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5 CAMINHOS DA TRADUÇÃO E INTERPRETAÇÃO EM JANELA DE LIBRAS DO FILME RACCOON & CRAWFISH: UMA GÊNESE VISUAL

P: Nãaaao, eh eu vejo o movimento que ele muda de uma para a outra.

5.3 OPERAÇÕES GENÉTICAS: IDENTIFICAÇÃO E LEITURA

Uma das principais características dos registros processuais é a existência de rasuras, operações genéticas que mostram a manipulação dada ao texto durante a criação. Tais rasuras podem ser entendidas como registros “de que um segmento foi objeto de exploração ou de reescritura” (BIASI, 2010[2000], p.72). Os vestígios de mudanças textuais ocorridos, ao longo de um processo de criação, são, de modo geral, os elementos buscados pelo pesquisador na análise dos documentos que constituem o dossiê, pois, é embasado nessas operações que ele constrói parte da leitura genética da gênese.

Analisar o processo de tradução e interpretação em janela de Libras é uma tarefa peculiar, visto que a busca por movimentos de gênese nas versões disponibilizadas nos vídeos de ensaios e gravações nos mostrou, que esse processo vive em constante mudança. Em todos os vídeos são encontradas variações na ação interpretativa, o que ocorre em, praticamente, todas as falas51. Nada que é dito em uma cena se repete de modo igual nos ensaios ou nas gravações subsequentes; as mudanças ocorrem na configuração da mão do intérprete para realizar um determinado sinal, na posição, no movimento e na intensidade do sinal feito, na posição e no direcionamento do corpo; enfim, cada interpretação é única, mesmo que o intérprete repita conteúdo semântico similar.

Dessa forma, analisar a tradução e interpretação em Libras com base nos movimentos de gênese é algo bastante desafiador. Por isso, tivemos que estabelecer critérios para definir o que seria considerado, neste estudo, como operações genéticas ou, apenas, variações na produção de um mesmo sinal, as quais não provocariam alteração semântica significativa, na

51 Utilizamos o termo fala como manifestação oral ou sinalizada de uma língua, podendo se referir tanto à língua portuguesa quanto à Libras, dependendo do contexto.

emissão das falas em Libras. Logo, só serão analisadas alterações nas falas em Libras se estas trouxerem mudança semântica significativa ao texto, não se avaliando casos em que um mesmo sinal apareça com movimento mais longo ou mais curto, aberto ou fechado, a menos que tais características agreguem mudanças semânticas expressivas ao enunciado.

Ao contrário das criações escritas, em que as marcas do trabalho, geralmente, são deixadas no papel por meio de riscos ou traços em acréscimos marginais e interlineares, citando apenas alguns tipos, a tradução para Libras deixou apenas rasuras brancas ou imateriais; ou seja, marcas invisíveis no documento de processo, mas identificáveis através da comparação entre as versões existentes. (GRESILLON, 2007[1994]; BIASI, 2010[2000]).

O acompanhamento e a comparação ente os vídeos foi imprescindível para a visualização do modo como o texto traduzido e interpretado se reconstruiu, à cada nova versão feita. Porém, como não é possível inserir trechos do vídeo neste suporte impresso, e considerando que a disponibilização de fac-símiles seria uma tarefa exaustiva ou não suficiente para evidenciar a lógica das mudanças observadas, optamos por transcrever todos os vídeos e disponibilizar a transcrição no formato de glosas, nos apêndices deste trabalho. A elaboração de tais transcrições objetivou, ainda, facilitar o acompanhamento dos vídeos pelos leitores que desconhecem ou têm pouca competência linguística em Libras, de modo que a transcrição das falas sinalizadas oportunizaria o entendimento do público geral, que deseje acompanhar os resultados desta pesquisa.

Como mencionado, o tipo de transcrição adotado foi através de glosas, método já utilizado por estudiosos de línguas de sinais. Embora existam estudos bem detalhados sobre transcrições em glosas da ASL, tais como os de Friedman (1976), Liddell (2003), Liddell e Johnson (1989), Klima e Bellugi et al. (1979) e Padden (1983), não utilizamos o nível de detalhamento proposto por esses autores em nossas transcrições, de modo que não aparecem, por exemplo, marcações gráficas específicas para destacar expressões não-manuais, variantes de sinais, verbos direcionais, flexões de grau, etc. Nossas transcrições foram embasadas no sistema sugerido por Quadros e Karnopp (2004), já embasado em Klima e Bellugi (1979) e Ferreira-Brito (1995), conforme quadro mostrado a seguir:

Quadro 04 – Caracterização dos elementos das transcrições

Fonte: adaptado de Quadros e Karnopp, 2004.

Descrição Exemplo

1 Os sinais serão representados por glosas; CASA

2 Se um sinal for traduzido por duas ou mais palavras do português, ele será representado por tais palavras separadas por hífen;

TOMAR-CAFÉ

3 Se o sinal for composto, formado por dois ou mais sinais, mas tiver a tradução em português feita por apenas uma palavra, tal sinal será representado pelas palavras em português referentes à cada uma de suas partes, separadas por circunflexo; logo após, aparecerá a palavra em português, entre parênteses, em caixa baixa;

CASA^CRUZ (igreja)

4 Se for usada a datilologia, o sinal será representado pela palavra em português, com suas letras separadas por hífen;

G-U-A-X-I-N-I-M

5 Ao final de frases interrogativas, acrescentaremos o ponto de interrogação; bem como, ao final de frases exclamativas, serão acrescentadas exclamações.

GUAXINIM MORRER? NOSSA!

6 Frases negativas, que não utilizarem o sinal NÃO em sua enunciação, terão a palavra NÃO acrescida ao verbo, separada por hífen;

ACREDITAR-NÃO

7 Sujeitos e objetos das ações, implícitos em Libras ou com decodificação visual (apontação, direcionamento do sinal ou do olhar) serão identificados pelo acréscimo de pronomes antes ou depois do verbo, entre parênteses e em caixa baixa;

EU MATAR (ele)

8 Os verbos serão representados na forma infinitiva devido à ausência de flexão em Libras;

CORRER

9 Expressões faciais e corporais não lexicais, mas que trazem carga semântica significativa ao texto interpretado, serão sublinhadas;

PORQUE-NÃO!?

10 Artigos e preposições não possuem representação; - 11 A representação dos sinais que, em português, carregam traços

de gênero e número receberão o símbolo arroba, marcando a ausências dessas desinências em Libras;

EL@

12 Nas cenas em que a ação é interpretada através de um classificador ou de uma criação/descrição imagética, a transcrição será antecedida pela sigla CL e acrescida de uma descrição sucinta da ação;

CL – GUAXINIM (me) ATACAR

13 As falas serão precedidas pela inicial do nome dos personagens, em negrito, seguidas de dois pontos. No caso de dois ou mais personagens com o mesmo nome, o primeiro receberá o número 1 após a inicial do nome, o segundo, o número 2, e assim, sucessivamente.

C1: Caranguejo – personagem principal C2: Caranguejo – personagem secundário C3: Caranguejo – personagem secundário 2 C4: Todos os caranguejos G: Guaxinim

Para entendermos melhor os códigos de transcrição descritos anteriormente, observemos as frases transcritas a seguir:

G: (eu) OLHO-ESCURECER, TONTO, RESPIRAR NÃO-CONSEGUIR (Minhas vistas estão escurecendo, estou tonto, não consigo respirar)

A transcrição acima mostra que é o personagem guaxinim (G) quem está falando; o eu entre parênteses indica que o sujeito sobre o qual as ações incorrem é o próprio guaxinim; e, no caso do verbo NÃO-CONSEGUIR, existe em Libras um sinal próprio, em forma negativa, não sendo necessário o uso do sinal NÃO ou o movimento obrigatório da cabeça para demonstrar a negação.

C1: OK, (eu) PERTO CAMINHO^ÁGUA (rio) GUAXINIM CL – (me) ATACAR, EU RÁPIDO FUGIR.

(Ok, estou na beira do rio, o guaxinim me ataca, eu fujo rápido)

Analisando o trecho anterior, entendemos que o caranguejo principal (C1) é o personagem que fala; existe, também, a inserção das palavras, entre parênteses: eu, me e rio; as duas primeiras para determinar o sujeito e o objeto da fala e o segundo para indicar o significado do sinal composto CAMINHO^ÁGUA, que quer dizer rio em português. Nessa transcrição, aparece, ainda, a descrição imagética do ataque realizado pelo guaxinim contra o caranguejo, CL – ATACAR. Para tal representação, o intérprete não utiliza sinais específicos de Libras, mas realiza uma interpretação icônica da cena.

Como o vídeo traz interações entre a pesquisadora, o intérprete, o auxiliar de gravação e o cinegrafista, os textos orais também foram transcritos em português, mantendo os traços coloquiais da fala. A seguir, mostramos imagem de trecho da transcrição do DP08, que mistura parte da transcrição oral e parte da transcrição sinalizada:

Figura 48 – Trecho da transcrição do DP08 – Teste de enquadramento

Fonte: dados da pesquisa.

A imagem acima mostra um trecho da transcrição do documento de processo DP08, e, através desta, podemos observar que o início do documento traz um diálogo entre o cinegrafista, o intérprete e a pesquisadora, enquanto o final apresenta parte da transcrição do texto interpretado em Libras, sendo que cada uma é separada e identificada por título em negrito. O uso da transcrição, tanto do conteúdo oral dos diálogos, quanto da sinalização em Libras, visa facilitar o acompanhamento dos vídeos de processo pelos leitores, de modo que não seja necessário recorrer, a todo momento, aos vídeos fonte.

A simplificação das transcrições de Libras para português foi uma forma de não tornar a leitura das mesmas muito complexa, o que foi possível pelo fato desta pesquisa não possuir um foco estritamente linguístico. Contudo, é notório que qualquer tipo de transcrição, por mais detalhada que seja, perde a riqueza dos movimentos, das expressões faciais e corporais enunciadas no ato interpretativo. Ainda que existam códigos e símbolos que tentem descrever tais expressões, a imagem animada, no caso desta pesquisa, ainda é o melhor recurso para representá-las.

Para facilitar a visualização das operações genéticas identificadas entre os documentos de processo, nós criamos, a partir das transcrições anteriores, o quadro 05, intitulado Movimentos genéticos entre as versões da tradução e interpretação em Libras do filme Raccoon & Crawfish. Tal quadro funciona como uma espécie de reconstituição processual escrita, constituída a partir do cotejo entre os documentos DP03, DP08, DP09, DP10, DP11, DP12 e DP15 para disponibilizar a lógica criativa em apreço. Além das glosas das transcrições

mencionadas anteriormente, o quadro traz: o texto das legendas em português, que direcionaram a tradução; os tempos de entrada e saída de cada sinalização em Libras para que possam ser verificadas nos vídeos fonte, se necessário; a duração, em segundos, de cada fala; o número de falas resultante da interpretação; e o texto sinalizado da forma como foi dada ao público.

Para atender aos critérios dos estudos genéticos deixando as mudanças tradutórias e interpretativas claras, adaptamos, no referido quadro, o modelo da transcrição em glosas à transcrição linearizada codificada, considerada de fácil leitura pelo emprego de códigos simplificados, mas que não respeita a topografia do manuscrito; e, também, recorremos à diacrônica linearizada, que simula versões sucessivas da escritura, neste caso, seguindo a ordem de aparição das falas sinalizadas entre os documentos de processo (BIASI, 2010[2000]). Em tal empreitada, utilizamos operadores genéticos, a fim de identificar os principais fenômenos, que regeram essa criação, quais sejam: < > = Acréscimo; [ ] = Eliminação; e Ω = Deslocamento. Também, utilizamos o código / ?/, indicando Inferência, usado nos casos em que não havia certeza de qual foi o sinal proferido.

Apresentamos, a seguir, o quadro mencionado para, a partir dele, continuar com as interpretações genéticas.

170 Quadro05 - Movimentos genéticos entre as versões da tradução e interpretação em Libras do filme Raccoon & Crawfish

DP3 -