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Entre o efémero e o perene: as alfaias têxteis no panorama sacro nacional de aparato entre os séculos XVI e X

IV. Entre o efémero e o perene: as alfaias têxteis no panorama sacro nacional de aparato entre os séculos XVI e XVIII

Um dos aspectos que mais sobressai na longa história dos têxteis no domínio religioso católico é o tipo de desempenho que, desde cedo, caracteriza a sua adopção em termos de ritual e de frequência no espaço sagrado, oscilante entre uma presença dir-se-á efémera e perene. Efémera pela brevidade com que as peças têxteis se apresentam pontualmente no espaço e no tempo1 em conformidade com o teor das celebrações, ao abrigo do calendário litúrgico estabelecido e das suas especificidades. Perene, pela mensagem que de si emana e porque estas componentes sempre a determinado momento resurgem, cumprindo o seu intento cíclica e eternamente.

Em qualquer das circunstâncias, enquanto portadores de fortes estímulos visuais, os têxteis demarcam-se pela versatilidade que os caracteriza, na capacidade que revelam para metamorfosear o espaço em que se integram em sincronia com o espírito da cerimónia a celebrar. Detentores de um conteúdo iconológico ritual, os paramentos (litúrgicos, de altar e de igreja) pela cor que ostentam e pela simbologia que reunem, anunciam a celebração cristã, exprimem a presença divino-humana de Cristo na santa assembleia e encarnam os mistérios divinos. E este foi sem dúvida um dos aspectos que a arte e a festa religiosa nacional que caracterizam o período consignado pelo nosso estudo, dominado pela cultura barroca, mais explorou.

Através da mobilização dos meios decorativos e não daqueles estruturais que definem a espacialidade religiosa em Portugal - de que é exemplo maior a aposição e/ou substituição dos tecidos que adornam o interior das igrejas - esta assume várias facetas desdobrando-se em cenários e ambiências convergentes com o calendário litúrgico2.

A par da talha e dos azulejos, também e sobretudo os têxteis, pelo carácter móvel que os caracteriza, concorrem nas suas múltiplas morfologias, cromias e funcionalidades para, como Maria de Fátima Eusébio sustenta, “delinear uma pluralidade de espaços, ilusórios e reais, que se movimentam em torno dos crentes, cuja complexidade perceptiva suscita a quimera de um universo transcendental. O “engano dos olhos” é intencional e devidamente

1 E não propriamente pela precaridade material que grosso modo se tende a associar a um outro conceito que de si

deriva, o de arte efémera; Cf. PEREIRA, João Castel-Branco - Arte Efémera”. In PEREIRA, José Fernandes, dir. - Dicionário de Arte Barroca em Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1989, p. 48-51.

2 Cf. ROCHA, Manuel Joaquim Moreira da - Das Construções e das Reconstruções: A Memória de um Mosteiro

(Santa Maria de Arouca - Séc. XVII/XX). Tese de doutoramento em História da Arte apresentada à Faculdade de

norteado”3 para a criação de um theatrum sacrum onde os têxteis se assumem como uma manifestação visual alegórica da glória interior da Igreja.

Apreendidos como um dos artifícios visuais privilegiados na ornamentação e no exercício de persuasão de que se reveste a celebração, muito em particular durante o barroco, onde se apela constantemente aos sentidos e ao total envolvimento da sociedade, os têxteis constituem presença assídua e esplendorosa nas encenações das efemérides sagradas celebradas entre as centúrias de Quinhentos e Setecentos. Assim transparece da leitura dos testemunhos desses acontecimentos que até nós chegaram, plenos de informes que bem atestam do apreço e da relevância destes elementos na veiculação e construção de memórias que se pretendem para a posteridade.

É incontornável a intensidade e amplitude com que os têxteis são explorados e empregues, ainda que sujeitos a algumas matizes entre as soluções que caracterizam os programas das celebrações compulsadas. Mesmo assim, nem por isso estas espécies conheceram um maior enfoque, no que à história e evolução do seu uso neste domínio concerne.

Muito embora o tema da nossa investigação se enquadre num outro mais amplo que é o da festa, não é nossa intenção proceder aqui à análise deste conceito. Não só já muitos autores o fizeram, e em múltiplas perspectivas4, como o nosso objecto de estudo se circunscreve tão-só a uma componente dessa mesma festa, que é a da presença e uso dos têxteis no contexto celebrativo religioso excepcional, muito em específico daqueles de proveniência chinesa. Na verdade, trata-se de um tema que, à semelhança de outros tópicos analisados nos capítulos anteriores, não conheceu ainda (do que nos foi dado alcançar) uma abordagem autónoma e

3 Cf. EUSÉBIO, Maria de Fátima dos Prazeres - Retábulos Joaninos no Concelho de Viseu. Dissertação de

mestrado em História da Arte em Portugal apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1998. Texto policopiado, vol. 1, p. 36.

4 Uma vez considerada a já razoável quantidade de estudos publicados em Portugal neste domínio, permitimo-nos

assinalar apenas alguns títulos: GOMES, Maria Eugénia Reis - Contribuição para o Estudo da Festa em Lisboa

no Antigo Regime. Lisboa: Instituto Português do Ensino à Distância, 1985; FERREIRA-ALVES, Joaquim Jaime

- A Festa Barroca no Porto ao Serviço da Família Real na Segunda Metade do Século XVIII. Sep. da Revista da

Faculdade de Letras do Porto. Porto: 5 (1988) 9-67; BEBIANO, Rui - Festa. In PEREIRA - op. cit., p. 189-190;

SANTOS, Maria Helena Carvalho dos, coord. - A Festa. Comunicações apresentadas no VIII Congresso

Internacional. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Estudos do Século XVIII, 1992, 2 vols.; FERREIRA-ALVES,

Joaquim Jaime - O “Magnifico Aparato”: Formas da Festa ao serviço da família real no Século XVIII. In Revista

de História. Porto: XII (1993) 155-220; TEDIM, José Manuel - Festa Régia no Tempo de D. João V. Poder. Espectáculo. Arte Efémera. Dissertação de doutoramento em História da Arte apresentada à Universidade

Portucalense Infante D. Henrique, 1999. Texto policopiado, em cuja investigação o autor contempla um estado da questão em relação ao estudo da festa em contexto nacional e internacional (p. 11-18); FERNANDES, Maria Manuela de Campos Milheiro - Braga: A cidade e a festa no Século XVIII. Guimarães: Núcleo de Estudos de População e Sociedade - Instituto de Ciências Sociais, 2003; FERNANDES, Maria Manuela de Campos Milheiro - A Festa Barroca e a Arte Efémera. In Cadernos do Noroeste. Série História. Braga: 1-2: 20 (2003) 27-42; SILVA, Carlos Guardado da, coord. - História das Festas, Turres Veteras. Torres Vedras: Ed. Colibri - Câmara Municipal de Torres Vedras - Universidade de Lisboa, 2006, VIII.

suficientemente lata, capaz de compreender de forma plena o protagonismo dos têxteis nos projectos simbólico-decorativos concebidos em redor dos episódios sacros ordinários e extraordinários que compõem o calendário litúrgico católico5.

Cônscios desta realidade, uma vez apreendidas as directrizes que estabelecem o uso das alfaias têxteis no contexto religioso, nesta parte do nosso trabalho pretende-se discutir a sua utilização nas celebrações religiosas de aparato em Portugal, entre os séculos XVI e XVIII, domínio em que se inscrevem os têxteis chineses que estudamos.

A incursão que de seguida se apresenta pretende-se global mas necessariamente limitada e em jeito introdutório, tal é a complexidade de perspectivas de entendimento que, na nossa concepção, o tema desperta. Com esse desiderato, estabeleceram-se três macro- capítulos, a saber: um concernente às armações têxteis no âmbito da tradição ornamental sacra portuguesa; outro dedicado à angariação dos adereços e à manufactura dos têxteis utilizados nessas mesmas celebrações; e um terceiro vocacionado para o caso particular dos têxteis chineses nas armações religiosas nacionais. No primeiro intenta-se enunciar as principais tipologias morfológicas adoptadas, os espaços de acção em que os têxteis se revelam protagonistas e as respectivas funcionalidades. No segundo capítulo analisa-se o processo respeitante à obtenção dos espécimes e ao envolvimento da comunidade, pela via do empréstimo, do aluguer e da manufactura. Por fim, no terceiro, discute-se a especificidade da componente têxtil chinesa nesta ambiência, através dos exemplos compulsados e da sua comparação com o acervo inventariado.

5 Segundo o Pe. Vavasseur “o pároco é obrigado a celebrar todos os dias que são de obrigação na sua paróquia e

em todas as festas em que deve aplicar o santo sacrifício pelos seus paroquianos. Estas festas são além dos domingos, a Circuncisão, a Epifania, Purificação, segunda e terça-feiras de Páscoa, S. Filipe, S. Tiago, Invenção de S. Cruz, Ascensão, segunda e terça-feiras de Pentecostes, festa do Santíssimo Sacramento, S. João Baptista, S. Pedro e S. Paulo, S. Tiago. St.ª Ana, S. Lourenço, Assumpção, S. Bartolomeu, Natividade de Nossa Senhora, S. Mateus, dedicação de S. Miguel, S. Simão e São Judas, Todos os Santos, Santo André, Imaculada Conceição, S. Tomé, Dia de Natal, St.º Estevão, S. João Evangelista, SS. Inocentes, S. Silvestre, a de um dos principais padroeiros do reino, da diocese ou da cidade”; Le VAVASSEUR, P. - Cerimonial Romano. Lisboa: Typographia do Diário da Manhã, 1884, p. 6. O calendário litúrgico contempla as festas religiosas ordinárias (de natureza cristológica, mariana e em honra dos santos) fixas e móveis sendo que, embora todas se repitam anualmente, as primeiras decorrem sempre no mesmo dia e as segundas, como a designação sugere, variam na data, como se reconhece com as festividades relacionadas com a Quaresma, a Páscoa, o Corpo de Deus e a Ascensão de Cristo. Complementarmente a estas há outras, ditas extraordinárias, que surgem quando por qualquer motivo se organizam procissões, festas de beatificação e de canonização, missas de louvor, sufrágio, etc. A bibliografia concernente às festas cristãs é extensa pelo que nos permitimos apenas nomear a obra de síntese de ROUILLARD, Philippe - Les Fêtes Chrétiennes en Occident. Paris: Les Éditions du Cerf, 2003. Para o estudo das festas comemoradas ao abrigo do calendário litúrgico na casa-professa de São Roque da Companhia de Jesus em Lisboa, vide o estudo de COUTINHO, Maria João Pereira; FERREIRA, Sílvia - Devoção e Recriação: Celebrações na igreja inaciana de S. Roque. In VALE, Teresa Leonor M.; FERREIRA, Maria João Pacheco; FERREIRA, Sílvia, coord. - Lisboa e a Festa: Celebrações religiosas e civis na Lisboa medieval e Moderna.

Em todo o caso, e previamente à abordagem da questão da componente têxtil no âmbito da tradição festiva sacra portuguesa, que em muito extravasa aquela adstrita ao sacrifício da Eucaristia, é nossa intenção tecer algumas considerações em torno de um conjunto interligado de aspectos acerca da festa que foi sobressaindo ao longo da investigação. Ainda que não se tratem de novidades interpretativas, porquanto as questões foram já discutidas noutros enredos, julgamos que a sua exposição em conexão com os têxteis, muito pode concorrer para a melhor compreensão do desempenho destes elementos nos contextos celebrativos.

1. Algumas considerações prévias em torno da festa religiosa em Portugal

• Planeamento das celebrações

Um dos aspectos que cumpre desde logo sublinhar é o da relevância da componente organizativa que subjaz aos preparativos das efemérides de índole religiosa em estudo. Independentemente da motivação festiva trata-se, na globalidade, de acontecimentos detentores de matrizes muito rígidas, concebidos como verdadeiras encenações aprestadas e ritualizadas com cuidado, em que todo um conjunto de elementos é devida e previamente sistematizado, ao ponto de até a alegria e a espontaneidade serem geridas, qual mecanismos prontos a activar sempre que necessário6. Verifica-se todo um investimento dos promotores das iniciativas num planeamento atento e exaustivo que visa sobretudo assegurar o absoluto controle sobre o evento, e assim evitar todo e qualquer tipo de excessos, eventuais lacunas ou outro género de imprevistos que comprometam o seu sucesso.

No que aos adereços têxteis respeita, esta postura comporta várias implicações, algumas delas de teor muito prático e de potencial impacte sobre a manutenção e sucesso dos projectos originais, quando se trata das efemérides que, na qualidade de excepcionais, requerem encenações mais complexas e de maiores dimensões. Não surpreende, portanto, que na obra de Fr. Manuel das Chagas, concernente às festas de canonização de Santo André Corsini no convento do Carmo em 16297, se destaque o quanto aqueles “a quem se encomendarão varias cousas, as começarão a negocear, & solicitar com todas as veras”8. Também um século mais tarde, desta feita na festa de canonização de dois santos inacianos Luís Gonzaga e Estanislao Kostka9, “Prevendo algum tempo antes os Religiozos da Companhia este unanime alvoroço de todo o povo, dispuzeraõ antecipadamente as couzas de tal sorte, que o apparato da Procissaõ naõ fosse ao menos dezigual à expectaçaõ”10.

6 Cf. LOPES, António; GUINOTE, Paulo - Os Tempos da Festa. Elementos para uma definição, caracterização e

Calendário da Festa na primeira metade do Século XVIII. In SANTOS - op. cit., vol. I, p. 383.

7 Bispo carmelita italiano (1301-1374), distinguiu-se pelo zelo apostólico, prudência e amor em relação aos

pobres. Foi beatificado no ano da sua morte e canonizado em 1629 pelo papa Urbano VIII (1568-1644).

8 CHAGAS, Fr. Manoel das - Festas qve o Real Convento do Carmo fes à Canonizaçaõ de S. Andre Cursino,

Bispo da Cidade de Fesula, & Religioso de sua Ordẽ. Em Setembro de 1629 ao Excellentissimo Senhor Dom Duarte. Lisboa: Off. de Pedro Creasbeeck, s.d. [1632], fl. 3.

9 São Luís Gonzaga (1568-1591), jovem religioso italiano falecido em nome da caridade e da pureza, foi

beatificado a 19 de Outubro de 1605 e canonizado a 31 de Dezembro de 1726 pelo papa Bento XIII (1649-1730). Estanislau Kostka (1550-1568), jesuíta polaco, é um dos santos não-mártires mais jovens da Igreja e considerado patrono dos jovens. Foi beatificado em 1670 e canonizado em 1725 por Bento XIII.

10 RELAÇAM do Apparato Triunfal & Procissaõ Solemne, com que os P.P. da Companhia de JESUS do Collegio

de Evora applaudiraõ publicamente aos Gloriozos S. Luiz Gonzaga, e Stanislao Kostka da mesma companhia novamente canonizados pelo sanctissimo padre benedicto XIII. Évora: Of. da Universidade, 1728, p. 4.