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2. Funcionalidade e evolução morfológica

2.1 Vestuário litúrgico

Como Piero Montelli declara, a primeira fonte segura relativa ao uso de traje destinado a exercer funções litúrgicas é a Bíblia, mais concretamente os livros do Exôdo (Ex. 28, 2-8; 31-43) e do Levítico (Lv. 8, 7), nos quais se descrevem os paramentos sacerdotais, a sua forma, cor e uso ritual6.

É de modo global aceite que a generalidade do vestuário cristão derivou do traje secular do período clássico romano, nomeadamente das duas tipologias de indumentária eleitas pelos antigos7, as indumenta e as amictus, sendo que a primeira se usava em permanência e a segunda apenas envolvia o seu portador durante uma parte do dia. Assim as descreve Juan Plazaola: “el primer tipo era una forma de vestido sensible y material que se adaptava al cuerpo como si, paradójicamente, quisiera hacer adivinar la estructura de un organismo que, por otra parte, pretende encubrir: era un vestido ajustado, cosido y colgante. El segundo tipo era más espiritual y abstracto: el vestido, sin perder su función de cubrir y proteger el cuerpo y adornar a la persona, adquiría cierta substantividad por su forma amplia, libre y despejada. Era

6 Trata-se de um peitoral, um efod, um manto, uma túnica bordada, uma tiara e um cíngulo. MONTELLI, Piero -

Sacerdos, omnibus paramentis indutus. In LANDINI, Roberta Orsi, coord. - I Tesori Salvato di Montecassino. Antichi tessuti e paramenti sacri. Pescara: Carsa Edizioni, 2004, p. 33.

7 Como Pauline Johnstone observa, também as vestes litúrgicas da igreja ortodoxa tiveram as suas origens neste

período. Apenas com o sisma entre Roma e as igrejas orientais, em 1054, é que se assiste à implementação de processos evolutivos distintos, tanto ao nível do corte como da decoração dos paramentos. Face à longa ocupação turca do sudeste da Europa, a igreja viu-se forçada, nesta região, a agarrar-se às suas tradições de forma a preservar a sua identidade, uma decisão que muito contribuiu para a manutenção das fórmulas iconográficas e artísticas originais bizantinas extremamente conservadoras; cf. JOHNSTONE, Pauline - High Fashion in Church.

The place of church vestements in the History of art from the ninth to the nineteenth century. Leeds: Maney, 2002,

p. 2 e 5. Sobre a evolução e caracterização do vestuário litúrgico no contexto bizantino veja-se outro estudo da mesma autora The Byzantine Tradition in Church Embroidery. Londres: Alec Tiranti Ltd, 1967; BUNT, Cyril G. E. - Byzantine Fabrics. Leigh-on-Sea: F. Lewis Publishers, Ltd, 1967; WOODFIN, Warren - Liturgical Textiles. EVANS, Helen C., coord. - Byzantium. Faith and Power (1261-1557). Nova Iorque: Metropolitan Museum of Art, 2004, p. 295-323.

el vestido envolvente y, por lo general, abrochado en vez de cosido”8. É também nesta dicotomia que assenta a evolução do vestuário religioso católico, por sua vez, subdividido em interior e exterior.

Tratou-se de um processo gradual que, partindo dos modelos romanos cujos gestos e costumes se encontravam já assimilados e enraizados na cultura e pensamento coevo, se foi autonomizando e confluindo com os objectivos e exigências da nova religião monoteísta - sendo que por motivos de decência, tradição e fidelidade o traje eclesiático herdou o comprimento talar característico do mundo romano.

Com a afirmação dos povos bárbaros a partir do século VI a moda altera-se determinando uma diferenciação radical entre o traje civil e o eclesiástico, facto para o qual concorre o estabelecimento e afirmação da hierarquia religiosa9. Com o objectivo de manifestar exteriormente a diversidade de competências dos diversos membros do corpo de Cristo na celebração litúrgica, o vestuário acompanhou as mudanças passando a distinguir-se em conformidade com a dignidade do clero e as funções litúrgicas a desempenhar, sendo que, pelo final do século IX, os aspectos essenciais estariam já definidos10. Se para os níveis inferiores da hierarquia, como por exemplo, o acólito, o vestuário se limitava à roupa interior das classes mais elevadas, em contraste, o vestuário episcopal congregava todas as componentes usadas pela hierarquias abaixo do bispo, como sinal da sua autoridade sobre as mesmas11.

8 PLAZAOLA, Juan - Arte Sacro Actual. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2006, p. 392.

9 Cf. RIGHETTI, Mario - História de la Liturgia. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1955, vol. 1, p. 534.

No que se refere à normatização do uso das alfaias merece atenção o texto Ordo Romanus I, datado do final do Século VII e considerado a base das modernas Rubricas, sendo que uma substancial regulação do uso das vestes sacras surge mais tarde também associada à figura de Inocêncio III, no seu epistolário De Sacro Altaris Mysterio

libri sex; cf. VITELLA, Maurizio - Sull’Origine dei Paramenti Sacri. In AAVV - Omnia Parata. Le vesti liturgiche tra passato, presente e futuro. Trapani: Liberartis, 2006. p. 16.

10Como Nigel Morgan alerta, deverá ter-se em consideração que no período inicial e durante o princípio da Idade

Média se, por um lado, havia menos distinção hierárquica, por outro, verificavam-se algumas variações no tipo de vestuário adoptado, em função de aspectos de carácter regional e das ordens religiosas às quais se associavam rituais distintos - cf. MORGAN, Nigel - Ecclesiastical Vestments - Pre-Reformation. In The Dictionary of Art. Coord. Jane TURNER. Nova Iorque: Grove’s Dictionaries Inc., 1996, vol. 32, p. 387. Embora não nos seja possível desenvolver mais a questão cumpre-nos salientar que Pietro Rossi distingue cinco momentos históricos principais na evolução do vestuário religioso, em concreto: o tempo de Constantino; do Século IV ao Século IX; do IX ao XIII; do XIII ao XX; e finalmente, do Século XX aos nossos dias; cf. ROSSI, Pietro - Vesti e Insegne

Liturgiche. Storia, uso e simbolismo nel rito romano. Milão: Lampi di Stampa, 2003, p. 22-27. Robert Lesage

considera sete agrupamentos em conformidade com os estratos religiosos e as respectivas insígnias, a saber: o traje clerical, o vestuário de coro, as vestes para os ministros ordenados, para os sacerdotes, para os prelados, cardeais e aquelas exclusivas do papa; cf. LESAGE, Robert - Objets et Habits Liturgiques. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1958, Enciclopédie du Catholique au XXème Siècle; 113, p. 78-124.

11Cf. MORGAN - op. cit., p. 387. No santo sacrifício da missa o padre deve envergar o amito, a alva, o cordão, o

manípulo, a estola e a casula; o diácono, o amito, a alva, o cordão, o manípulo e a estola posta transversalmente do ombro esquerdo ao braço direito e a dalmática e o subdiácono, o amito, a alva, o cordão, o manípulo e a túnica.

Assimilados como signos dos desempenhos a cumprir no culto pelos diferentes membros do colégio católico, a partir do século XII difunde-se o hábito de benzer os ornamentos com formulários apropriados, como meio de consubstanciar o seu uso exclusivo no seio cultual12.

Segundo Juan Plazaola o cristianismo revelou, na fixação dos seus hábitos litúrgicos, o equilíbrio de uma religião destinada a redimir e a salvar a humanidade. A sua indumentária anula os aspectos individuais dos ministros que a envergam e antes evidencia toda a solenidade destes agentes intermediários (dignificada pela graça divina e pela encarnação do Verbo) e a função que os mesmos exercem ao serviço da comunidade, expressando a grandeza do seu destino e harmonizando-se com a beleza própria da acção sagrada13. Neste sentido, gradualmente o vestuário religioso foi investido de um importante estatuto no seio das celebrações católicas, na medida em que, enquanto traje da própria hierarquia, se afirmava como uma componente indispensável das celebrações litúrgicas. Sobre esta questão Fr. Plácido Barroco é peremptório na sua obra Dissertação Sobre a Origem da Veste Sagrada, datada de 1791, ao afirmar: “Nós contestamos sem disputa que as Vestes Sacerdotais, como a maior parte das Cerimónias, são de si indifferentes; mas nem por isso deixaremos de as reputar de huma necessidade absoluta; porque a nossa natureza corporea não tem quem a mova tão facilmente, como as cousas sensíveis. Se os sacerdotes ainda pela razão, e uso das Nações barbaras, merecerão civilmente hum traje diverso, característico da sua dignidade, que seria negallo a Igreja aos verdadeiros Ministros do Altar, principalmente nas funções sagradas, onde pedem de nós maior respeito?”14.

Indiscutível sinal de prestígio social, político e económico, o vestuário depressa conheceu um protagonismo sem precedentes, entre as elites religiosas e civis levando a que Petrarca (1304-1374), quando da sua estada na biblioteca pontifícia de Avignon, se manifestasse escândalizado pelos hábitos dissolutos da corte e do próprio pontífice e que a Inquisição, em 1328, se insurgisse contra o exagerado gosto pela indumentária de seda então usada15.

Embora as componentes que constituem o traje litúrgico se encontrem definidas na medievalidade, foram ainda alvo de sucessivas transformações com vista ao melhor

12 Cf. CUVA, Armando - Objets et Vêtements Liturgiques. In SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille M. dir.

- Dictionnaire Encyclopédique de la Liturgie. Turnhout: Brepols, 2002, vol. II, p. 89.

13 Cf. PLAZAOLA - op. cit., p. 92.

14 BARROCO, Fr. Plácido de Andrade - Dissertação Sobre a Origem da Veste Sagrada. Lisboa: Regia Officina

Typografica, 1791, p. 1, nota 3.

15 ANQUETIL, Jacques - Las rutas de la Seda. De China a Andalucía, veintodós siglos de história y cultura.

cumprimento das suas funções e ao acompanhamento das prescrições dimanadas nesse sentido, como adiante se exporá.

Tal como se observou, entre os paramentos que elencam o vestuário litúrgico distinguem-se aqueles interiores16 dos exteriores, sendo que, como a designação sugere, os últimos se envergam sobre os primeiros. Uma vez considerado o número de peças envolvidas no espectro do vestuário religioso e as tipologias que prevalecem entre o acervo sinoportuguês estudado (composto pelos testemunhos materiais inventariados e pelas notícias compulsadas que a si se reportam), de seguida apresenta-se uma lista e caracterização das alfaias mais comummente identificadas no decurso da nossa investigação. A mesma incide nos representantes do vestuário exterior como a casula, a dalmática e o pluvial17. São, como acima

16 Entre o vestuário interior merece atenção a alva, o roquete, a sobrepeliz, o cíngulo e o amito. Muito

brevemente, a alva assume-se como herdeira da túnica romana e corresponde a uma veste com mangas, de corte amplo e comprida, cujo tamanho pode ser ajustado ao portador por meio do cíngulo ou faixa. Passou, no século VI, a assumir-se como distintivo de todos os clérigos, sendo o seu uso gradualmente reservado às funções de altar. Enquanto paramento litúrgico sacerdotal é usado durante a celebração da Eucaristia, nas funções que a precedem ou sucedem imediatamente e, por vezes, na procissão ou na bênção do Santíssimo. As primeiras eram de lã e raras vezes de seda ou linho, material cuja adopção apenas se generalizou no século IX. Com morfologia semelhante, distingue-se a sobrepeliz, de comprimento inferior ao das alvas, limitado à altura do joelho, e com mangas maiores e mais amplas. O roquete corresponde a uma derivação da alva, usado pelos eclesiásticos como hábito quotidiano na Idade Média, sobre o qual vestiam a alva para o serviço litúrgico. Em Roma, depressa se tornou num distintivo próprio dos religiosos mais insígnes. Embora a sobrepeliz tenha surgido no século XI só na centúria seguinte foi integrada nos rituais litúrgicos da Península Itálica primeiro, como veste de coro e, mais tarde, como veste dos clérigos na administração dos sacramentos e noutras funções fora da Eucaristia. Finalmente, o amito designa um pano rectangular usado ao redor do pescoço, debaixo da dalmática e da casula. O seu uso, tornado regular no século XI, visava preencher o vazio criado no pescoço pela casula e também evitar o contacto directo desta veste e das estolas com a pele e o cabelo (por motivos higiénicos); cf. RIGHETTI - op. cit., p. 539- 544; ROSSI - op. cit., p. 29-43; JOHNSTONE - op. cit., p. 7-20.

17 Cumpre-nos ainda assinalar as estolas e os manípulos que, embora integrem com assiduidade os paramentos

analisados, decidimos não incluir na lista que se apresenta. Trata-se, em todo o caso, das insígnias com que os diáconos e os padres eram investidos no momento da sua ordenação. A estola, símbolo do poder sacerdotal, da inocência e da imortalidade, é obrigatória na celebração da missa, na exposição do Santíssimo, nas procissões, administração de sacramentos como o Baptismo, e Benção dos Doentes, e noutras cerimónias, sendo que a sua cor deve corresponder à dos paramentos quando da celebração Eucarística, enquanto nos sacramentos deve ser branca, excepto no da Penitência e das exéquias fúnebres, onde toma a cor roxa. Derivada do orarium ou lorum, um tipo de insígnia usada por certos dignitários romanos como sinónimo de um ofício que deveriam cumprir, nos primeiros tempos do cristianismo foi usada pelos subdiáconos. Mais tarde, a sua utilização ficou reservada aos diáconos e aos presbíteros, sendo que os primeiros a devem usar à tiracolo sobre o ombro esquerdo e cruzada para o lado direito, e não à volta do pescoço como os padres, os quais, mais recentemente, a passaram a cruzar sobre o peito como forma de se distinguirem dos bispos, que a envergam pendente - enquanto símbolo da plenitude da sua jurisdição. Importa ainda assinalar que, além das estolas pastorais, de comprimento suficiente para chegar aos joelhos e usadas sem casula pelo papa, cardeais, bispos e presbíteros fora da missa, na pregação e na administração dos sacramentos, se distinguem as estolas de administração, ainda mais longas, de modo a ultrapassar a casula, e empregues na comunhão quando dada por outro padre que não o celebrante. No que respeita ao manípulo, este na sua origem romana, mappula, ou manipulus, começou por ser uma toalha de cerimónia que se levava na mão ou sobre o braço, com a qual se cobria ou limpava o rosto, se transmitia ordens ou se aclamava os vencedores. No entanto, e na sequência das transformações de que veio a ser alvo (análogas às ocorridas com a estola), de um têxtil com uma funcionalidade específica converteu-se, no seio da liturgia católica, numa insígnia de eminente simbologia cristã, ao evocar as cordas que ataram Jesus no decurso da Sua Paixão e, mais genericamente, as dificuldades daqueles que sacrificam a vida pelos outros, assim como o conjunto das boas obras que advêm do trabalho apostólico e do sofrimento, fatigas e provas da vida presente. O manípulo podia ser usado fixo à cruz episcopal ou ao punho esquerdo, por meio de alamares, de alfinetes, ou então ser cosido

expusémos, ornamentos plenos de significado e assumem-se para o padre e para os fiéis como uma lição viva permanente, que lhes recorda os seus deveres, as virtudes que a sua condição lhes exige ou as disposições que o ministério sagrado requer.

• Casula

Segundo Rabano Mauro, a alfaia mais importante da liturgia católica pela sua função, simbolismo e estética é a casula18. De teor exclusivamente sacerdotal começou por ser na sua origem e durante muitos séculos, ornamento de todos os clérigos nas suas funções religiosas tendo sido limitado o seu uso apenas às procissões do Corpus Domini19 e à celebração da

missa, portanto, aos presbíteros e prelados que a envergam como sobreveste.

A casula consiste numa peça têxtil que remete para a veste do Salvador, cuja amplitude que a caracterizou na medievalidade foi também apreendida como evocadora da unidade da Igreja20. Tem como simbologia a si associada a caridade “porque assim como a cazula se veste sobre as mais vestes Sacerdotaes, assim a caridade excede a todas as mais virtudes, & porque parte da casula està diante dos peitos, & parte detras das costas, se amoesta ao Sacerdote que ame a Deos, & ao proximo, ao amigo, & ao inimigo. A casula na parte anterior he mais estreita porque Deos he hum so, & a parte posterior larga, porque o amor do proximo he a muitos”21. Pela mesma razão alude ao jugo do Senhor22.

Usada sobre a alva e a estola, a casula compõe-se de um único acessório (formado por dois panos unidos no sentido longitudinal), de forma sensivelmente elíptica, com uma abertura no centro destinada à passagem da cabeça, caindo, quando colocada sobre o peito e sobre as

segundo as dimensões do braço de onde deveria pender. Embora mais pequeno e estreito que a estola, o manípulo acompanha a decoração desta insígnia. O seu uso foi entretanto dispensado com a Reforma litúrgica emanada do Concílio Vaticano II; cf. ROULIN, E. - Linges, Insignes et Vêtements. Paris: P. Lethielleux, 1930, p. 131-140; RIGHETTI - op. cit., p. 563-569; RÉAU, Louis - Iconographie de l’Art Chrétien. Paris: Presses Universitaires de France, 1955, tomo I, p. 235; LESAGE, Robert - op. cit., p. 110-118; FALCÃO, José António, coord. - Entre o

Céu e a Terra - Arte Sacra da Diocese de Beja. Beja: Departamento do Património Histórico e Artístico da

Diocese de Beja, 2000, tomo III, p. 46; ROSSI - op. cit., p. 61-64; JOHNSTONE - op. cit., p. 17-18; Estola e Manípulo. In ROCCA, Sandra Vasco; GUEDES, Natália Correia, coord. - Thesaurus. Vocabulário de objectos do

culto católico. Vila Viçosa: Universidade Católica Portuguesa - Fundação da Casa de Bragança, 2004, p. 157-158.

18 Cf. MAURO, Rabano - De rebus eccl. Lib. I, c. 21 Apud PLAZAOLA - op. cit., p. 395.

19 Cf. Chasuble. In BERTHOD, Bernard; HARDOUIN-FUGIER, Elizabeth - Dictionnaire des Arts Liturgiques -

XIXe e XXe Siécles. Paris: Les Éditions de l’Amateur, 1996, p. 175.

20 Cf. RÉAU - op. cit., p. 235; ROSSI - op. cit., p. 55.

21 ANDRADE, Lucas de - Theosebia, ov Cvlto e Adoraçam que se deue a Deos, com as Ceremonias qve se deuem

guardar no celebrar o Officio diuino. Lisboa: Off. de João da Costa, 1670, p. 107. Também João Pacheco

considera a mesma interpretação: “desce huma parte pelos peitos, e outra pelos hombros abaixo, para mostrar na

primeira o amor de Deos, e na posterior o das creaturas; e que se hade amar ao proximo amigo, e inimigo”; cf.

PACHECO, Fr. João - op. cit., tomo IV, p. 50.

costas do celebrante. Com uma altura máxima até aos joelhos e largura em função da medida dos ombros do portador, a casula não cobre os braços e não é unida lateralmente.

Ao contrário de outras peças de paramentaria, como o pluvial ou a dalmática, consiste numa das vestes litúrgicas que mais metamorfoses sofreu - no sentido de melhor se adaptar às funções e intenções a que se associa - tomando diferentes designações e morfologias, em função do tempo e dos lugares23. Reconhecem-se denominações como amphibalus, paenula, casula, planeta ou infula na base da sua origem sendo que, apesar das especificidades intrínsecas a cada uma das nomenclaturas, todas correspondem a uma espécie de capa que, com maior ou menor amplitude, envolvem o seu portador.

Foi com base nesta capa, usada no mundo clássico greco-romano, que a casula, já consagrada como veste religiosa implícita ao ritual de ordenação, evoluiu ao longo de toda a Idade Média, tornando-se gradualmente reservada às categorias superiores24.

Circular na sua morfologia original, manteve-se até ao final do século XIII com forma semicircular ampla e longa, quase até aos pés. A mesma apresentava, todavia, alguns inconvenientes, como o imenso chumaço formado na zona do pescoço, que tornava o seu uso desconfortável, ou a deformação que provocava na decoração do suporte após a colocação da veste, sobretudo na frente, onde esta sofria uma rotação de 90º25. Durante este período, na sequência da mudança de gosto que se testemunha, na transição do estilo românico para o gótico, e da procura por uma melhor adaptação ao serviço religioso, a sua morfologia foi alvo de nova reformulação, no sentido de proporcionar um maior conforto e liberdade de movimentos que a configuração inicial não permitia, sobretudo dos braços que se queriam agora livres para poderem elevar, no decurso da Eucaristia, a hóstia acima da cabeça do Sacerdote para que esta fosse vista por toda a congregação26. Nesse sentido, a casula tendeu a

assumir a forma oval, com as dimensões maiores a coincidirem com a frente e as costas. A este modelo corresponde a denominada casula gótica, que se utilizou especialmente entre os séculos XIV e XV.

23Dada a existência de uma bibliografia mais ou menos vasta e detalhada acerca deste domínio, optou-se por

estabelecer um breve historial, visando especialmente a compreensão da sua forma actual. Para uma abordagem mais aprofundada sobre a evolução da casula sugere-se a consulta de duas obras, respectivamente, da autoria de CABROL, Fernand; LECLERCQ, Henri - Dictionnaire d’Archeologie Chrétienne et de Liturgie. Paris: Letuzey et