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Os registos de medicina e de enfermagem são elaborados de forma tendencialmente diacrónica, sob um formato próximo de diário, que traduzem, de forma mais ou menos exaustiva, o quotidiano de cada pessoa no seu internamento hospitalar.

O registo de saúde constitui um instrumento estruturado e colectivo e, neste sentido, como salienta Berg (2004), a sua construção escrita encontra-se igualmente condicionada pela sua prévia estrutura formal, que orienta e selecciona a recolha de informação através das formas pré definidas e da apresentação e composição das categorias que, em muitas situações, listam os temas entre o que deve ser considerado como informação relevante e como a não relevante.

Uma primeira análise sobre os conteúdos e sobre a forma como são elaborados os registos permite evidenciar o facto de que médicos e enfermeiros não apenas escrevem conteúdos diferentes como o fazem, formalmente, numa configuração distinta.

No caso da enfermagem a informação sobre cada pessoa, em situação de internamento, encontra-se de forma simultaneamente mais dispersa como, igualmente, mais estruturada e compartimentada em diferentes espaços de registo. A divisão técnica do trabalho de enfermagem fica plasmada na forma como se encontra organizado o processo de registo. A parte do registo escrito, oriundo da enfermagem que se encontra no interior dos processos hospitalares, é constituída, normalmente, por um maior número de formulários ou folhas de registo já previamente formatados e estruturados, com objectivos mais precisos sobre a orientação da recolha e do tipo de informação que se pretende obter.

Estes formulários e folhas de registo são especificamente orientados para os diferentes momentos temporais do internamento e para as diferentes acções de enfermagem, sendo facilmente identificáveis através das suas denominações e separadores físicos. Este tipo de

172 organização dos registos permite, também, maior facilidade no acesso a um determinado tipo de informação mais específica por parte de outros profissionais.

Deste modo, na parte da enfermagem, podemos encontrar formulários e designações de registo sobre: 1) o momento da admissão do indivíduo no internamento, normalmente identificado como a nota de entrada; 2) o registo de sinais vitais (temperatura, tensão arterial, etc.); 3) a identificação dos problemas ou diagnósticos de enfermagem; 4) o registo da terapêutica administrada; 4) as notas de alta de enfermagem ou cartas de transferência de doentes e, finalmente, 5) as folhas referentes ao diário de enfermagem. Os diários de enfermagem constituem a parte mais volumosa dos registos, pois reflectem uma descrição contínua do quotidiano de cada pessoa internada, nas 24h do dia, e que é organizada, normalmente, num formato sequencial que reflecte os três turnos do trabalho de rotatividade da enfermagem: manhã, tarde e noite.

Relativamente à presença de informação sobre as dimensões sociais dos indivíduos internados, no caso da enfermagem, esta pode-se encontrar de forma mais dispersa nestas várias secções de registo.

O registo médico, por seu turno, encontra-se normalmente de forma mais simplificada e menos repartida por diferentes formulários, do que no caso da enfermagem. O registo médico hospitalar é elaborado em folhas de linhas, podendo mesmo ser encontrados registos elaborados em folhas simples. Estas folhas, destinadas à escrita médica, apresentam um menor grau de estruturação e de pré-formatação e surgem normalmente identificadas com a denominação de diário clínico. Neste diário clínico ficam normalmente agrupadas as dimensões de caracterização social dos indivíduos internados, bem como a caracterização dos sinais e sintomas, trajectórias de doença e o acompanhamento da evolução do quadro clínico ao longo do internamento.

A informação sobre as dimensões sociais dos indivíduos internados surge assim de forma mais concentrada, sob o formato de um pequeno texto narrativo, que poderá ocupar apenas um parágrafo. A título ilustrativo recria-se aqui um registo tipo, cujo conteúdo é fictício, de como se poderá encontrar reunida a informação sobre as dimensões sociais no registo médico:

“doente do sexo masculino, 78 anos, residente em Lisboa, viúvo há sete, reformado (ex-professor do secundário), fumador dos 20 aos 63 anos (1 a 2 maços/dia), antecedentes de HTA, AVC e EAM (1998) deu entrada às 11h com o diagnóstico de AVC hemorrágico com …”

173 Normalmente, na sequência deste pequeno relato biográfico surge de forma mais detalhada, mas ainda no mesmo conjunto de folhas, o registo de informações sobre o curso da doença, descrição de sinais e sintomas, valores laboratoriais, esquemas terapêuticos, hipóteses diagnósticas, sinais vitais, etc. Na verdade, a economia de registo dos médicos contrasta claramente com a maior extensão dos registos de enfermagem. Heath (1982) refere como característica central dos registos médicos esta economia das descrições e a saliência no texto do que é considerado como o mais significativo.

Para além deste sentido de análise de âmbito mais descritivo, Berg (2004) salienta a necessidade de incluir, nas análises sobre os registos de saúde, as dimensões relacionadas com o poder, no sentido em que o registo também medeia a criação e a manutenção das hierarquias entre os profissionais de saúde. Segundo Berg (2004), as pouco estruturadas páginas dedicadas à história clínica sublinham a posição central do médico nos cuidados de saúde, que contrasta, por exemplo, com a muito estruturada lista de registo de temperaturas e sinais vitais de enfermagem que, por seu turno, sublinham a disciplina incorporada no trabalho de enfermagem e o sentido da necessidade de uma apresentação formal ao médico de uma panorâmica rica de informação. Neste sentido, o registo médico surge como uma das formas, através das quais, os diferenciais de poder são materialmente constituídos.

O registo de dimensões sociais por origens profissionais

Apesar de, como anteriormente referido no Capítulo 4, se assistir a uma progressiva incorporação das dimensões sociais e culturais nos modelos biomédicos e nos modelos de enfermagem, os registos hospitalares tendem a traduzir maioritariamente informação relacionada com as dimensões de tipo biofisiológico associado à doença. Ou seja, o conteúdo informativo deste tipo de registo hospitalar, sejam eles elaborados por médicos ou por enfermeiros é, maioritariamente, centrado nas dimensões que reflectem a evolução da doença, sinais e sintomas, diagnósticos clínicos, hipóteses diagnósticas, resultados de análises laboratoriais, esquemas terapêuticos adoptados, sinais vitais, padrões de sono, de alimentação ou de eliminação. A procura e o resgate das dimensões sociais tornam-se, por isso, uma tarefa que requer uma exaustiva e minuciosa leitura.

O próximo conjunto de análises decorreu da articulação entre a presença de informação sobre as sete dimensões sociais anteriormente definidas no Capítulo 5 e as origens profissionais. A Figura 6.1 traduz a distribuição das frequências, referentes à presença de cada

174 uma destas sete dimensões sociais, nos registos de enfermagem e nos registos de medicina, no conjunto dos dois hospitais.

Figura 6.1 Frequências das ocorrências das dimensões sociais no conjunto dos dois hospitais (%)

Fonte: Dados originais recolhidos no âmbito da investigação: “Desigualdades da vida e na morte. Saúde, classes sociais e estilos de vida”

Como se pode observar, através da Figura 6.1, os registos de enfermagem apresentam globalmente frequências mais elevadas de ocorrência de informação, que sustentam as várias dimensões sociais, com a excepção da dimensão relativa ao tabagismo e consumo de álcool. Uma segunda leitura permite destacar que, apesar de se verificarem diferenças entre as origens profissionais, na presença de informação sobre as várias dimensões sociais, esta diferenciação revela um padrão bastante semelhante para ambas as profissões analisadas. De um modo geral, os médicos e os enfermeiros registam de forma mais central informação que aqui é agrupada na dimensão sociodemográfica. Em 72,3% dos registos de enfermagem e em 54,9 % dos registos médicos, encontrava-se patente a presença de informação sobre a residência, estado civil ou sobre a naturalidade. De entre este indicadores verifica-se sobretudo a presença de informação sobre a residência e sobre o estado civil, sendo que a informação sobre a naturalidade constitui um elemento de caracterização social bastante mais raro. Verifica-se que este tipo de informação de âmbito sociodemográfico surge também, e para além dos registos de enfermagem e de medicina, como a dimensão mais frequente no

72,3 48,3 39,2 5,1 17,6 13,8 24,7 54,9 18,2 22,4 2,3 3,5 9,2 32,5 0 20 40 60 80 Sócio- Demograficos Família Sócio- Profissional Religião Recursos Cognitivos Alimentação Ocupação Tabagismo álcool Enfermagem Medicina

175 restante conjunto das outras profissões hospitalares, sobretudo nos formulários com origem nos serviços de recepção administrativa. Esta informação sociodemográfica é posteriormente incorporada nos processos de internamento sob a forma de etiquetas ou formulários informatizados.

A segunda dimensão que recolhe maior presença de informação é a relativa à família. Aqui, observa-se uma maior discrepância entre as frequências por origem profissional. Em praticamente metade dos registos de enfermagem, ou seja em 48,3%, existe a presença de informação referente ao contexto familiar. Informação que apenas surge em 18,2% dos registos de medicina. Dentro desta dimensão da família é sobretudo a informação recolhida sobre as variáveis coabitação e filhos que apresentam as maiores frequências. A informação sobre a existência de filhos, ou número de filhos, encontrava-se presente em 323 processos de internamento, ou seja em 21% dos casos analisados. Do total destes processos analisados, este tipo de informação surge de forma mais frequente nos processos oriundos das mulheres, que representam 62% dos casos, sendo bastante menos frequente nos registos dos internamentos dos homens com 38%. Ainda dentro da dimensão da família é de destacar a pouca informação sobre a profissão do cônjuge, que surge em apenas 6,8% dos processos e, igualmente a pouca informação sobre a profissão dos filhos, com uma frequência de 5,2%. Relativamente à profissão do cônjuge é de realçar que apenas se obtém informação do cônjuge quando este é do sexo masculino. Refira-se que em apenas seis processos oriundos da população masculina, ou seja em 0,3%, se encontrava presente informação sobre a profissão da esposa.

Esta situação reflecte uma tendência mais geral, que será posteriormente analisada, e que traduz a presença de mais informação sobre o universo masculino, mesmo quando, e como ficou demonstrado por este exemplo no casos dos indivíduos casados, não sejam os homens que estejam em situação de internamento, mas sim as suas esposas. Outro dado relevante reporta-se ao facto das profissões dos filhos, quando surgem registadas, se referirem maioritariamente a um conjunto de profissões situadas nas classes mais altas, como advogados, engenheiros e professores universitários ou então, a profissões ligadas à saúde, como médicos, enfermeiros, fisioterapeutas ou auxiliares de acção médica.

A terceira dimensão com ocorrência mais frequente reporta-se à presença de informação sobre os indicadores socioprofissionais. Em 39,2 % dos registos elaborados pela enfermagem existe informação sobre este domínio, enquanto que este valor desce para os 22,4% nos registos de medicina. Nesta dimensão existe maior presença de informação sobre a condição perante o trabalho do que sobre a profissão dos indivíduos.

176 Enquanto que um indicador como a condição perante o trabalho reflecte normalmente a situação actual do indivíduo internado, o que neste estudo maioritariamente se refere à condição de reformado, a definição da profissão já remete, na maioria destas situações, para trajectos e histórias de vida situadas no passado. De uma forma geral, os registos traduzem mais uma dimensão sincrónica do indivíduo, não favorecendo por isso uma análise de cariz mais longitudinal com uma clara tendência de menor peso das trajectórias biografias. As análises que incorporam uma dimensão mais histórica e biográfica do indivíduo referem-se maioritariamente ao historial de doenças, intervenções cirúrgicas ou anteriores esquemas terapêuticas adoptados. Ainda relativamente à presença de informação sobre a dimensão socioprofissional verifica-se, em menor percentagem, a ocorrência explícita sobre a situação face à profissão dos indivíduos.

Relativamente às dimensões que traduzem os estilos de vida relacionados com a saúde foram aqui organizados em duas dimensões. Uma dimensão referente ao tabagismo e ao consumo de álcool e uma segunda dimensão referente à alimentação, ocupação e recreação.

No conjunto destas duas dimensões, como se pode constatar ainda através da Figura 6.1, a que surge de forma mais frequente é a relativa aos hábitos de tabagismo e consumo de

álcool, sendo que se constituiu como a única dimensão em que a frequência surge com

valores superior nos registos oriundos da medicina, com 32,5%, do que nos oriundo da enfermagem com 24,7%. Contrariamente à dimensão socioprofissional, a informação a respeito destas práticas apresenta-se frequentemente com um sentido cronológico, em especial no caso do tabagismo, sendo possível, na maioria destas trajectórias traçar um percurso que vai desde o início do consumo de cigarros e que inclui, igualmente, informação aproximada sobre as respectivas idades referentes ao inicio desta prática, bem como, às idades em que posteriormente se tenha verificado o seu abandono. Relativamente ao consumo de álcool as descrições apresentam pontos de semelhança, mas mais circunscrito às situações clínicas definidas como alcoolismo.

O tipo de informação presente nesta dimensão acentua a presença da prática, sendo bastante mais raro a presença de informação que revela situações em que os indivíduos ou nunca fumaram ou nunca consumiram bebidas alcoólicas. O registo deste tipo de informação, ou seja, a presença de informação que reflecte a ausência de tabagismo ou a ausência de consumo de álcool, só se tornava relevante quando associada a situações de óbitos ocorridos em idades mais jovens e quando associada a determinadas causas de óbito por doença, como por exemplo, nos casos de cancro do pulmão, de enfarte do coração ou de doenças do fígado, em indivíduos que não tinham hábitos de tabagismo ou de consumo de álcool.

177 Relativamente à dimensão referente à alimentação ocupação e recreação, a informação surge com valores mais reduzidos, sendo 13,8% oriunda dos registos de enfermagem e 9,2% oriunda dos registos de medicina. A informação sobre o padrão de alimentação, a mais frequente dentro destas três variáveis, surge normalmente por associação a um conjunto de doenças que implicam a alteração da dieta alimentar, em que se destaca em primeiro lugar a diabetes depois a hipertensão arterial e finalmente as situações de recuperação de acidentes vasculares cerebrais (AVC). A informação sobre a ocupação/recreação dos indivíduos encontra-se praticamente concentrada nos registos de enfermagem e dão conta de algumas actividades que se traduzem em pequenos apontamentos como “ir ao Centro de Dia”, “ver televisão”, “fazer renda”, “passear com os netos”, “jogar às cartas no café” ou por exemplo “ocupar-se com uma pequena horta”, sendo que esta última situação é apenas presente nos registos oriundos de Beja.

Relativamente à dimensão referente aos recursos cognitivos dos indivíduos, esta surge com valores reduzidos e bastante mais concentrada nos registos de enfermagem com 17,6%, do que nos registos médicos com uma frequência de 3,5%. São sobretudos os níveis de escolarização que nesta dimensão recolhem maior peso informativo, apresentando um tipo de informação que incluí desde as descrições mais sucintas como “4ª classe”ou “licenciatura” até a presença de descrições de situações bastante mais especificas, embora mais raras, como “antigo 7º ano incompleto” ou “não frequentou a escola, não saber ler nem escrever, mas sabe assinar e fazer contas”. Bastante mais rara é, contudo, a presença de informação sobre o conhecimento que os indivíduos internados revelam sobre a sua situação clínica ou sobre os esquemas terapêuticos adoptados no domicílio.

Finalmente, no conjunto das sete dimensões seleccionadas, a que registou menor frequência de registo relacionou-se com a informação respeitante às confissões e práticas religiosas dos indivíduos. Em apenas 5,1 % dos processos de enfermagem analisados e em 2,3% dos de medicina se verificou a presença de informação sobre esta dimensão. Apesar da pouca presença deste tipo de informação é de salientar, contudo, que apresenta algumas especificidades na sua ocorrência. Por um lado, é uma informação que se localiza maioritariamente nos processos das mulheres (88%) e, por outro, salienta as situações de carácter mais minoritário na sociedade portuguesa. A justificação para a presença do registo deste tipo de informação que surge sob a forma das designações de “adventista do sétimo dia”, “jeová” ou “muçulmano”, é legitimada pelos profissionais de saúde, pelas implicações de ordem cultural que, alegadamente, se encontram relacionadas com determinadas práticas

178 médicas, como as transfusões de sangue, transplante de órgãos, mas também relacionadas com as restrições culturais associadas, por exemplo, à dieta alimentar.

De forma sucinta, uma análise mais agregada sobre a presença destas dimensões sociais revelam, de uma forma geral, que os registos de enfermagem diferenciam-se dos registos de medicina, tanto nos conteúdos como na forma e possibilitam uma melhor visualização dos indivíduos nas suas dimensões sociais. É sobretudo na presença de informação sobre as dimensões familiares e socioprofissionais que os registos de enfermagem mais se diferenciam dos registos médicos. Verifica-se ainda a existência de mais conteúdos informativos relacionados com os comportamentos considerados como de risco e, neste sentido, sabe-se mais sobre os consumos de tabaco ou de álcool do que sobre os padrões habituais de alimentação, prática de exercício físico ou sobre actividades de ocupação e recreação. Releva-se, finalmente, a pouca informação acerca dos recursos cognitivos dos indivíduos internados.