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FELIZ MUITO FELIZ CHORANDO SURPRESA RAIVA

3.2.3 Características sintáticas da Libras

Adentrando o universo da sintaxe da Libras, observando a forma como os sinais são dispostos nas frases, como se inter-relacionam para compor orações e emitir um discurso compreensível, percebemos o papel ímpar do espaço de enunciação na sua organização sintática. “A organização espacial dessa língua [...] apresenta possibilidades de estabelecimento de relações gramaticais no espaço, através de diferentes formas” (QUADROS; KARNOPP, 2004, p. 127).

O espaço de enunciação pode atuar na marcação dos sujeitos e objetos de um discurso; alguns verbos têm suas flexões de pessoa e número identificadas dentro do espaço de fala, através da apontação (referência dêitica) ou do direcionamento do olhar; os advérbios de lugar podem ser caracterizados dentro do ambiente enunciativo; o direcionamento do olhar ou do corpo para determinados pontos estabelece relações do sinal emitido com o local direcionado.

Os verbos direcionais, ou verbos com concordância, mostram bem a utilização do espaço para a construção sintática. Esse grupo de verbos incorpora no sinal informações de sujeito e predicado, através do direcionamento do sinal, do olhar, da cabeça, do corpo, durante a sua realização. Pertencem a esse grupo, os verbos ABENÇOAR, ACONSELHAR, AJUDAR, AVISAR, CHAMAR, DAR, ENSINAR, ESCOLHER, MOSTRAR, PERGUNTAR, RESPONDER, VER. Observemos o verbo MOSTRAR, na figura 18:

Figura 18 – Sinal MOSTRAR

Fonte: CAPOVILLA et al., 2017, p. 1896.

O verbo MOSTRAR é sinalizado com a mão esquerda aberta na posição vertical e com a mão direita configurada em 1 com a ponta do indicador tocando a palma da mão esquerda. A direção tomada no movimento das mãos será determinante para a sintaxe da frase. Se a palma da mão estiver voltada para a frente (em direção a alguém) e o movimento for também nessa direção, a frase pode indicar: EU-MOSTRAR-VOCÊ, se for diretamente para a pessoa com quem se fala; EU-MOSTRAR-EL@, se estiver direcionado para uma terceira pessoa; EU- MOSTRAR-TOD@S, se o movimento abranger todas as pessoas do local e, assim, sucessivamente. Contudo, se a palma da mão estiver voltada para o sinalizador e o movimento da mão vier em direção a ele, como se estivesse trazendo algo para si, a sintaxe muda e o sinalizador passa a ser o objeto daquela frase, como por exemplo: VOCÊ-MOSTRAR-EU.

Notemos que, nesses casos, uma alteração no direcionamento do sinal é responsável pela mudança sintática entre sujeito e predicado, bem como, determina se estamos falando da primeira, segunda ou terceira pessoa do singular ou plural. Nesses tipos de verbo, não é necessário utilizar os sinais específicos para os pronomes pessoais EU, VOCÊ, EL@, NÓS, e etc., pois os mesmos deixariam a frase redundante, uma vez que esses referentes já são identificados através da sua associação a um local no espaço.

Sobre o estabelecimento espacial dos referentes dos sujeitos e predicados dos verbos com concordância,

Na língua de sinais brasileira, os sinalizadores estabelecem os referentes associados à localização no espaço, sendo que tais referentes podem estar fisicamente presentes ou não. Depois de serem introduzidos no espaço, os pontos específicos podem ser referidos posteriormente no discurso. Quando os referentes estão presentes, os pontos no espaço são estabelecidos baseados na posição real ocupada pelo referente. Por exemplo, o sinalizador aponta para si indicando a primeira pessoa, para o interlocutor indicando a segunda pessoa e para os outros indicando a terceira pessoa. Quando os referentes estão ausentes da situação de enunciação, são estabelecidos pontos abstratos no espaço (QUADROS; KARNOPP, 2004, p. 130).

Sendo assim, os referentes do discurso na Libras são associados a localizações dentro de um espaço e estes, quando estão presentes, têm as sinalizações direcionadas para eles e, em suas ausências, voltadas para o local convencionado.

As expressões faciais e corporais, ou expressões não-manuais, também carregam traços sintáticos e auxiliam na formação e coerência das frases em Libras. Diferente das expressões afetivas, que expressam sentimentos e são comuns tanto em línguas orais quanto sinalizadas, as expressões gramaticais se colocam como específicas das línguas de sinais, desempenhando funções sintáticas nas frases e orações, além de ter caráter obrigatório em vários contextos. O direcionamento do olhar e da cabeça, como demonstrado com os verbos de concordância, já mostram a gramaticalidade desses gestos na especificação de sujeito e predicado nas frases, mas os traços gramaticais das expressões não-manuais não se esgotam aí; eles também desempenham papel importante na formação das frases afirmativas, interrogativas, negativas e relativas, por exemplo.

Na língua portuguesa, a entonação é responsável pela diferenciação entre tipos de frases, no discurso oral. A frase “Maria vai à escola hoje”, a depender da entonação do falante, pode ser uma frase afirmativa, interrogativa, exclamativa ou imperativa e, na conversação, a melodia utilizada contará como essencial para a identificação do tipo de frase empregada. Na Libras, por sua vez, são as expressões faciais que ocupam o papel de diferenciação entre as frases.

Em frases afirmativas, costuma-se manter uma expressão neutra ou utilizar o movimento afirmativo da cabeça durante a enunciação; nas negativas, a depender do caso, utiliza-se o movimento da cabeça para os lados para negar a sentença ou uma expressão facial na qual abaixa-se os cantos da boca ou arredonda-se os lábios, além de ocorrer o abaixamento das sobrancelhas e uma inclinação leve da cabeça para baixo; frases interrogativas possuem várias formas de marcação gramatical, a depender do tipo, sendo as mais comuns identificadas pelo franzir da testa e elevação da cabeça (perguntas com pronomes interrogativos que, quem, quando, onde), pelo abaixamento da cabeça com elevação das sobrancelhas (perguntas sim- não), olhos apertados, testa franzida, lábios comprimidos e ombros inclinados para um lado ou para traz (dúvidas ou desconfiança)20 (QUADROS; PIZZIO; REZENDE, 2008). Assim como no português falado, a entonação adequada é necessária para a compreensão do texto, na Libras, as expressões não-manuais têm caráter obrigatório para um discurso claro e coerente.

20 Imagens das expressões não-manuais citadas podem ser vistas em Quadros; Karnopp, 2004 ou em Quadros; Pizzio; Rezende, 2008.

A língua falada é marcada por traços coloquiais e permite uma liberdade maior na ordem frasal do que o português escrito. Na Libras, quando sinalizamos, também dispomos de várias possibilidades de ordenação frasal, mas a escolha delas não é aleatória ou arbitrária; cada ordem frasal costuma se adequar a determinados critérios sintáticos. A ordem mais usual dessa língua é a SVO (sujeito + verbo + objeto) (FELIPE, 1989, FERREIRA-BRITO, 1995 e QUADROS; KARNOPP, 2004), como por exemplo: EL@ GOSTAR BRINCAR (Ele gosta de brincar).

Figura 19 – Ordem frasal SOV

Fonte: Imagens adaptadas de CAPOVILLA et al., 2017.

A Libras também utiliza construções frasais nos formatos SOV, OSV, OSVO e SSVO, mas, nesses casos, eles obedecem a critérios gramaticais. Quadros e Karnopp (2004) listam alguns desses critérios, dos quais citaremos três21. Para as autoras, as formas SOV e OSV ocorrem quando, nas sentenças, aparecem verbos de concordância com marcações não- manuais, de modo que sem tais expressões, as frases seriam consideradas agramaticais. No entanto, se o objeto for uma oração subordinada, a ordem frasal permanece SVO, mesmo existindo marcações não-manuais.

A topicalização é outro recurso gramatical, que permite mudanças na ordem frasal. Essa estratégia é utilizada quando o tema do discurso aparece destacado e posicionado no início da frase de modo que a conversa vá tecendo considerações a respeito do tema mencionado. As construções topicalizadas permitem sentenças SOV (ou SSVO – sujeito duplicado) e OSV (ou OSVO – objeto duplicado). Vejamos um exemplo de topicalização:

21 Para ver exemplos de todas as possibilidades de organização frasal citadas pelas autoras, consultar Quadros; Karnopp, 2004, p. 139-184.

Figura 20 – Exemplo de sentença topicalizada

Fonte: Imagens adaptadas de CAPOVILLA et al., 2017.

No exemplo da figura 20, temos uma oração com estrutura OSVO. O tópico do assunto é um objeto destacado no início da frase (FRUTAS) e esse mesmo objeto (agora representado pelo sinal BANANA) ocorre duplicado no final da frase por uma palavra de correspondência semântica relacionada ao tópico sobre o qual se fala, FRUTAS, no caso mencionado. Essa duplicação pode ocorrer, também, com o mesmo sinal utilizado no tópico, como por exemplo: NATAÇÃO, PEDRO GOSTAR NATAÇÃO.

Um terceiro exemplo de ordenação frasal em Libras é a estrutura (S) V (O), na qual os sinais específicos para sujeito e objeto não são utilizados; porém, o uso de um verbo de concordância é suficiente para a compreensão dos elementos da sentença, conforme figura 21.

Figura 21 – Oração (S) V (O)

Fonte: Imagens adaptadas de CAPOVILLA et al., 2017.

Nos exemplos acima, a ocorrência do verbo perguntar é suficiente para determinar sujeitos e objetos da frase. A concordância direcional do movimento é responsável por essa determinação, como mencionado anteriormente. Quando executado com o dedo indicador movendo-se do pulso para a frente (imagem da esquerda), temos construções, como: Eu te pergunto, Eu perguntei a ela, Eu perguntei a eles, etc. Na imagem da direita, a direção do movimento é modificada partindo da ponta dos dedos em direção ao pulso, ou seja, no sentido do falante. Nesse caso, temos frases como Você me perguntou, Ela/Ele me perguntou. Cabe ressaltar que os argumentos só podem ser ocultos quando os referentes estão claros no discurso. Há muito mais o que se abordar sobre a fonologia, morfologia e sintaxe da Língua Brasileira de Sinais; contudo, trouxemos apenas alguns aspectos, que serão necessários à análise

FRUTAS, EL@ GOSTAR BANANA

genética proposta, posteriormente, neste trabalho. Partimos, então, para a discussão sobre tradução audiovisual, janela de Libras e acessibilidade.