• Nenhum resultado encontrado

2. Funcionalidade e evolução morfológica

2.2 Paramentos de altar

Neste agrupamento, incluem-se as roupas litúrgicas52, usadas no rito da missa ou na exposição e trasladação Eucarística, bem como as guarnições do próprio altar. A bibliografia consignada ao estudo dos paramentos de altar é francamente menos significativa quando comparada com aquela produzida no contexto do vestuário litúrgico, como já tivémos ocasião de referir. Este aspecto é tão evidente na quantidade como no desenvolvimento que se regista em torno dos temas abordados, nomeadamente no que se refere à sua historiografia e evolução formal. Por esse motivo, a maior parte da informação recolhida prende-se sobretudo com questões de teor funcional.

• Bolsa de corporal

Designada nos documentos medievais como capsa corporalium e domus corporalium, o seu aparecimento teve lugar no decurso do século XIV - como forma de evitar a exposição do corporal quando a caminho do altar e assegurar a sua decência e reverência - e o seu uso tornou-se obrigatório por prescrição das “Rúbricas “do Missal de Pio V53.

Esta bolsa ou invólucro de tecido, com estrutura rígida cartonada formada por dois elementos quadrangulares unidos e abertos ao modo dos livros, serve para guardar o corporal54

e é assente sobre o cálice e a patena cobertos pelo véu de cálice, quando dispostos sobre o altar antes e depois da celebração da missa55.

50 Cf. ALDAZÁBAL, José - Véu de ombros. In Dicionário Elementar de Liturgia.

www.portal.ecclesia.pt/ecclesiaout/liturgia/liturgia_site/dicionario/dici_ver.asp?cod_dici=464.

51 Cf. SIFFRIN - op. cit., cols. 1174-1175.

52 As roupas litúrgicas contemplam as toalhas do altar, o corporal, a pala e o purificatório ou sanguinho, o

manustérgio e a toalha da comunhão.

53 Cf. FALCÃO, José António; GARCIA, Madalena Farrajota Ataíde; SANTANA, Maria Manuela - Casula,

Estola, Manípulo e Bolsa de Corporais. In FALCÃO, José António, dir. - As Formas do Espírito. Arte Sacra da

Diocese de Beja. Beja: Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2003, tomo III, p.

172; ORSINI, Luciano - La Sagrestia Papale. Suppellettili e paramenti liturgici. Milão: Edizioni San Paolo, 2000, p. 190; IGREJA CATÓLICA - op. cit.

54 Pano de linho branco, consagrado, que se põe no altar sobre a toalha e por cima do qual se colocam os vasos

sagrados ou as espécies eucarísticas.

55 No caso da bolsa de corporal utilizada para a adoração do Santíssimo Sacramento esta é, em regra, maior e feita

em seda ou num tecido prateado ou dourado, sendo que também nos pontificais patriarcais, no cortejo e a servir na cerimónia - denominada bolsa de corporal de aparato -, pode apresentar-se com características idênticas às bolsas de uso comum mas com grandes dimensões; cf. Bolsa de corporal. In ROCCA; GUEDES - op. cit., p. 73.

Pelo menos um dos lados deve apresentar-se coberto com tecido da mesma cor e matéria-prima que o usado nos paramentos sacros, enquanto o interior pode ser de linho ou seda56. Do mesmo modo deve a sua ornamentação acompanhar aquela dos paramentos do

oficiante ainda que, tal como no véu de cálice, não seja obrigatório o recurso a elementos decorativos ou simbólicos como a cruz57.

• Pala

No passado, e no âmbito da redução de dimensões que caracterizou o corporal na Idade Média - até então com funções equivalentes à da toalha de altar, à epoca ainda não instituída -, o véu de cálice passou a apresentar-se coberto por um outro corporal mais pequeno, correspondente à actual pala58. Daí que se distinguia a palla altaris, em alusão à função que partilhava com o corporal enquanto toalha de altar59, da palla corporalis, não mais que o actual véu de cálice.

No contexto alegórico medieval, a pala simbolisava sobretudo o sudário, enquanto o corporal remetia expressamente para a Verónica60. Para a pala converge ainda a alusão à “pedra que se pôs à porta da sepultura do Senhor Iesus”61.

A pala designa, na actualidade, um pano sagrado, rigidamente engomado, composto por duas peças de tecido, geralmente reforçadas no seu interior por cartão, sendo que a sua face anterior deve ser sempre de linho puro, tal como o corporal, e a superior pode ser em seda e devidamente ornada.

No contexto litúrgico corresponde a um pequeno quadrado, de cerca de 20-25 cm de lado62, usado para cobrir a patena quando colocada sobre o cálice especialmente no período

que medeia entre o ofertório e a comunhão63.

• Véu de cálice

O véu de cálice exibe morfologia quase quadrada e dimensões suficientemente grandes capazes de garantir a cobertura se não na íntegra, pelo menos, da parte da frente do cálice

56 Cf. DANTE, Enrico - Borsa. In AAVV - Enciclopedia Cattolica, vol. II, col. 1934. 57 Cf. Ibidem e também ROULIN - op. cit., p. 153.

58 Cf. CATTANEO, Enrico - Corporale. In AAVV - Enciclopedia Cattolica, vol. IV, col. 598.

59 Cf. Liturgical Objects and Vessels. In MURRAY, Peter; MURRAY, Linda - Oxford Dictionary of Christian

Art. 3ª ed. Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 301.

60 Cf. SIFFRIN, Pietro - Palla. In AAVV - Enciclopedia Cattolica, vol. IX, col. 638. 61 Cf. ANDRADE - op. cit., p. 108.

62 De acordo com Roulin, a pala deve ser sempre ligeiramente mais pequena que a bolsa de corporal; cf. ROULIN

- op. cit., p. 153.

(encimado por sanguinho, pala e patena) antes e depois da celebração da missa. Sinal de respeito por este vaso sagrado, que deve permanecer tapado até ao momento do ofertório e novamente depois da comunhão, o véu de cálice acompanha, em termos cromáticos, a cor estabelecida pelo calendário litúrgico para o dia apresentando-se em concordância com a da casula envergada pelo oficiante. Da mesma forma tende a comungar do programa decorativo patenteado pelo paramento, ainda que não lhe esteja prescrita nenhuma regra que obrigue à sua decoração ou sequer à presença de um símbolo religioso como a cruz que, quando presente, pode surgir ao centro ou num dos lados do véu64. Em termos simbólicos, diz-nos Lucas de Andrade na sua obra Theosebia que “o veo do Caliz significa a escuridade que cubrio a terra na morte de Christo, em que enlutandose o sol, & cubrindose, ficou o mundo em treuas parecendo noite escura, tambem para mostrar que são escondidos os misterios do sacrificio”65.

• Frontal de altar

Supõe-se que, desde muito cedo, se tenha dotado a mesa de altar de uma certa elegância e riqueza, uma vez presente a multiplicidade de significados que para si convergem, enquanto símbolo primeiro de Cristo e da unidade do clero e da Igreja66. Com essa finalidade, recorreu-se aos mais diversos materiais nobres, como os metais, a madeira, o marfim, as pedras preciosas e os tecidos67. Deve contudo advertir-se que o investimento no revestimento dos altares conheceu também motivações de carácter prático pelo século IV, quando então se procedeu, em Roma, à trasladação dos túmulos de alguns mártires dignos de veneração das catacumbas para as basílicas - os novos altares dispunham de uma abertura destinada a permitir o acesso ao espaço da tumulação, pelo que se introduziu um véu ou um pano que resguardasse o altar das poeiras e sujidade, da curiosidade alheia e evitasse eventuais profanações68. Pelos séculos VII e VIII torna-se habitual o uso de ricos panejamentos, muitas vezes guarnecidos de bordados a ouro, sendo que os mesmos começam a ser feitos em painéis

64 Cf. ROULIN - op. cit., p. 153; Véu de cálice. In ROCCA; GUEDES - op. cit., p. 75; Le VAVASSEUR, P. -

Cerimonial Romano. Lisboa: Typographia do Diário da Manhã, 1884, p. 26, nota 2.

65 ANDRADE - op. cit., pp. 108-109.

66 Cf. LESAGE - op. cit., p. 19. Sobre os significados do altar cf. DURAND - op. cit., p. 196.

67 Sobre alguns dos mais antigos frontais de altar, realizados nos mais diversos materiais, veja-se RIGHETTI - op.

cit., pp. 475-477; MORTARI - Paliotto. In AAVV - Enciclopedia Cattolica, vol. IX, col. 636-637.

68 Cf. Antependium. In MURRAY; MURRAY - op. cit., p. 25; FALCÃO, José António - Frontal de altar. In

FALCÃO, José António, dir. - op. cit., tomo I, p. 267. Robert Lesage acrescenta que as cerimónias tinham lugar sobre os próprios sepulcros dos mártires, os quais serviam de altar; cf. LESAGE - op. cit., p. 13-14. Sobre o significado do altar e a sua evolução leia-se por exemplo: RIGHETTI - op. cit., p. 467-475; ROQUE, Maria Isabel Rocha - Altar Cristão. Evolução até à Reforma Católica. Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2004; PLAZAOLA - op. cit., p. 81-99.

de metal e esmaltes, ora com um carácter móvel ora já mais como um elemento de aparato e magnificência do altar69.

Até ao século XI, o revestimento a que os textos antigos se reportam tendia a cobrir toda a mesa equivalendo, no entender de Righetti, a um verdadeiro “vestido sagrado” do altar70 usado com o objectivo de o manter invisível, uma vez presente a sua sacralidade71. A partir de então, com o adossar da ara à parede de topo da ábside e a gradual difusão das estruturas retabulares72, o mesmo passa a confinar-se à sua face anterior, assumindo as designações antependium, ante-altar ou frontal73, correspondentes à sua forma actual.

Ainda que o Caerimoniale Episcoporum não prescreva o frontal, recomenda o seu uso que deve, no caso de ser adoptado, acompanhar a cor da festa e do tempo eclesiástico74. Este aspecto é obrigatório em duas ocasiões específicas: em ofícios fúnebres e no dia dos Finados, (2 de Novembro) em que o frontal deve ser violeta e no caso do frontal do altar do Santíssimo Sacramento, branco75.

Com excepção da necessidade de acompanhar as cores do calendário litúrgico e da recomendação de S. Carlos Borromeu no sentido do frontal dever ter uma cruz no centro, uma imagem do santo ou santos da invocação do altar onde é aposto ou uma outra efígie religiosa76 não se conhece nenhuma outra regra que determine a decoração do frontal. Esta tende, ainda assim, a manifestar-se em consonância com a dos programas ornamentais que animam os paramentos com que faz conjunto, talvez porque, entre Seiscentos e meados de Setecentos, um

69 Cf. MURRAY; MURRAY - op. cit., p. 25. 70 Cf. RIGHETTI - op. cit., p. 476.

71 Cf. MONTELLI - op. cit., p. 37.

72 Trata-se de pequenos quadros rectangulares de pouca altura com a representação esculpida, pintada ou bordada

da efígie do Senhor, da Virgem ou dos Santos ou de cenas das suas vidas apostos, por norma, na parte posterior da mesa de altar com a finalidade de fomentar a piedade do celebrante e dos fiéis que assistiam à missa. Se numa primeira fase apresentavam dimensões modestas, com vista à sua fácil remoção, rapidamente evoluíram para estruturas mais complexas, imponentes e fixas; cf. RIGHETTI - op. cit., p. 469. Peter e Linda Murray referem ainda que, talvez como forma de evitar a maior exposição destes painéis, quando colocados na frente do altar, os mesmos terão sido transferidos para cima do altar, ao nível da parede, dando origem ao que denominam dossale (do lat. Dorsal) que, na sua forma primitiva, foram panos pintados e, mais tarde, se converteram em estruturas retabulares mais complexas; cf. Dossal, In MURRAY; MURRAY - op. cit., p. 155. Ainda sobre os frontais de altar têxteis medievais leia-se o estudo de WEILANDT, Gerhard - Part of the Whole: Medieval textile frontals in their liturgical context. In WETTER, Evelin, coord. - Iconography of Liturgical textiles in the Middle Ages. Riggisberg: Abegg-Stiftung, 2010, Riggisberger Berichte; 18, p. 33-50.

73Cf. MORTARI, Luisa - Paliotto. In AAVV, Enciclopedia Cattolica, vol. IX, col. 635; RIGHETTI - op. cit., p.

476-477.

74Cf. ROULIN - op. cit., p. 154; IGREJA CATÓLICA. Papa 1592-1605 (Clemente VIII) - Caeremoniale

Episcoporum. Ed. Manlio Sodi e Achille Maria Triacca. Cidade do Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2000 (1ª

ed. 1600).

75Cf. Antependium. In BERTHOD; HARDOUIN-FUGIER - op. cit., p. 76.

76 BORROMEU, S. Carlos - Instructionum Fabricae et Supellectilis Ecclesiasticae. Libri II. Ed. de Stefano della

ornamento litúrgico só era tido como completo quando integrava um frontal devidamente adequado77.

De acordo com Gerhard Weilandt, o uso dos frontais ocorria sempre que a iconografia e o tamanho eram apropriados, não se confinando a um fim ou espaço específico sendo que, da mesma forma, estas alfaias deixavam de ser empregues nas festas principais, limitando-se a sua presença aos serviços ordinários quando apresentavam sinais de degradação78.

Este revestimento móvel, apreendido como a verdadeira decoração litúrgica do altar79, apresenta uma morfologia quadrangular (ESQUEMA 4), cujas dimensões devem ser um pouco maiores que as do altar, tanto em comprimento como em altura de modo a que fique todo coberto. Segundo as Instrucciones de S. Carlos Borromeu, o frontal deve ser bastante alto de molde a que a base do altar possa ser ocultada por uma cornija aderente ao estrado do altar. Na sua parte superior e na distância de um palmo deverá ser ornado com uma banda de ouro ou seda e franjas, sobretudo se fôr muito rico80.

Embora os frontais têxteis tenham sido muitas vezes preteridos em virtude da sua maior fragilidade e não raras vezes onerosidade, em benefício de estruturas fixas permanentes mais resistentes (em madeira entalhada dourada, embutidos marmóreos ou azulejo, por exemplo) os mesmos revelam uma extraordinária influência sobre os seus substitutos. Este aspecto é particularmente expressivo na transposição da estrutura compositiva que grosso modo os caracteriza - mantendo a frontaleira ou sanefa, o pano uno ou compartimentado em campos separados por tiras ou barras ornamentais verticais, por sua vez articulados com uma barra inferior - ou na reprodução mimética, noutros materiais e tecnologias de fabrico, das componentes e do vocabulário têxtil utilizado neste contexto, como sejam a sugestão das rendas e franjas usadas no remate da frontaleira ou os padrões em malhas ogivais que tanto particularizaram os tecidos espanhóis e italianos dos séculos XVI e XVII81.

77 Cf. VÉRON-DENISE; PICAUD; FOISSELON - op. cit., p. 65.

78 Cf. WEILANDT - op. cit., p. 34. Por exemplo, de acordo com o inventário dos bens da igreja de São Roque de

1814, um dos frontais do altar-mor, de damasco branco bordado de ouro com galões finos “passou para a Capela

do Sacramento”; cf. ARQUIVO HISTÓRICO DA MISERICÓRDIA DE LISBOA, Inventário dos Ornamentos, Alfaias e outros Moveis da Fabrica da Igreja Real da Santa Caza da Misericórdia de Lisboa, feito em 26 dias do mez de Julho de 1814, fl. 3 [disponível no Arquivo Histórico da Misericórdia, Lisboa, Portugal].

79 Le VAVASSEUR - op. cit., p. 38. 80 BORROMEU - op. cit., p. 311-313.

81 Estes aspectos têm sido sobejamente notados nos estudos realizados no âmbito dos frontais de altar em azulejo,

como aquele da autoria de MECO, José - Os Frontais de Alta Quinhentistas e Seiscentistas de Azulejo. Sep.