• Nenhum resultado encontrado

Como Manuel Sánchez sublinha, a principal e a autêntica finalidade dos ornamentos litúrgicos é realçar com excepcional qualidade os valores expressivos e simbólicos do culto. É essa função que lhes outorga a sua verdadeira razão de ser, acrescentando que, antes de serem manufacturas têxteis ou obras de arte, são elementos detentores de um carácter sagrado, próprios do rito litúrgico1.

Todavia, além das preciosas funções que cumprem na cerimónia religiosa, ao aludirem à presença do divino, os paramentos têxteis exprimem, de igual forma, a devoção e a honra que o colectivo de fiéis concede a Deus e aos santos, pelo modo como o manifestam e materializam na feitura das próprias peças - quase sempre dotadas de uma elevada qualidade artística onde a cor, a abundância e preciosidade dos materiais e a beleza dos programas decorativos que ostentam se conjuga com a mestria técnica e de execução.

Estas alfaias, enquanto verdadeiras formas de expressão da fé, promovem e potenciam todo um conjunto de emoções e manifestações sensoriais de apelo ao transcendente que aproximam os crentes da divindade, conduzindo o espírito dos homens até Deus2. Assim o reconhece Magda Tassinari, a respeito da colecção têxtil da capela de São João Baptista da igreja de S. Roque, ao observar: “A preciosidade e a beleza destes paramentos [...] denunciam plenamente o motivo teológico que havia estado na base do nascimento deste tipo de peças de utilização litúrgica, instrumentos que auxiliam a estabelecer contacto com o Mistério, a contemplar a Beleza Divina, a ter a percepção sensorial, através do rito, Daquele que é Transcendente”3.

Pelos motivos aduzidos os paramentos afiguram-se como incontornáveis veículos de transmissão das mais elevadas expressões de arte do seu tempo, associando-se ao que de melhor se produz em cada momento da história do homem.

1 Cf. PÉREZ SÁNCHEZ, Manuel - La Magnificencia del Culto. Estudio histórico-artístico del ornamento

litúrgico en la diócesis de Cartagena. Murcia: Real Academia Alfonso X el Sabio - Bispado de Cartagena, 1997,

p. 18.

2 Como se lê no parágrafo 122 do capítulo VII sobre a Arte Sacra e as Alfaias Litúrgicas da Constituição

Conciliar Sacrosanctum Concilium: “Entre as mais nobres actividades do espírito humano estão, de pleno direito, as belas artes, e muito especialmente a arte religiosa e o seu mais alto cimo, que é a arte sacra. Elas tendem, por natureza, a exprimir de algum modo, nas obras saídas das mãos do homem, a infinita beleza de Deus, e estarão mais orientadas para o louvor e glória de Deus se não tiverem outro fim senão o de conduzir piamente e o mais eficazmente possível, através das suas obras, o espírito do homem até Deus. É esta a razão por que a santa mãe Igreja amou sempre as belas artes, formou artistas e nunca deixou de procurar o contributo delas, procurando que os objectos atinentes ao culto fossem dignos, decorosos e belos, verdadeiros sinais e símbolos do sobrenatural.”; cf. http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat- ii_const_19631204_sacrosanctum-concilium_po.html.

3 TASSINARI, Magda - A Colecção Têxtil. In MORNA, Teresa Freitas, coord. - Museu de São Roque. Catálogo.

Como é sabido, o recurso aos artistas e artífices mais proeminentes de cada época apresenta-se como uma realidade que acompanha e caracteriza a produção de obras de arte sacras. Os têxteis inscrevem-se naturalmente neste processo e também eles comungam das muitas parcerias que se estabelecem entre os especialistas nos mais diversos domínios artísticos, acompanhando as tendências plásticas, compositivas e iconográficas que se vão delineando em diferentes suportes materiais e técnicas.

Muito embora o desenvolvimento deste tema não tenha lugar no presente estudo, o reconhecimento desta realidade alerta-nos para algumas questões que julgamos serem da maior pertinência na compreensão do significado dos têxteis enquanto exercício artístico tão válido como outras modalidades assim entendidas: é desde logo de salientar a partilha, por parte dos têxteis, de uma linguagem plástica comum entre manifestações muito diversas, como a pintura, a ourivesaria, a escultura ou os embutidos marmóreos, por exemplo. A comunhão de discursos concorre para um conceito de unicidade do conjunto artístico formado pelos objectos móveis que, claramente extrapola as denominadas belas-artes e a noção de bel composto ou obra de arte total que de si emana, muito em particular, nas igrejas e nos respectivos acervos concebidos nos séculos XVII e XVIII, ao abrigo da estética barroca.

Com efeito, não raras vezes os diversos intervenientes trabalham em equipa e em uníssono em torno de empresas ditadas por uma cultura figurativa e de base projectual comum4. De forma idêntica se reconhece a participação ocasional do mesmo criador em áreas aparentemente tão díspares, quanto a arquitectura e o desenho de bordados e tecidos, como sucedeu com Gian Lorenzo Bernini (1598-1680). Ainda que até ao momento se desconheça a real amplitude do trabalho de Bernini no domínio das artes decorativas, estudos mais recentes comprovam a sua intervenção aturada e diversificada neste campo artístico, em concreto, no domínio da paramentaria e dos têxteis para armações5. Este artista, verdadeiramente multifacetado e supremo mentor e praticante dos ideais barrocos, englobou os paramentos litúrgicos na sua proposta de coro para a igreja de Santa Bebiana em Roma - dos quais ainda subsiste um conjunto, de cerca de 1627, (composto por casula, dalmática e tunicela) em seda vermelha com as armas da família Barberini e as insígnias do papa Urbano VIII (Maffeo

4 Tanto assim, que Fausta Franchini Guelfi alerta para a necessidade de uma política de estudo global em relação

a este tipo de património, o qual deve ser, no seu entender, concebido como um todo, como um discurso uno e não individual das peças que o elencam; cf. FRANCHINI GUELFI, Fausta - Theatrum sacrum: materiali e funzioni dell’apparato liturgico. In AVEGNO, Ernesto, coord. - Apparato Liturgico e Arredo Ecclesiastico nella

Riviera Spezzina. Génova: Sagep Editrice - Regione Liguria: Settore Beni e Attività Culturali, 1986, Quaderni del

Catalogo dei Beni Culturali; 5, p. 10.

5 Sobre este assunto leia-se o cap. de WORSDALE, Marc - Arti Decorative, apparati, Scenografie. In Comitato

Barberini), caracterizado pela procura de efeitos plásticos espectaculares e ao mesmo tempo pela minúcia de detalhe (FOTOGRAFIA 7). Do que é dado conhecer até ao momento, entre 1655 e 1667, Bernini concebeu a título pessoal ou coordenou a concretização de outros adereços como frontais de altar e tecidos - designadamente em pareceria com Gian Paolo Schor (1615-1674), quando este foi nomeado pintor e desenhador do palácio apostólico. Assim o testemunham algumas obras bem como desenhos ainda existentes, cujos programas decorativos incluem, por exemplo, o emblema heráldico dos Chigi della Rovere e do papa Alexandre VII (Fabio Chigi), de quem foi nomeado architetto di Camera em 1655 (FOTOGRAFIA 8 e DESENHOS 1 e 2)6.

O envolvimento de pintores e escultores de renome na idealização de modelos compositivos de cariz sagrado tanto para tapeçarias, tecidos ou bordados a utilizar na feitura de paramentos remonta em Itália, ao final do século XIV, sendo de mencionar artistas como Antonio del Pollaiuolo (c. 1431-1498), Sandro Botticelli (1445-1510), Raffaellino del Garbo (1446-1524), Rafael (1483-1520) ou Pierino del Vaga (1500/1-1546/7)7. De entre estes

importa sublinhar a colaboração de Botticelli na concepção de cartões para um núcleo de paramentos encomendado por D. João II, cerca de 1480, para a igreja de San Miniato dal Monte (Florença) onde se encontra sepultado em capela própria D. Jaime (1433-1459), cardeal de Portugal, e do qual ainda subsiste o capuz de um pluvial8.

6 Cf. Ibidem, p. 238-234; ARIBAUD, Christine - Enjeux Dogmatiques et Jeux Plastiques dans la Broderie

Religieuse. In COQUERY, Emmanuel, dir. - Rinceaux et Figures. L’ornement en France au XVIIe siècle. Paris:

MuSée du Louvre Éditions - Éditions Monelle Hayot, 2005, p. 187.

7 Cf. THORNTON, Peter - Form and Decoration. Innovation in The Decorative Arts. 1470-1870. Londres:

Weidenfeld & Nicolson, 1998, p. 12; POLI, Doreta Davanzo - Seta & Oro. La Collezione Tessile di Mariano

Fortuny. Veneza: Arsenale & Editrice, 1997, p. XIII.

8 Sobre esta peça veja-se os estudos de: ATANÁZIO, Manuel Mendes - Il Capuccio di Piviale al Museo Poldi-

Pezzoli e altri Paramenti della Cappella del Cardinale di Portogallo. Sep. da revista Commentari. XIV: 4 (1963) entretanto publicado sob a forma de cap. intitulado Os Paramentos recamados da Capela. In ATANÁZIO, Manuel Mendes - A Arte em Florença no século XV e a Capela do Cardeal de Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1983, p. 137-155; CARVALHO, José Alberto Seabra - Um Capuz Florentino de Encomenda Portuguesa. In ALARCÃO, Teresa; CARVALHO, José Alberto Seabra - Imagens em Paramentos Bordados.

Séculos XIV a XVI. Lisboa: Instituto Português de Museus, 1993, p. 50-51; RIZZINI, Marialuisa - Cappuccio di

piviale con l’Incoronazione della Vergine. In Di LORENZO, Andrea, coord. - Botticelli nelle Collezioni

Lombarde. Milão: Silvana Editoriale, 2010, p. 70-73. Não menos interessante é a notícia facultada por Giorgio

Vasari nas suas Vite do projecto desenvolvido por Leonardo da Vinci (1452-1519) para um monarca português (desconhecemos se para D. João II ou D. Manuel), de uma porteira a manufacturar na Flandres que, embora não tenha chegado a ser concretizada, representava o pecado de Adão e Eva. Assim o refere Vasari no capítulo

Lionardo da Vinci, Pittore e Scultore Fiorentino: “ Gli fu allogato per una portiera, che si aveva di farei n Fiandra d’oro e di seta tessuta per mandare al re di Portogallo, un cartone d’Adamo e d’Eva, quando nel paradiso terrestre peccano: dove col penello fece Lionardo di chiaro e scuro lumeggiato di biacca un prato di erbe infinite con alcuni animali, che in vero può dirsi che in diligenza e naturalità al mondo divino ingegno far non la possa sì simile. Quivi è il fico, oltra lo scortar delle foglie e le vedute de’rami, condotto con tanto amore, che l’ingegno si smarrisce solo a pensare come un uomo possa avere tanta pacienza. Evvi ancra um palizio che ha la rotondità delle ruote della palma lavorate con sì grande arte e maravigliosa, che altro che la pacienza e l’ingegno di Lionardo non lo poteva fare; la quale opera altrimenti non si fece, onde il cartone è oggi in Fiorenza nella felice casa del Magnifico Ottaviano de’Medici, donatogli non ha molto dal zio di Lionardo.”; VASARI,

Ainda que os nomes elencados se circunscrevam a um arco cronológico limitado, coincidente com o desenvolvimento do Renascimento, nem por isso os artistas das centúrias seguintes quebraram os vínculos com o domínio têxtil, muito pelo contrário. Como Louis de Farcy sublinha na sua obra de 1890, no decurso dos séculos XVII e XVIII “les plus grands peintres décorateurs dirigent volontiers les brodeurs; la part des Lebrun, Bailly, Bonnemer, Tételin, Bérain et Marot dans l’exécution des splendides ameublements du temps est considérable.”9. Muitos dos paramentos litúrgicos derivam de colaborações entre pintores e bordadores podendo assinalar-se, apenas a título de exemplo (além dos nomes já mencionados), o desempenho dos franceses Georges Baussonnet (1577-1644), desenhador, e Claude III Audran (1658-1734), pintor ornamentista responsável por alguns projectos decorativos para vestuário religioso (DESENHO 3). Também o pintor genovês Domenico Piola (1627-1703) se destacou como fornecedor de desenhos e cartões para bordadores de frontais de altar10, cujo vocabulário plástico adoptado (inspirado nos modelos franceses) é

também extensível a outros domínios artísticos. Veja-se o caso de um desenho preparatório deste autor para um desses projectos de frontais de altar para a catedral de São Lourenço (DESENHO 4), da sua cidade natal11, cujos motivos decorativos delineados para o tecido podem também ser observados nos estuques que ornam o interior dos edifícios eclesiásticos e dos palácios nobres da mesma cidade da Liguria12.

Ora, é no âmbito do desenho e da gravura que reconhecemos um outro reflexo da paridade entre a produção artística em que se inscrevem os têxteis e outros domínios, porventura, considerados mais distintos. Com efeito, também as artes têxteis, muito em particular aquelas obtidas pela técnica do bordado, recorrem e inspiram-se nas propostas gráficas - tanto de cariz historiado sagrado13 como ornamental - dadas à estampa um pouco por

Giogio - Le Vite dei più Celebri Pittori, Scultori e Architetti. La Spezia: Fratelli Melita Editori, 1988, vol. II, p. 17-18; cf. COELHO, Henrique Trindade; BATTELLI, Guido - Documentos para o Estudo das Relações

Culturaes entre Portugal e Itália. Florença: Alfani & Venturi, 1934, vol. I, p. 12, nota 4.

9 DE FARCY, Louis - La Broderie du XIe Siècle Jusqu’à nos Jours d’Après des Spècimens Authentiques et les

Anciens Inventaires. Angers: 1890. Apud ARIBAUD - op. cit., p. 253 nota 31.

10 Cf. FRANCHINI GUELFI - op. cit., p. 18 nota 30.

11 Cf. GALLO, Marzia Cataldi - Seta nei salotti, nei guardaroba e nelle sacrestie genovesi. In GALLO, Marzia

Cataldi, coord. - Arte e Lusso della Seta a Genova dal’500 al ‘700. Turim: Umberto Allemandi, 2000, p. 44.

12 Cf. FRANCHINI GUELFI - op. cit., p. 11.

13 De que nos permitimos enunciar alguns casos paradigmáticos, em concreto: o paramento de altar ilustrado com

a figuração de Tobias e o Anjo, inspirado numa gravura de Jean Mariette (1694-1774) a partir de desenho de Jean- Baptiste Corneille (1646-1695) datado de 1688; um outro animado com a representação bordada da Ressurreição

do Filho da Viúva de Naim, adaptada da colecção de gravuras de Charles de Mallery, l’Abrégé de la Vie et Passion de Nostre Sauveur Jésus-Christ, editada em Paris em 1663; ou a gravura de Boëtius Bolswert (1580-

1633), Ressurreição de Lázaro bordada numa capa, entre 1601 e 1633, a partir da obra homónima de Peter Paul Rubens (1577-1640); cf. ARIBAUD - op. cit., p. 253, notas 29, 30 e 31 e VERON-DÉNISE, Danièle - Ornements Liturgiques du XVIIe Siècle Conservés à l’Hôtel-Dieux de Château-Thierry. In CIETA Bulletin. Lyon: 78 (2001) 78 e 82.

toda a Europa, entre os séculos XVI e XVIII. São estes elementos - verdadeiros ensaios de formas e soluções ornamentais indispensáveis na transmissão e difusão visual da ideia artística que caracteriza os gostos e aspirações de uma determinada época - que se prefiguram como base de trabalho comum dos artistas envolvidos na criação de objectos. E tanto mais interessante é verificar como muitas das compilações de desenhos que vão sendo publicadas são concebidas tendo também em consideração as especificidades do domínio têxtil, como bem o demonstram os próprios títulos destes álbuns: por exemplo, aqueles de Paul Androuet du Cerceau (1623-1710), Feuillages et Fleurs propres aux Peintres Brodeurs et Ouvriers en Soye, e de Filippo Passarini (1638-1698), Nuove Inventioni d’Ornamenti d’Architettura e d’Intagli diversi Utili ad Argentieri Intagliatori Ricamatori et Altri Professori delle Buone Arti del Disegno (1698), publicados em Paris e Roma, respectivamente, aos quais acresce a curiosa obra de estudos botânicos de Pierre Vallet (1575-1657), Le Jardin du Roy très Chrestien Henri IV (1608), reproduzindo espécies de flores apenas usadas pelos bordadores e tecelões de sedas14.

Não menos curioso de assinalar, com respeito à convivência da produção têxtil com outros domínios artísticos, é a influência que a mesma exerce enquanto fonte de inspiração como, aliás, tivemos já oportunidade de assinalar, acerca da transposição da matriz estrutural e decorativa que caracteriza os frontais de altar têxteis para os frontais realizados em materiais menos perecíveis, como a madeira ou o azulejo. Neste contexto, ocorrem-nos situações similares noutras obras de tipologia idêntica, nomeadamente, ao nível dos baldaquinos em talha e metal dourado, os quais reproduzem, também eles, as componentes têxteis que constituem estes mesmos objectos sacros, como os pendentes e as borlas - como bem se reconhece no baldaquino berniniano da basílica vaticana (FOTOGRAFIA 9), naquele do altar- mor da Sé de Évora (FOTOGRAFIA10) e no da capela de São João Baptista da igreja de São Roque, em Lisboa (IMAGEM 11). Verdadeiramente paradigmático na forma como reflecte a ascendência dos têxteis sobre outras manifestações artísticas, é o programa ornamental da igreja inaciana de Santa Maria de Assunta, em Veneza, cuja superfície parietal da nave e colunas da capela-mor, embora em mármore branco e verde, parece revestida com suportes tecidos de teor padronado, de igual modo simulados na encenação pétrea recriada em redor do púlpito do lado do Evangelho (FOTOGRAFIAS 12 e 13).

Também as parcerias que se estabelecem em termos oficinais, ao nível da obtenção das matérias-primas a empregar na manufactura dos artigos merece ser nomeada. Pelos estudos

14 Cf. JOHNSTONE, Pauline - High Fashion in Church. The place of church vestements in the History of art from

que Teresa Vale tem realizado no âmbito das relações entre a produção escultórica e a ourivesaria italiana no século XVIII15 foi-lhe possível constatar, a partir da bibliografia compulsada, que as oficinas de ourives da Romagna (no Norte de Itália) dispunham, grosso modo desde o século XVI, de uma banca para tirar fio metálico16, depois usado na manufactura de tecidos e bordados. Franco Faranda, autor que se debruçou sobre o assunto, destaca ainda a circunstância de nestas oficinas se encontrarem disponíveis para aquisição não apenas peças de ourivesaria mas também de adereços têxteis, “il più delle volte di accessori di abigliamento, ma in alcuni casi anche di tessuti particolarmente pregiati.”17, alguns decerto semelhantes aos tecidos enriquecidos com lâminas metálicas muitíssimo empregues na feitura dos paramentos têxteis religiosos.

Idêntico testemunho desta proximidade com a ourivesaria parece ser a própria terminologia adoptada para designar um tipo de solução decorativa empregue pelos bordadores da paramentaria no século XVII. Trata-se do denominado ornamento de ourivesaria, “ornement d’orfèvrerie”, um termo equiparável a ornamento de arquitectura e ornamento de esplendor, “ornement d’éclat”, expressões que pela mesma ocasião se adoptam na caracterização do vocabulário plástico empregue nos programas iconográficos destas peças e que bem evocam a qualidade e luxo dos materiais usados na sua feitura, muito em particular, os fios metálicos de ouro e de prata18 preponderantemente usados no decurso de Seiscentos.

De facto, a eleição de matérias preciosas (como os metais nobres mas também as pedras preciosas e as pérolas) na elaboração e decoração dos paramentos litúrgicos cedo se apresentou como parte incontornável do processo de dignificação que acompanhou a história destas alfaias no contexto católico. Se no início predominavam as matérias-primas mais vulgares como a lã, o linho ou algodão, a partir do século IX a seda natural assumiu-se como a principal matéria-prima canonicamente prescrita na manufactura das casulas e dalmáticas19 podendo, porém, ser substituída por outro material de idêntica preciosidade, como o ouro ou a

15 No âmbito de um projecto de investigação de pós-doutoramento que tem actualmente em curso intitulado

Ourives e Escultores. A ourivesaria barroca italiana em Portugal. Acervo, contexto, agentes e processos de importação. Aproveitamos a oportunidade para agradecer à investigadora os elementos que tão generosamente

nos facultou, uma vez ciente da sua relevância no nosso estudo.

16 Cf. FARANDA, Franco - Argentieri e Argenteria Sacra in Romagna dal Medioevo al XVIII Secolo. Rimini:

Luisè Editore, 1990, p. 21.

17 Ibidem, p. 21.

18 Cf. ARIBAUD - op. cit., p. 190-191.

19 Apesar de se verificar o uso da seda já desde os séculos IV e V, a sua utilização só viria a generalizar-se a partir

do século IX. No que respeita aos pluviais, apesar de não estar prescrita uma matéria-prima específica, normalmente estes são elaborados com os mesmos materiais em que são feitos os outros paramentos do conjunto - cf. OPPENHEIM, Filipo - Piviale. In MERCATI, Angelo; PELZER, Augusto, dir. - Dizionario Ecclesiastico. Turim: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1958, vol. III, p. 239.

prata20. E neste contexto, os tecidos de seda enriquecidos pela presença de fios metálicos - que pelo fausto das suas cores, pela opulência da sua ornamentação e materiais muito contribuem com a sua conotação de riqueza e poder21 - desempenham um papel de primeiro plano, enquanto veículos de antecipação da beatitude eterna e de mediação entre o mundo terreno e o mundo celeste, capazes de despertar o sentimento e o recolhimento religioso entre os fiéis e os ministros celebrantes. Concilia-se assim a preciosidade do material com a da função a desempenhar por estes paramentos.

A adopção no decurso da Idade Média, de forma cada vez mais assídua, de materiais nobres e dispendiosos na realização dos paramentos inscreve-se num fenómeno mais amplo que se desencadeia, pelo século XII, como mecanismo de consubstanciação da importância da comunidade eclesiástica na hierarquia social, num processo quase de mimetização em relação àquele desencadeado pela classe mais poderosa, a da nobreza. Sobre este assunto, Georges