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2. Funcionalidade e evolução morfológica

2.4 Indumentária das imagens

Sobre o hábito de vestir a imaginária segundo a moda do tempo dos fiéis, em particular da figura da Virgem, muito embora só nos tempos mais recentes se tenham envidado esforços aturados no sentido de compreender melhor o fenómeno, parece tratar-se de um procedimento peculiar dos países do Sul da Europa católica, cuja origem remonta aos séculos XII e XIII134.

Aparentemente, as iniciativas de oferecer, mandar fazer ou até emprestar vestuário feminino às sagradas imagens esculpidas da Virgem com o beneplácito da Igreja devem ser compreendidas como uma forma, levada ao extremo, de contribuir para o processo de humanização de Nossa Senhora no seu papel de intercessora entre Deus e os homens que se vinha firmando desde o século XII135. Decerto que a imagem da Mãe de Deus vestida com a

130 Pelo menos assim parece ter sucedido com alguns ciclos de tapeçarias encomendados pelos papas Leão X e

Clemente VII, no âmbito da tradição já implementada de decorar as igrejas papais com estes adereços, de que é exemplo maior aquele concebido por Rafael, intitulado Actos dos Apóstolos e executado, entre 1517-1523, para a Capela Sistina e cuja ordem primitiva ainda hoje gera discórdia; cf. FERMOR, Sharon - The Raphael Tapestry

Cartoons. Narrative. Decoration. Design. Londres: Scala Books - The Victoria and Albert Museum, 1996, p. 10,

15.

131 Este aspecto parece ser válido para os contextos nacional e internacional. Atente-se, por exemplo, no exemplo

relatado por Manuela Santana, a propósito da utilização de tapeçarias com temas profanos e mitológicos nas armações efémeras concebidas por ocasião da festa do Corpo de Deus em Paris em 1717; cf. SANTANA - op.

cit., p. 80-81.

132 Por exemplo, em Roma, a procissão do Corpo de Deus não dispensava as sumptuosas tapeçarias, que

decoravam todo o seu percurso, sendo que até mesmo os preciosos exemplares da Capela Sistina, com debuxo de Rafael, eram temporariamente expostos no pórtico de São Pedro; cf. Ibidem, p. 83.

133 No que concerne a este assunto optámos por não proceder à caracterização das componentes que o integram

uma vez que se filiam no vestuário civil, o qual escapa ao âmbito temático da nossa investigação. Em todo o caso, porque inventariámos uma peça enquadrável neste domínio e o assunto consta das Constituições Sinodais portuguesas analisadas no capítulo seguinte, deixa-se alguma informação consigo relacionada.

134 Cf. ALBERT-LLORCA, Marlène - Des Vierges Vêtues Comme des Femmes? In ARIBAUD, Christine, coord.

- Destins d’Étoffes. Usages, revaudages et réemplois des textiles sacrés XIVe - XXe siécle. Toulouse: Framespa, 2006, p. 79-81.

135 Cf. Ibidem, pp. 82-83. A familiaridade ou proximidade criada entre os devotos e as imagens das santas e santos

protectores justifica que os mesmos sejam tomados como madrinhas e padrinhos, respectivamente. Apenas como exemplo desta prática, atente-se no caso do 4º Conde de São Vicente, Manuel Carlos de Távora, que quando baptizou o seu filho Antonio na Paróquia de S. Cristovão de Lisboa no dia 26 de Setembro de 1716, foi “padrinho

o Conde de Povolide, & madrinha a imagem de N. S. do Rosario”; GAZETA de Lisboa. Sabbado 3. de Outubro de

indumentária que uma mulher utilizava no quotidiano, despertava uma maior comoção junto dos crentes e, como consequência, uma maior proximidade em relação a esta figura mediadora.

Estas figuras de vestir apresentam-se variadas nas suas dimensões, materiais e até no tipo de estrutura que as caracteriza (FOTOGRAFIA 6). Além da tradicional imaginária de vulto em madeira ou pedra, outras há que não são propriamente esculturas mas armações de ripas, com cabeça e braços esculpidos e nela espetados, depois vestidas cuja origem, segundo Moisés Espírito Santo, se relaciona com a carestia ou a falta de mão-de-obra artística e sobretudo com o incremento do culto mariano em Portugal no âmbito da Contra-Reforma136.

Conhecidas como figuras de roca, muito embora este género de imaginária seja predominantemente em madeira, por vezes, as respectivas carnações (cabeça e mãos) podem ser em pasta de papel. Assim se infere a partir das notícias facultadas pelo Pe. António Carvalho da Costa na sua ampla Corografia Portuguesa, na qual o autor refere haver no Hospício de Nossa Senhora dos Anjos da Porciúncula de Lisboa (conhecido como os Barbadinhos), “huma devota, & milagrosa Imagem de N. Senhora do Livramento, que he de vestidos, cujas maõs, & cabeça sam feytas de massa de papel a modo de pasta, tem quatro palmos de altura, e he de tanta fermosura, & perfeyçaõ, que parece viva”137.

Também os membros se podem apresentar articulados, por forma a facilitar a colocação do respectivo vestuário que as reveste. O mesmo compunha-se de uma panóplia de peças e acessórios em tudo idênticos aos do vestuário feminino da época, como saias, vestidos, camisas, túnicas, mantos e coifas138 os quais se completavam inclusivé, a partir do século XVI, com peças de roupa interior como atestam alguns inventários da região de Veneza139.

136 Cf. SANTO, Moisés Espírito - Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa. Lisboa: Assírio & Alvim,

1988, p. 31.

137 COSTA, António Carvalho da - Corografia Portugueza e descripçam topografica do famoso Reyno de

Portugal, com as noticias das fundações das Cidades, Villas, & Lugares, que contem; Varões illustres, Gealogias das Familias nobres, fundações de Conventos, Catalogos dos Bispos, antiguidades, maravilhas da natureza, edificios, & outras curiosas observaçoens. Lisboa: Off. de Valentim da Costa Deslandes, 1712, tomo III, p. 372.

138 Apenas a título de exemplo, note-se o caso da imagem de Nossa Senhora da Nazaré do Santuário com a mesma

invocação existente na Pederneira, cujos vestidos, segundo Manuel Brito Alão, “saõ algũs delles muito ricos, &

tantos que se lhe pode vestir cada dia hũ”; ALÃO, Manuel de Brito - Antigvidade da Sagrada Imagem de Nossa Senhora da nazareth, grandezas de seu Sitio, Casa, & Jurisdiçaõ Real, sita junto á Villa da pederneira. A El Rey Nosso Senhor Sev immediato Protector. Lisboa: Pedro Craesbeeck, 1628, fl. 22. Para confirmar a diversidade de

vestuário que compõe a indumentária desta escultura leia-se, por exemplo, os estudos de PENTEADO, Pedro - Tesouros do Santuário da Nazaré: Estudo de um inventário de bens de 1608. Sep. da revista Museu, 4ª Série, 5 (1996) e ARQUIVO HISTÓRICO DA CONFRARIA DE NOSSA SENHORA DA NAZARÉ, Real Casa de

Nossa Senhora de Nazaré, pasta 100, Tombo Pequeno, Excerto do Livro do tombo dos bens, propriedades e foros da Casa de Nossa Senhora de Nazaré, 1642-1648, fls. 1-11 [disponível no Arquivo Histórico da Confraria de

Nossa Senhora da Nazaré, Nazaré, Portugal] publ. por PENTEADO, Pedro Manuel Pereira - Nossa Senhora de

Nazaré. Contribuição para a História de um Santuário Português (1600-1785). Dissertação de mestrado em

História apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1991. Texto policopiado, vol. II, p. 37-61..

E se muita desta indumentária era concebida para as figuras esculpidas, também uma grande parte resultava da oferta e adaptação ou empréstimo de peças civis usadas pelas mulheres no quotidiano, facto que motivou severas críticas por parte dos protestantes e, forçosamente, uma reação da Igreja combatente da Contra-Reforma condenando o uso de vestuário profano140. Contanto que a igreja pós-tridentina não proíba esta tradição, recomenda, todavia, que a escultura devocional disponha de hábitos próprios, decentes, compridos e capazes de disfarçar a forma do corpo, com vista a conferir-lhe um “ar sacerdotal”141, segundo um estilo passível de distinguir a Virgem das mulheres comuns.

Em Portugal a tradição de vestir as imagens marianas parece ser sobretudo assegurada na região das Beiras142. Cumpre, no entanto, alertar para o facto de que não eram somente as imagens de figuras femininas que eram vestidas; também aquelas de santos, e muito em particular do Menino Jesus, podiam surgir trajadas com vestuário de tipologia similar àquela usada pelos homens (e jovens) num processo idêntico ao já descrito. Atente-se, apenas a título de exemplo, nos bens constantes no inventário da igreja de Santiago em Coimbra, datado de 1607, no qual surgem elencados os vestidos de São Simão, Santo André e Santo António, respectivamente143.