como o da tradução e interpretação em janela de Libras, fez com que trilhássemos caminhos de estudo diferentes dos habituais. Não iniciamos o estudo com a coleta e organização do dossiê genético da referida

45 Programa Nacional para a Certificação de Proficiência no Uso e Ensino da Língua Brasileira de Sinais - Libras e para a Certificação de Proficiência em Tradução e Interpretação da Libras/Língua Portuguesa.

46 Fotografias do intérprete e nomes de terceiros foram apagados das imagens retiradas do aplicativo Whatsapp por se tratarem de informações pessoais e não serem relevantes à pesquisa.

produção, mas sim, com a reflexão e planejamento sobre como se teria acesso a tais documentos, pois, de maneira geral, os tradutores e intérpretes de Libras não costumam registrar o seu processo criativo, ou pelo menos, não da forma que necessitávamos. Sendo assim, por se tratar de um objeto de estudo cuja proposta de criação foi feita pela própria pesquisadora, o primeiro e-mail enviado ao TILS já trazia em seu conteúdo a preocupação com o registro das etapas de criação. Vejamos a imagem seguinte:

Figura 34 – Link de acesso ao filme e preocupação com o registro do processo

Fonte: Elaborado pela pesquisadora.

Observando a figura 34, vemos que, de forma sucinta, a pesquisadora informa o tipo de estudo que seria realizado e diz ao intérprete que precisaria do registro do trabalho. A mensagem reforça, ainda, que, caso o trabalho fosse aceito, a pesquisadora se reuniria com o profissional para discutir as formas de salvaguardar o processo criativo. Tal informação se fez necessária como tentativa de já deixar o intérprete ciente da necessidade de não descartar os documentos provenientes de sua criação. Cabe pontuar que, no momento do contato inicial, a pesquisadora não tinha conhecimento aprofundado sobre a modalidade tradutória que verte do português para a Libras, através do registro visual (janela de Libras) e a compreendia como um tipo de legendagem, embasando-se apenas na ideia de que o conteúdo comunicativo era traduzido e inserido na tela de uma obra audiovisual para torná-lo acessível a outra comunidade linguística; dessa maneira, poderia a tradução para janela de Libras exercer função semelhante à da legendagem, porém, na modalidade visual-espacial-sinalizada. Ao aprofundar-se na

pesquisa, houve o amadurecimento dos estudos que estavam sendo realizados sobre as modalidades existentes da TAV e o uso coerente das terminologias de tal área.

Diferente das produções que nascem no papel e marcam nesse suporte os principais vestígios processuais, as criações que envolvem a performance deixam, na imagem em movimento, nos ensaios, nas tentativas de gravação em tempo real, os principais índices do seu nascimento e desenvolvimento, até que se chegue ao registro dado como final. Segala e Quadros (2015) destacam que a tradução de um texto para Libras tem como forma principal de registro o vídeo e, para atuar nesse vídeo, o intérprete, semelhante ao ofício do ator, realiza uma espécie de performance em sinais, cujo discurso é organizado através dos recursos característicos da produção na referida modalidade visual-espacial; ou seja, através do texto sinalizado em Libras (recursos linguísticos) e de descrições imagéticas, antropomorfismo, incorporações, dentre outros (recursos paralinguísticos).

Diante da efemeridade dos rastros de criação que o fazer performático, ao vivo, deixa para o pesquisador, solicitamos ao tradutor/intérprete que permitisse a gravação dos seus ensaios e das suas tentativas de gravação até que chegássemos àquela que seria a versão considerada como final da janela de Libras, o que nos foi, generosamente, concedido.

Por estarmos inseridos no universo dos estudos genéticos, ainda nos causa estranhamento ter que explicar o porquê da necessidade de preservar e disponibilizar os arquivos processuais. Tal explicação foi dada ao intérprete, que compreendeu os objetivos da pesquisa e não se opôs à manutenção dos registros. O mesmo, contudo, não aconteceu com o cinegrafista, que gravou e editou a janela de Libras em análise. Antes de começarem as gravações e durante os ensaios, foi explicado e reforçado que precisávamos que os ensaios e todas as atividades desenvolvidas no estúdio fossem gravados e disponibilizados para análise futura, pois este seria o corpus da pesquisa realizada. O que pode ser observado, nos trechos das transcrições abaixo:

Transcrição do DP08 –Teste de enquadramento (00:04:22 – 00:05:34):