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4. Os têxteis chineses no universo religioso português (séculos XVI-XVIII)

4.3 Caracterização plástico-iconográfica

Do ponto de vista iconográfico as soluções observadas denotam a dupla tendência já assinalada no âmbito das opções técnico-materiais. Neste contexto, afigura-se-nos muito interessante verificar como as obras mais recentemente catalogadas reproduzem alguns dos repertórios europeus e chineses já antes identificados, ao mesmo tempo que introduzem novidades.

Em relação aos assuntos conotados com a cultura ocidental, todos os núcleos iconográficos antes estabelecidos se encontram representados, excepto aquele respeitante à temática mitológica48, aos quais acresce um grupo recém-criado dominado pela figuração humana. Até aqui este tipo de representação surgiu sempre associado à iconografia cristã, sobretudo daquela conotada com a Virgem, os santos ou cenas historiadas do Antigo

46 Cf. WILSON - op. cit., p. 28 e WILSON, Verity - Chinese Textiles. Londres: V&A Publications, 2005, p. 102.

Sobre as sedas pintadas chinesas vide: WILSON, Verity - Chinese Painted Silks for Export in the Victoria and Albert Museum. In Chinese and Central Asian Textiles. Selected articles from Orientations 1983-1997. Hong Kong: 1998, p. 20-25 e JOLLY, Anna - Painted Silks from China: Problems of Attribution and Dating. In JOLLY, Anna, coord. - Furnishing Textiles. Studies on Seventeenth- and Eighteenth-Century Interior Decoration. Riggisberg: Abegg-Stiftung, 2009, p. 167-178.

47 Cf. WILSON - Silk, p. 28 e WILSON - Chinese Painted Silks, p. 20.

48 À temática mitológica acresce a iconografia cristã, a vegetalista e floral e a heráldica. Sobre estes núcleos leia-

se o cap. 4. da nossa tese de mestrado concernente à identificação e caracterização das gramáticas decorativas observadas nos espécimes sinoportugueses estudados.

Testamento. Desta vez, a presença do corpo humano assume um outro protagonismo, de carácter estritamente ornamental como se reconhece nas sanefas ou pendentes de um pálio pertencente à igreja paroquial de São João Baptista, em Alhandra (FICHA nº 30) (FOTOGRAFIA 24) e no campo de uma colcha do Museu do Oriente (FICHA nº 23). Na primeira peça distinguem-se quatro putti alados de cabelo castanho encaracolado apoiados em volutas em forma de C (como se andassem de baloiço), enquanto na segunda se reconhecem nos cantos do respectivo campo, figuras masculinas que sustêm com os braços bandejas de flores e frutos sobre a cabeça. Trata-se de elementos muito interessantes, uma vez considerada a escala em que surgem e a variedade de referentes que lhes subjaz, nomeadamente no último espécime: note-se a rigidez da pose, reforçada pelas pernas semi-abertas, característica das figuras de suporte como os atlantes, segundo um modelo - com a cesta (ou por vezes albarrada) de flores à cabeça - muito difundido na produção artística do século XVII, através da obra gravada de artistas como Jean Lepautre (1618-1682) (GRAVURA 3); o vestuário tipicamente europeu envergado por estas imagens de rosto oriental, nas quais se observam alguns adereços distintivos da moda francesa de final de Seiscentos, como a peruca encaracolada, o jabouille ao pescoço e os punhos com folhos, articulados com outros que nos sugerem o antigo traje militar greco-romano49.

Por outros motivos, merece referência uma casula da Sé catedral de Leiria (FICHA nº 6), cuja observação denuncia a partilha de um mesmo manancial iconográfico em relação a outras peças já inventariadas, como dois panos de estante (um em veludo vermelho e outro em cetim branco) e duas casulas pertencentes à Irmandade de Santa Cruz de Braga, nas quais se reconhecem soluções decorativas muito idênticas, assentes num mesmo ideário à base de ornatos dispostos a candelabra, neste caso definido pela sucessão ascendente de enrolamentos de morfologia cordiforme com folhagem, gavinhas e vagens. Organizações deste tipo, que evocam sobretudo os elementos vegetalistas desta componente peculiar do vocabulário decorativo renascentista e a respectiva estruturação ascendente, segundo um esquema de simetria50, podem também ser observadas nos sebastos da casula da igreja de Santo Antão em Évora (FICHA nº 2), assim como nos das vestes da igreja de Santiago em Alcácer do Sal (FICHAS nº 10 e 11), ainda que neste conjunto as formas cartelares sobressaiam do conjunto

49 Cf. FERREIRA, Maria João - Colcha. In CALVÃO, João, coord. - Presença Portuguesa na Ásia. Testemunhos.

Memórias. Coleccionismo. Lisboa: Fundação Oriente, 2008, p. 49-50.

50 Os candelabra mais característicos do século XVI conciliavam e favoreciam a articulação da temática

vegetalista com outra de índole variada, como objectos (vasos e troféus), putti, animais fantásticos e reais; cf. BIMBENET-PRIVAT, Michèle - Rinceaux. In GRUBER, Alain, dir. - L’Art Décoratif en Europe. Paris: Citadelles & Mazenod, 1992, p. 118.

(sendo que numa das casulas do M.N.A.A. este elemento se afigura mesmo exclusivo ao nível do sebasto, FICHA nº 9).

Curiosamente, as célebres figuras híbridas que tendem a elencar os exemplos mais representativos das candelabra podem ser observadas num pano de armar da igreja de São Lourenço (em Galveias) (FICHA nº 34), composto pela justaposição de panos cujo módulo compositivo contempla enrolamentos vegetalistas e florais envolvendo meios corpos de putti coroados assentes em corolas de folhagem estilizada, de nítida inspiração grotesca (GRAVURA 2 e 3) e muito apreciados no decurso do século XVII, no âmbito do sucesso do tema decorativo das folhagens (rinceaux).

Também uma colcha (ou pano de armar) da colecção particular de José Lico51 (FICHA 14), se apresenta em tudo igual a outros dois espécimes entretanto inventariados em Portugal e Inglaterra, excepto ao nível da paleta cromática usada no suporte e na componente bordada (já que as cores dos tecidos-base são o branco, o azul e cor de salmão, respectivamente): o primeiro encontra-se exposto numa cama da designada Câmara de São Dâmaso no Paço dos Duques (nº Inv. 467), em Guimarães (FOTOGRAFIA 25), e o outro pertence à colecção do museu inglês Victoria & Albert (T. 4016-1855)52. As três colchas constituem-se como bons exemplos da figuração da águia bicéfala neste domínio artístico, um tema que se tornou um importante elemento de vocabulário ornamental, de acentuado destaque e intensidade decorativa na produção sinoportuguesa, face à sua ampla versatilidade e força plástica, que transformam as peças em adereços de grande aparato. É disso bem ilustrativo um pano de armar - que assim denominamos perante as dimensões que ostenta, pese embora a sua afinidade em relação a outras peças apreendidas como colchas - de uma outra colecção particular, pertencente ao antiquário Pedro Aguiar Branco (FICHA nº 16), também animado ao centro por medalhão circular inscrevendo águia bicéfala coroada. Contanto que se trate de uma representação diferente do tema, nem por isso o mesmo deixa de evidenciar uma enorme proximidade com o pano de armar da Casa-Museu Guerra Junqueiro (FICHA nº 15) e outros espécimes já estudados como os panos de armar pertencentes aos museus privados do Caramulo (nº Inv. 270) e da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva (nº Inv. 423) (FOTOGRAFIAS 21 e 22).

Não menos interessantes são as águias bicéfalas representadas nos três painéis de veludo do M.N.A.A. (FICHA nº 38) as quais, além de coroadas, sustêm flechas com as garras

51 A quem aproveitamos para agradecer a possibilidade que nos deu de estudar e fotografar a referida peça. 52 Cf. FERREIRA - Os Têxteis Sinoportugueses, p. 104-131.

que trespassam o que aparentam ser corações, segundo modelo figurativo conotado com a insígnia da Ordem dos Agostinhos53.

Ainda no âmbito heráldico cumpre registar a presença do escudo das armas usadas pelos Teles da Silva nos vários ramos desta linhagem54 no já mencionado pano de armar da igreja de São Lourenço (FICHA nº 34), no qual assenta a organização de um módulo compositivo de leitura horizontal que se repete sucessivamente.

A contínua descoberta de obras cujos programas ornamentais se filiam naqueles já rastreados concorre para a eleição de ‘famílias’ temáticas, aponta para a preponderância de certos assuntos em detrimento de outros e reduz o risco de se tomar peças, na actualidade isoladas, como exemplares únicos. Neste contexto ocorre-nos pensar num frontal de altar bordado existente no museu flamengo de arte religiosa Catharijnecovent, em Utreque (FOTOGRAFIA 26). Segundo a respectiva ficha de inventário, este paramento foi encomendado pelo padre jesuíta Godefroid-Xavier van Laimbeckhoven (Viena, 1707-1787) enviado para a China através da missão portuguesa, em 1739. Supõem alguns investigadores flamengos, como Christian Jörg, que a feitura do referido frontal foi encomendada ou supervisionada por este religioso nomeado bispo e vigário de Nanking, em 1755, onde viria a falecer mais tarde55. Embora a associação desta alfaia ao referido padre da Companhia não esteja em causa e se revele até muito pertinente, face às ligações que revela com o Padroado Português no Império do Meio, o que é importante sublinhar é que em Portugal existem, pelo menos (até à data), três casulas cujas composições decorativas são coincidentes com aquela que anima o frontal56. A sua comparação permite confirmar que a matriz iconográfica é não só idêntica, como a frontaleira reproduz o modelo observado nos sebastos das três vestes, ainda que segundo diferente paleta cromática, por sinal, também variável entre as casulas. No caso

53 Por exemplo, dois potes de porcelana azul e branca do reinado de Wanli (1573-1619), pertencentes à colecção

Roberto Backman e ao Museu Nacional de Arte Antiga (nº Inv. 6917), integram na respectiva ornamentação figurações de águias bicéfalas coroadas com as garras cravadas em corações trespassados por flechas identificadas por Teresa Freitas Morna e Rafael Calado como insígnias da Ordem dos Agostinhos; cf. DIAS, Pedro, coord. -

Reflexos. Símbolos e Imagens do Cristianismo na Porcelana Chinesa. Lisboa: Santa Cada da Misericórdia de

Lisboa - Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1996, p. 68-69 (entradas 7 e 8).

54 Agradecemos ao nosso colega Prof. Doutor Miguel Metelo de Seixas a sua valiosa colaboração no

reconhecimento e leitura heráldica do referido escudo.

55 Informação que Christian Jörg gentilmente partilhou connosco a título pessoal e através do artigo que publicou,

sob a forma de separata, intitulado Vergane Glorie: Chinese zijden stoffen in het Nederlandse interieur in de achttiende eeuw. In OUWERKERK, A., ed. - Het Nederlandse Binnenhuis gaat zich te buiten. Internationale

invloeden op de Nederlandse wooncultuur. Leiden: Leids Kunsthistorisch Jaarboek, 14 (2007) 181-207. A

imagem deste frontal pode ser vista na p. 192 e na p. 24 de um outro estudo de STAM, Tuuk; van BLERK, René - Borduurkunst uit China. In Aziatische Kunst, Jaargang 25: 2 (1995) 3-26.

56 Pertencentes aos acervos do Museu Nacional de Arte Antiga (nº Inv. 2197), ao Museu de Aveiro (nº Inv. 386/c)

e ao Seminário Maior do Porto (sem número de inventário). Para visualisar as respectivas imagens vide FERREIRA - As Alfaias Bordadas, p. 140, figs. 76-78.

do frontal acresce ainda a presença, no painel central, da figuração do pelicano a alimentar as suas crias, sendo de notar o pescoço escamado que ostenta, ao modo de uma ave fénix.

Trata-se de um tema cristológico, alusivo à Eucaristia e à Ressurreição, cuja representação apenas reconhecemos entre o acervo sinoportuguês elencado nesta fase da nossa investigaçao. Na verdade, de um assunto que nos era ainda desconhecido no domínio artístico em análise foi agora possível identificá-lo no campo de um frontal de altar da igreja de Nossa Senhora da Graça na localidade de Cano (concelho de Sousel) (FICHA nº 13), também segundo uma versão sinizada, muito próxima daquela que caracteriza a figuração do mesmo tema num fragmento do acervo do já mencionado museu inglês (Inv. T. 215-1926) FOTOGRAFIA 27)57.

No Museu Nacional do Traje existe um outro frontal (FICHA nº 17) dominado por tópico idêntico, pese embora a variante interpretativa a que foi submetido, responsável pela sua transformação num verdadeiro e peculiar pelicano bicéfalo. Além desta particularidade, esta peça evidencia uma abordagem decorativa assente nos mesmos ornatos, os quais foram apreendidos de forma congénere àquela que caracteriza o frontal de Utreque e as três casulas acima mencionadas.

Estas constatações recordam-nos a hipótese já sugerida da existência de verdadeiros álbuns de motivos compilados com base em gravuras, desenhos, peças com representações análogas ou indicações orais, a partir dos quais os artífices chineses concebiam diferentes opções em torno de um mesmo elemento ou composições58 - neste contexto merece atenção o véu de cálice da igreja de Nossa Senhora dos Mártires, em Arraiolos (FICHA nº 20), animado pelo trigrama sacro invertido, muito provavelmente decorrente do processo de transposição do desenho para o suporte têxtil da peça.

O acesso a um conjunto de matrizes passíveis de explorar segundo uma miríade de conjugações pode ser demonstrado através de um núcleo de peças compostas pelo já citado pano de armar da Casa-Museu Guerra Junqueiro (FICHA nº 15), na globalidade idêntico a uma colcha exposta no Quarto do Presidente da República do Paço dos Duques de Guimarães (nº Inv. 468) - por sua vez igual aos panos que compõem um paramento da igreja de São

57 Sobre este exemplar existente na colecção inglesa sugere-se a consulta do nosso estudo Os têxteis chineses na

Índia (Séculos XVI-XVII). A sua circulação e possível feitura no contexto indiano. In VARADARAJAN, Lotika; PEREIRA, Teresa Pacheco, coord. - Indo-Portuguese Embroideries: Context Art History. Nova Delhi: Nivogi Books - Indira Gandhi National Centre for the Arts (no prelo); Para conhecer outros espécimes de temática iconográfica cristã inexistentes em Portugal, designadamente as figurações de Nossa Senhora com o Menino e Sant’Ana e São Sebastião cf. FERREIRA, Os Têxteis Sinoportugueses, p. 121-123.

Bartolomeu de Borba (FOTOGRAFIAS 19 e 20) -, com a única diferença de exibir uma águia bicéfala ao centro, ao invés da composição floral que se reconhece nas outras peças.

A confirmar-se esta teoria, é de crer que a implementação desta metodologia operativa só se afigurasse pertinente em oficinas especializadas com alguma dimensão laboral que, vocacionadas para a produção em série - destinada à exportação para o mercado ocidental (Europa e América Latina) -, asseguravam não apenas a manufactura dos espécimes mas ainda a sua concepção ao abrigo de umas quantas variáveis, consentâneas com o gosto e desejo dos compradores59. Trata-se, afinal, do modus operandi há muito vigente no Celeste Império e que, em articulação com a criação de sistemas modulares devidamente adequados ao domínio da manufactura em causa, lhes permitia, no contexto artístico, produzir tanto em largas quantidades como em grande variedade, ao mesmo tempo que garantia elevados padrões de qualidade, em tempos mínimos de fabrico e de baixo custo60. Neste sentido, o pano de armar do Tesouro da Sé de Lisboa constitui-se como um exemplo paradigmático, uma vez identificada a estrutura compositiva que apresenta, concebida para aumentar ou reduzir em função da articulação concertada de bandas de tecido previa e diversamente decoradas. De facto, uma observação atenta revela o recurso a sete bandas ou faixas, a saber: 1) uma faixa dominada por um motivo que se configura como o elemento central da decoração; 2) duas outras faixas colaterais intermédias, com um padrão de cariz vegetalista, cuja organização permite a sua exclusão ou repetição sucessiva, logo, o aumento do tamanho da peça em conformidade com as dimensões pretendidas; 3) duas faixas de um terceiro tipo, parcialmente animado pelo mesmo padrão e por leões chineses posicionados de forma simétrica entre si nos extremos, os quais, pela disposição que ostentam, podem ser substituídos por qualquer outro ornato; 4) por fim, duas faixas de um quarto tipo, correspondentes a dois dos quatro lados da cercadura da peça, sendo que os dois restantes resultam da justaposição das componentes enunciadas em cujos extremos se observam, qual módulos a ligar, parte dos elementos que a compõem.

Como se pode verificar através da observação do espólio analisado, do ponto de vista imagético e plástico, a reprodução dos ornatos de índole ocidental (europeia) podia oscilar entre a transposição, dir-se-ia mimética dos modelos usados - que, nalgumas situações, nos permite o reconhecimento dos arquétipos tomados como referência61 -, um trabalho de

apropriação e sinização das formas ocidentais, e até mesmo sofrer adulterações. Neste

59 Cf. Ibidem.

60 Sobre este assunto sugere-se: LEDDEROSE, Lothar - Ten Thousand Things. Module and Mass Production in

Chinese Art. Princeton: Princeton Univeristy Press, 2000.

contexto, são deveras esclarecedoras as abordagens encetadas em redor da já mencionada águia bicéfala, a qual tanto pode surgir com a sua morfologia clássica (nos cantos do campo do sobrecéu do pálio da igreja de São Bartolomeu de Borba, FICHA nº 12), como evidenciar algumas transformações no que concerne à sua abordagem formal e plástica62: composta por duas cabeças colocadas em direcções opostas e corpo, asas e garras comuns63, grosso modo, a águia bicéfala tende a apresentar-se integrada em medalhões circulares ou com as asas e cauda abertas e esticadas sugerindo a inscrição num círculo imaginário sendo que, nalgumas situações, esta sugestão é coadjuvada pela cauda, disposta em leque. Com esta disposição reconhecemos um modelo plástico chinês implementado na produção autóctone de têxteis, lacas e porcelana, por exemplo, animadas pela representação de aves, isoladas ou emparelhadas, dispostas segundo um círculo imaginário (e sugerindo rotação, quando aos pares). No caso das aves fénix, Shelagh Vainker informa-nos que o motivo definido por pares destes animais quiméricos dispostos segundo morfologias circulares terá aparecido pela primeira vez em cerâmicas e pratas da dinastia Tang (618-906), datáveis dos séculos VIII e IX, tendo-se tornado comum na porcelana Ming64. Esta solução compositiva terá transitado para os têxteis, nos quais se tornou uma opção muito característica da produção bordada Liao (907- 1125) e Yuan (1279-1368)65, podendo ser de igual modo observada nalguns emblemas hierárquicos datáveis da dinastia Ming (1368-1644) e inícios da Qing (1644-1911), em particular naqueles dos oficiais civis de primeira categoria representados pela imagem do grou, e que os chineses parecem ter transposto para a produção destinada à exportação para o mercado português.

Exploradas segundo um perímetro circular ou mais cordiforme importa ainda enunciar uma outra particularidade observável noutras peças dominadas pelo mesmo assunto e que se considera uma característica da produção sinoportuguesa que ostenta esta variante temática: o facto da sua fisionomia tender a ser alterada, sobretudo ao nível do tratamento do bico, do pescoço e das asas, tornados mais alongados, o que as aproxima deveras das aves fénix graças, ainda, à aposição de escamas ao longo dos pescoços e das cabeças das aves sugerindo uma espécie de crista. Supomos que para este fenómeno muito contribuíu não só a pujança decorativa e versatilidade plástica do ornato, como também o significado convergente que a

62 Como tivemos já oportunidade de escrever; cf. FERREIRA - As Alfaias Bordadas, p. 157-159 e FERREIRA -

Os Têxteis Sinoportugueses, p. 120-121.

63 De acordo com o Dictionnaire des Symboles, a duplicação da cabeça coincide, em termos de significado, com o

acentuar do próprio simbolismo implícito à águia, isto é, a águia bicéfala enquanto sinónimo de uma autoridade mais que real, de uma soberania verdadeiramente imperial - cf. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain -

Dictionnaire des Symboles, 14ª ed. Paris: Robert Laffont / Jupiter, 1993, p. 16.

64 Cf. VAINKER - op. cit., p.158. 65 Cf. CHUNG - op. cit., p. 37.

águia e a fénix comportam no Ocidente e na China antiga - enquanto símbolo de poder e combatividade e de força e solidez, respectivamente66 - os quais lhes asseguram a inclusão

tanto em peças de feição europeia como chinesa.

Este exercício de apropriação revela-se ainda mais surpreendente quando aplicado às figurações não das águias mas dos pelicanos como aquele que anima o campo central do frontal de altar da igreja de Nossa Senhora da Graça, na localidade de Cano.

O mesmo contexto temático providencia, de igual modo, testemunhos paradigmáticos de adulteração e verdadeira sobreposição de formas ao revelar, no frontal de altar do Museu do Traje (FICHA nº 8), a representação de um bizarro pelicano bicéfalo a alimentar as suas crias desprovido de toda uma plasticidade sinizante, como seria de esperar.

Com respeito aos programas decorativos que subscrevem a tradição chinesa, também a manutenção das opções enunciadas se afigura uma constante, como o demonstra o pálio da igreja de São João Baptista (Alhandra), cuja decoração do respectivo céu (correspondente, numa fase anterior, ao campo de uma colcha) denuncia a maior das afinidades com uma colcha existente no Museu dos Condes de Castro Guimarães, em Cascais (nº Inv. 612) - ambos com medalhão central dominado por um par de leões brincando com a pérola ou bola de brocado e restante campo preenchido com enrolamentos vegetalistas terminando em flores (FOTOGRAFIA 28).

De um modo geral, os assuntos representativos da fauna e flora locais preponderam, ainda que o espectro de temas identificados entre as peças estudadas se afigure mais limitado. Com efeito, no que concerne ao primeiro núcleo temático, da fauna, e muito em particular, dos animais quiméricos que integram o bestiário chinês cumpre salientar o já mencionado leão - também observável no pano de armar da Sé de Lisboa (FICHA nº 39), onde este elemento feérico revela toda a sua pujança -, assim como as aves fénix que esvoaçam por entre as composições vegetalistas que preenchem o campo da alcatifa da colecção da Casa dos Patudos