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4. Os têxteis chineses no universo religioso português (séculos XVI-XVIII)

4.1 Caracterização morfológico-funcional

Relativamente aos ornamentos enquadráveis no grupo do vestuário litúrgico, as alfaias estudadas correspondem na sua maioria a casulas (43), seguidas de dalmáticas (29) e, em muito menor quantidade, dos pluviais (11) e dos véus de ombros (4). No caso das casulas, aquelas de modelo espanhol distinguem-se entre o acervo sinoportuguês inventariado - caracterizado por um perfil em forma de pêra ou viola e sebastos em coluna, em ambos os panos17. Ao que tudo aponta, trata-se de uma morfologia original do século XVI e particular das casulas espanholas e portuguesas, a qual se apresenta dotada de uma menor altura mas, em contrapartida, de uma largura muito significativa (ainda mais acentuada nas costas). De acordo com Jean-Paul Desroches, este modelo de corte, actualmente denominado viola, corresponde ao de uma veste posterior à Contra-Reforma datável do século XVII18.

Ainda que o mesmo corte se possa ter mantido em uso na referida centúria cremos poder recuar a sua utilização entre nós, pelo menos, ao final de Quinhentos a ajuizar pelo seguinte comentário de Gianbattista Confalonieri, em 1593, aquando da sua passagem por Portugal: “Neste capítulo da Religião, falaremos das vestes sacras das igrejas e sacristias, no que diferem das nossas de Roma. Primeiramente, as casulas são estreitas de ombros e larguíssimas em baixo, e quase todas costumam ter em volta uma fita de veludo de três dedos”19. É exemplo paradigmático desta tipologia a casula da Sé catedral de Leiria (FICHA nº

6) que, não obstante a sua ainda considerável amplitude foi, todavia, alvo de intervenções responsáveis pelo corte de grande parte das cercaduras que a circunscreviam (na actualidade apenas reconhecível ao nível dos ombros).

Além desta morfologia identificou-se uma casula cortada segundo modelo romano, entre o acervo do Museu Nacional de Arte Antiga (FICHA nº 22), caracterizado pela união dos panos da frente e das costas de perfil rectilíneo não ao nível dos ombros mas do peito, e por um sebasto em cruz na frente e em coluna nas costas. Por outro lado, reconhecem-se algumas

17Cf. SIFFRIN, Pietro; MORTARI, Luisa - Pianeta. In AAVV, Enciclopedia Cattolica. Vaticano: Libro Cattolico

- Enciclopedia Cattolica, 1952, vol. IX, cols. 1328-1331.

18 JOHNSTONE, Pauline - High Fashion in Church. The place of church vestements in the History of art from the

ninth to the nineteenth century. Leeds: Maney, 2002, p. 83, 142; AAVV - Do Tejo aos Mares da China. Uma Epopeia Portuguesa. Paris: Réunion des Musées Nationaux, 1992, p. 164.

19 CONFALONIERI, Gianbattista - Da Grandeza e Magnificência da Cidade de Lisboa. In VILLALBA Y

ESTAÑA, Bartolomé de, ed. - Por terras de Portugal no século XVI. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2002, p. 198 (Ms. 1593).

casulas cuja feitura denuncia soluções algo híbridas - certamente consequência do desconhecimento de formulários específicos por parte de quem as produziu. Assim se observa numa destas vestes da colecção do mesmo museu (FICHA nº 9), com sebastos afins aos do modelo espanhol (em coluna em ambos os panos) mas com costas com formato mais rectilíneo e verticalizante próximas daquelas do arquétipo romano, e ostentando um pano da frente muitíssimo estreito ao nível dos ombros/peito.

O espólio estudado parece acompanhar a evolução da casula em Portugal, porquanto outros modelos datáveis do século XVIII revelam morfologias ligeiramente trapezoidais, de novo compridas e estreitas ao gosto da época sendo que, não raras vezes, o sebasto é pouco destacado perante a estrutura organizativa da composição que o anima, à base de flores20. Considera-se um bom testemunho das casulas deste período aquela da igreja de São Sebastião, em Lagos, depositada no Museu Municipal Dr. José Formosinho situado na mesma localidade (FICHA nº 31).

Acerca das dalmáticas que integram o corpus reunido, também estas apresentam alguma diversidade no que respeita à sua amplitude e perfil mais ou menos rectilíneo. Assim sendo, identificaram-se alguns espécimes muito amplos e de corte acentuadamente angular, como se reconhece nas dalmáticas da igreja de Santiago, em Álcácer do Sal (FICHA nº 11), também pontuadas por um sebasto em coluna em ambos os panos da veste, em oposição a outras de modelo afim ao da forma romana, caracterizadas por uma ampla banda segmentada em três painéis horizontais de decoração autonomizada, na frente e nas costas de que é exemplo uma dalmática do M.N.A.A. (FICHA nº 27) (ESQUEMA 2).

Ainda no domínio do vestuário, cumpre mencionar os pluviais inventariados, muito em particular o exemplar em exposição também no Museu Municipal de Lagos (FICHA nº 46), o único que tivemos oportunidade de registar dotado de uma morfologia coincidente com o denominado modelo francês (ESQUEMA 3). Trata-se de uma peça caracterizada por um campo de formato ligeiramente inferior ao de um semi-círculo e pela colocação do capuz segundo o seu eixo axial mas de forma sobreposta ao sebasto e não abaixo deste elemento, como sucede nos modelos espanhol e romano observados ao longo da pesquisa.

Com respeito aos paramentos de altar, nos quais se incluem as roupas litúrgicas e as guarnições do próprio altar - representadas pelos véus de cálice (8), as bolsas de corporais (4), as palas (2) e os frontais de altar (24) -, é de assinalar que no caso das peças catalogadas que integram paramentos, as mesmas, tal como prescrito, não só se apresentam manufacturadas

com tecido de cor e matéria-prima idêntica, como também a sua ornamentação se manifesta em sintonia com a dos programas decorativos que animam os remanescentes ornamentos sacros com que fazem conjunto. Atente-se no paramento da igreja de Santo Antão, em Évora, quase completo (composto por casula, frontal de altar, pala, estola e manípulo, FICHAS nº 2, 3, 4 e 5) e no qual é possível observar decoração de teor vegetalista e floral organizada e adaptada à morfologia das alfaias ainda que segundo versões compositivas mais ou menos simplificadas, em função da sua dimensão.

No caso das obras localizadas de forma avulsa, como é o caso dos véus de cálice pertencentes ao Museu de Ciência da Universidade de Lisboa e à colecção do M.N.A.A. (FICHAS nº 1 e 18), estes são sobretudo animados por medalhões circulares centrais com trigrama sacro encimado por cruz (e três pregos em contrachefe) circunscritos por resplendores de raios pontiagudos lisos e ondulantes.

Acerca dos paramentos de igreja estudados, em cujo agrupamento se englobam os adereços têxteis empregues para adornar tanto o altar como os muros do templo e o seu mobiliário, foram vários os espécimes cadastrados, como panos de armar, alcatifas, sanefas, cortinas, painéis e um dossel. Muito embora as obras que integram este núcleo denotem características passíveis de um uso indiferenciado, tanto no âmbito religioso como no profano, todas aquelas recentemente elencadas provêm ou ainda existem em acervos eclesiásticos nacionais, não deixando qualquer margem para dúvidas em relação ao seu contexto funcional primitivo. Em todo o caso, e no que cumpre à grande mole inventariada, é difícil quantificar com segurança todas as obras passíveis de serem enquadradas nesta categoria, uma vez que muitas não só se associam a outras entidades que não instituições religiosas como podem, mesmo nessas condições, ter sido enquadradas em armações religiosas solenes21.

Por outro lado, e perante a panóplia de panos envolvidos nas armações têxteis das igrejas, é admissível que, por vezes, a designação tipológica atribuída às peças inventariadas se revele insuficiente porquanto não indicia o seu destino no interior do templo. Referimo-nos, por exemplo, aos três espécimes da colecção do M.N.A.A. e a um outro de enormes dimensões ainda localizado na Sé catedral de Lisboa (FICHA nº 39)22 cuja denominação adoptada - painéis e pano de armar - se reconhece mais lata que o desejável. Importa de igual modo advertir para o facto de alguma da nomenclatura empregue na identificação das obras se

21 Sobre esta questão cf. O sub-cap. 1.3 Proveniência e sacralidade dos têxteis religiosos e o cap. 3. A angariação

de adereços e a manufactura dos têxteis utilizados nas celebrações.

22 Cujo acesso directo à peça com vista à sua observação e ulterior estudo se afigurou possível graças à preciosa

colaboração dos eminentes Cónego Lourenço e Cónego Marim do Patriarcado de Lisboa, a quem endereçamos o nosso especial agradecimento.

revelar arcaica não possuindo na actualidade o mesmo significado que comportou no período em estudo, como se reconhece com a expressão alcatifa. Em todo o caso, optou-se pela sua manutenção, na medida em que é assim que as obras que lhe correspondem são referidas na maior parte da documentação coeva consultada.

Ainda entre as peças recentemente inventariadas merece especial atenção um pequeno manto doado ao M.N.M.C., em Coimbra (FICHA nº 25), o único espécime representante da indumentária de imagens localizado até ao momento. Contanto que se desconheça o tipo de imaginária a que se destinava, o reconhecimento desta alfaia permitiu confirmar, do ponto de vista material, o que já a leitura de alguns documentos havia indiciado, isto é, o envolvimento dos chineses na produção de raiz de obras integráveis nesta tipologia - por exemplo, em 1635 Francisco Carvalho Aranha enviou para a Confraria da Senhora-a-Branca da igreja com a mesma invocação, na cidade de Braga, um manto para a imagem de Nossa Senhora, sendo que, como não o esclareceram acerca da cor que havia de ter, se decidiu o intermediário pelo azul, em conformidade com o conselho de Fr. Francisco do Pópulo, religioso agostinho e então superior do convento da mesma ordem construído em Braga23.

Também a descoberta desta obra permite atestar da partilha de soluções compositivas e temáticas entre espécimes sagrados e profanos. É certo que a comparação de algumas das peças estudadas apontava já para a coexistência de figurinos entre os dois domínios, ainda que a mesma decorresse sobretudo da conversão de obras de um para o outro sector - em concreto de colchas, entretanto transformadas nas mais diversas alfaias. Todavia, embora o presente manto evidencie um programa decorativo identificado com assiduidade como opção decorativa das cercaduras que tendem a caracterizar as colchas chinesas produzidas para o mercado de exportação no decurso do século XVIII, o mesmo foi devida e previamente adaptado à morfologia circular que caracteriza a tipologia da obra.

Por fim, e no quadro do último grupo composto pelos ornamentos processionais (4), cumpre assinalar os dois pálios identificados nos acervos da igreja de São João Baptista, em Alhandra, e de São Bartolomeu, em Borba. Trata-se, em ambos os casos, de exemplares de estrutura maleável, compostos por sobrecéu e respectivos pendentes ou lambrequins sustentados por oito e quatro varas, cada um.

Ainda do ponto de vista morfológico-funcional, importa sublinhar que se muitos dos espécimes do conjunto estudado se assumem como produtos originais (ainda que alguns deles

23 Cf. ARQUIVO DA IRMANDADE DE SANTA CRUZ - Livro 1º das memorias da erecçao da Confraria de

Santa Cruz 1581-1790 compilado em 1850, Carta de Francisco Carvalho Aranha aos Senhores Mordomos de Nossa Senhora a Branca, Macau, 10 de Outubro de 1635, fl. s.n. entee fls. 111 e 112 [disponível no Arquivo da

tenham já sido montados em Portugal) outros derivam, no entanto, de processos de conversão de peças já existentes. Como é sabido24, o reaproveitamento de têxteis foi uma prática comum

na sociedade portuguesa moderna, na qual também os espécimes de proveniência chinesa participaram. Este aspecto pode ser atestado através da análise de artigos têxteis integráveis nos diferentes agrupamentos elencados25. Tomemos como referência o dossel pertencente, no passado, ao convento de São Bento de Avis e na actualidade exposto no Museu de Arte Sacra da Sé catedral de Évora (FICHA nº 6), o qual procede de uma (ou duas) alcatifa(s) de estrado transformada(s), com essa finalidade, em 1887. Do mesmo modo se reconhece que o pálio da igreja de Alhandra deriva da alteração de uma colcha, cujo respectivo campo se converteu no sobrecéu e a cercadura nos lambrequins. Idêntica origem parece ter tido o véu de ombros da igreja de Borba, também resultante do aproveitamento das zonas do medalhão central do campo e dos enrolamentos de uma colcha, ainda que com diferente repertório decorativo.

Correlativamente a estas situações, cumpre acrescentar que no caso do véu de ombros e do pálio a intervenção quase se limitou ao corte e montagem de fragmentos segundo a morfologia desejada e os princípios básicos da simetria. Já no dossel houve necessidade de acrescentar uma barra de remate à volta do respectivo espaldar e pendentes, sendo que o suporte adoptado assim como a solução compositiva patenteada denotam preocupação por um efeito de harmonia e de conjunto.