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O corpo como suporte e instrumento de criação na dança, música, tradução e interpretação em janela de Libras

2 CRÍTICA GENÉTICA: REVENDO CONCEITOS E PENSANDO O DIGITAL NOS ESTUDOS DE PROCESSO

2.1 CRÍTICA GENÉTICA INCLUSIVA

2.2.1 O corpo como suporte e instrumento de criação na dança, música, tradução e interpretação em janela de Libras

A dança, de modo geral, é uma manifestação artística que consiste no uso do corpo para a realização de movimentos, coreografados ou improvisados, conforme o ritmo de determinada música e/ou projeto artístico do dançarino ou produtor. Na dança moderna contemporânea, o movimento “constitui-se num símbolo expressivo único, que só terá a sua função no contexto daquela sua coreografia específica” (ROBATTO, 1994, p. 134). Desse

3 Notem que utilizaremos os termos instrumentos/ferramentas de criação quando tratarmos de criações feitas em suporte diferente do papel, por considerarmos mais abrangente e possível de abraçar diferentes manifestações artísticas do que instrumentos de escrita, ainda que este último já seja aplicado em sentido amplo.

modo, cada movimento dá expressividade a algo que será compreendido de acordo com o contexto de sua apresentação, grau de sensibilidade e experiência que cada expectador tem com a dança.

Técnicas de movimento, linguagens estéticas e materiais diversos são utilizados para que se possa alcançar os objetivos de cada representação, mas, na dança, o que faz a arte tomar forma é o corpo. É através dele que se mostra uma variedade de movimentos, que se tem o equilíbrio necessário para a movimentação, que se representa a sequência estética, a repetição, a harmonia e o ápice ou clímax do movimento, fatores integrantes dessa arte.

É o corpo também que ocupa o espaço onde a dança se realiza, mas esse espaço não se refere apenas ao palco onde determinada dança acontece, mas ainda às dimensões e aos ângulos alcançados com o alongamento de partes corporais do dançarino; remete também aos graus de abertura e ao alcance de braços e pernas, ao alcance dos saltos, às ocupações de espaços aéreos, etc. Sendo assim, o corpo serve de sustentação para os movimentos e para as expressões que podem ser vistas no palco, sendo, portanto, o suporte desse processo criativo, assim como é nele também que se inscreve e, através do qual, se disponibiliza o enunciado comunicativo, em determinado tempo e espaço.

Como ferramentas de criação do trabalho do dançarino, teremos mais uma vez o corpo, que utiliza os seus membros para realizar movimentos, demonstrar leveza e suavidade sob orientações e técnicas diversas em sua performance. Além dele, podemos considerar as vestimentas, os calçados, acessórios, a maquiagem, o palco e cenário como instrumentos desse fazer artístico.

Na música, assim como na dança, o corpo será o suporte ou instrumento basilar para a emissão de sons. É o trabalho conjunto entre órgãos que compõem o aparelho vocal (órgãos de respiração – pulmões, brônquios; órgãos de fala – laringe, cordas vocais; e órgãos de articulação – palato, língua, dentes) e as técnicas de emissão vocal o principal responsável pelo canto. Nesse ato, suporte e instrumentos de criação se confundem, agindo em sincronia para que a musicalidade aconteça.

A voz é o instrumento mais valioso para o canto, pois através dela se pode representar algo, é possível o seu emissor se expressar e emocionar o ouvinte. Não obstante, o canto é composto também por silêncios, pausas ricas em material expressivo, que potencializam a sua carga dramática, capaz de despertar ternura e tantas outras emoções. O pesquisador da arte de cantar deverá inserir-se no universo dessa produção para entender os mecanismos que a faz soar.

Para a produção de sons instrumentais, os suportes mais utilizados serão os instrumentos musicais, como o piano, violão, a flauta, etc. As ferramentas, por sua vez, irão variar conforme o instrumento musical utilizado. Para tocar o piano, utilizamos os dedos; para a bateria, as baquetas; para a flauta, tanto o sopro quanto os dedos. Porém, em alguns casos, o próprio corpo servirá como suporte e ferramenta de produção sonora; exemplo disso é a prática da percussão corporal, através da qual uma infinidade de sons, muitos deles semelhantes aos emitidos por instrumentos musicais, são produzidos por movimentos, toques e batidas em partes do corpo. Dentre as produções sonoras corporais mais comuns, podemos citar o assobio, as palmas e o estalar de dedos; mas, ainda, sons de vários instrumentos musicais são simulados com o emprego dessa técnica.

Na tradução e interpretação em janela de Libras, foco desta pesquisa, mais uma vez, o corpo exercerá papel de fundamental importância, pois é ele que “fala” a Língua Brasileira de Sinais. A Libras, língua natural dos surdos, ou seja, aquela adquirida de maneira espontânea quando se convive e interage com falantes fluentes da língua de sinais, durante o ato enunciativo, foge da modalidade oral-auditiva da língua portuguesa para a modalidade visual- espacial-sinalizada. Ela é visual, uma vez que os falantes dessa língua utilizam o canal visual para decodificar a mensagem passada; espacial, já que a sinalização é feita ocupando posições específicas do espaço, em frente ao corpo; e sinalizada, pois a enunciação ocorre por meio de sinais e expressões corporais.

O suporte dessa prática consiste, então, no corpo que abriga a base sobre a qual os sinais são feitos, incluindo mãos, tronco, cabeça, braços, ombros, etc. Os instrumentos de criação, por sua vez, são as mãos que dão vida aos sinais de maneira simultânea e articulada a outros membros, seguindo cinco parâmetros fonológicos4, a saber: configuração de mão (formato da mão para realizar o sinal); ponto de articulação (posicionamento da mão em relação ao corpo, podendo tocá-lo ou não); movimento (movimentação das mãos durante a realização do sinal); orientação (direcionamento do sinal, podendo modificar o seu significado); e expressões não-manuais (expressões faciais ou corporais utilizadas para demonstrar reações afetivas ou funções gramaticais). Dessa forma, o conteúdo linguístico é articulado pelas mãos e expressões corporais, sendo apreendido a partir do canal visual de quem participa da comunicação.

Nos três exemplos mostrados acima, o corpo pode assumir três papéis: suporte, instrumento e obra. Para a dança e a música (canto e percussão corporal), o corpo se constitui

tanto no material que dá forma à arte quanto no conteúdo estético, além de ser empregado para a criação de ambas, constituindo-se também como ferramenta. Na Libras, o corpo atua de forma semelhante; ele é a tela de transmissão comunicativa, o instrumento que enuncia, bem como representa o texto que se quer comunicar.

Merleau-Ponty, falando sobre o corpo, diz:

Meu corpo é o lugar, ou antes a própria atualidade do fenômeno de expressão (Ausdruck), nele a experiência visual e a experiência auditiva, por exemplo, são pregnantes uma da outra, e seu valor expressivo funda a unidade antepredicativa do mundo percebido e, através dela, a expressão verbal (Darstellung) e a significação intelectual (Bedeutungf). Meu corpo é a textura comum de todos os objetos e é, pelo menos em relação ao mundo percebido, o instrumento geral de minha "compreensão" (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 315).

Dessa forma, o corpo é tanto uma unidade de sentido quanto a matéria que a agrega, sendo ambos indissociáveis. Ele é signo e significado que fala ao outro por meio da expressão. Contudo, “a significação visada não pode ser alcançada pelos meios naturais do corpo; é preciso então que ele se construa um instrumento, e ele projeta em torno de si um mundo cultural” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 203).

Embora o corpo, na dança, na música e na tradução e interpretação de Libras tenha a dupla funcionalidade de suporte e ferramenta, diferentemente da escrita, em que o suporte papel será o próprio documento testemunhal do processo criativo, em obras de tais meios, os documentos que carregam os vestígios da produção se apresentam em outra modalidade; quer sob a forma de vídeos (making of, gravação de ensaios, espetáculo, gravação final) entrevistas, arquivos de áudio, roteiros, croquis, dentre outros. Por conseguinte, o suporte primordial dessas criações, o corpo, não será, em si, o documento de processo, aquele que se pode manejar e arquivar. Ele não será manipulado durante a análise do pesquisador (salvo se o artista permitir tal aproximação ou o pesquisador precise de informações fisiológicas e lhes seja concedida a análise corpórea); mas sim, tem-se a sua representação gravada em mídias e formatos diversos, que servirão de suporte, enquanto documento de processo.

Seguindo esse ponto de vista, podemos constatar que, em estudos de crítica genética, cuja obra guarda, na atuação corporal, seu principal interlocutor, os documentos de processo terão outra materialidade, na maioria das vezes, a digital. Sendo assim, sentimos a necessidade de compreender suporte e instrumento dentro de duas atuações diferentes: suporte/instrumentos de criação, papéis desempenhados pelo corpo; e suporte/instrumentos de registro processual, papéis desempenhados por equipamentos eletrônicos, sendo o suporte um arquivo digital visualizável em tela computacional e o instrumento utilizado para seu registro, um equipamento

eletrônico (câmera filmadora, gravador de voz, câmera fotográfica, etc.). Essa diferença entre termos não era observada em produções feitas em papel, nas quais ambas as ideias se fundem.

Na dança, na música e na tradução e interpretação em janela de Libras os suportes e instrumentos de registro é que devolvem a vida e dinâmica ao processo em devir; são eles também que munirão os estudiosos com os índices necessários para a busca de reconstituição de um percurso. Reconstituição essa que não será única, pois a cada novo olhar lançado a um projeto artístico, novos horizontes, novas temáticas ligadas à sua constituição podem ser sugeridas, colaborando-se, assim, para o enriquecimento do conhecimento existente sobre a obra em questão.