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Indicadores sobre a desigualdade em saúde Mortalidade e morbilidade

Giraldes (1996) sustenta que a avaliação das desigualdades em saúde pode ser medida recorrendo a dois tipos de indicadores: os indicadores de recurso e os indicadores de resultado. Os indicadores de recurso reflectem a dimensão do funcionamento dos serviços de saúde e incluem um conjunto de outros indicadores relativos à distribuição geográfica dos cuidados de saúde que incluem, por exemplo, o número de médicos, enfermeiros ou de farmácias por habitante, ou o número de hospitais, centros de saúde ou camas de internamento por habitante. Os indicadores de resultado incluem, por seu turno, um conjunto vasto de dimensões e variáveis de que se destacam claramente as referentes à morbilidade e à mortalidade (Cabral, Silva e Mendes, 2002: 34, Giraldes, 1996: 15).

Estes indicadores, morbilidade e mortalidade, são normalmente mobilizados para a avaliação de resultados de um determinado país, região ou mesmo de uma específica instituição hospitalar. Para além deste objectivo de avaliação no domínio da saúde as taxas que reflectem a morbilidade e a mortalidade de um país são frequentemente mobilizadas numa lógica comparativa, no sentido de influenciar o curso das políticas de saúde (Stacey, 1993). Neste sentido, este tipo de informação sobre o estado de saúde de cada país, que é normalmente traduzida em produção estatística (taxas de mortalidade, esperança média de vida, prevalência de doenças, etc.), tem constituído uma importante dimensão, não só enquanto indicador de resultados referentes ao estado de saúde de um determinado país, como

96 se têm constituem, igualmente, como importantes indicadores de desenvolvimento, entendido de uma forma mais global, de cada país.

Neste sentido, também estes indicadores de saúde reflectem formas de classificação simbólica e de avaliação de prestígio, nomeadamente, quando por referência ao contexto mundial, a posição de desenvolvimento de um determinado país é estabelecida segundo a mobilização de indicadores como a esperança média de vida ou a taxa de mortalidade infantil. O exemplo mais visível deste tipo de classificação reporta-se à publicação anual das tabelas

de classificação internacional de desenvolvimento que são elaboradas pelo Programa das

Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2002) e que incorporam este tipo de indicadores na construção final, para cada país, do que é designado como o índice de

desenvolvimento humano.

Relativamente às diferenças comparativas entre os indicadores referentes à mortalidade e à morbilidade verifica-se, desde logo e como anteriormente já exposto, que é a mortalidade que tem constituído, desde o século XIX, o indicador em saúde mais usado quando se pretende caracterizar diferenças entre populações, subgrupos ou categorias populacionais (Macintyre, 1994).

Em comparação com as taxas de morbilidade, que reflectem a distribuição dos padrões de doenças na população, as taxas de mortalidade, por seu turno, são de algum modo percepcionadas como mais fiáveis devido, principalmente, ao facto de a morte se constituir como um estado objectivamente mais fácil de ser definido e de se constituir, após a sua definição, como um estado definitivo.

A informação sobre as doenças quando recolhida e apresentada a um nível mais agregado, com objectivos de posterior tratamento estatístico, apresenta um quadro de limitações que resultam, por um lado, da maior complexidade dos processos sociais e organizacionais envoltos na elaboração médica dos diagnósticos, da sua confidencialidade ou da sua obrigatoriedade na declaração (Stacey, 1993; Prior, 1985). Por outro lado, quando esta recolha de informação sobre as doenças resulta de inquirições realizadas aos indivíduos em que o tipo de informação recolhida, que é naturalmente realizada de acordo com os tipos e objectivos da investigação, é originária da auto-percepção e reflecte uma forma mais subjectiva das pessoas sobre a avaliação do seu estado de saúde.

Como sintetiza Cabral, Silva e Mendes (2002), ao salientar as potencialidades no uso da mortalidade enquanto indicador mobilizável para a avaliação das desigualdade na saúde, a morte no plano teórico objectiva, por um lado, o resultado de um processo individual cumulativo que integra elementos bio-fisiológicos, psíquicos e sociais inscritos no corpo do

97 indivíduo e, por outro, permite retirar inferências sobre processos histórico-sociais de dimensão estrutural através dos quais as condições de existência e os modos de vida condicionam as desigualdades em saúde.

No plano metodológico salientam-se, por isso, as seguintes vantagens: 1) a morte reporta-se a um facto inequívoco o que permite uma maior precisão objectiva; 2) é institucionalmente exigido um certificado oficial do óbito validado pelo médico; 3) associado à morte corresponde normalmente uma causa, o que permite produzir um conhecimento sobre o universo das doenças; 4) são mobilizados critérios tendencialmente uniformes, sobre as causas de morte, baseados em classificações estandardizadas como a Classificação Internacional das Doenças (OMS, 2000), o que permite uma padronização das causas de morte e possibilita efectuar analises comparativas a nível nacional e internacional e, 5) destaca-se o facto das estatísticas sobre a mortalidade serem elaboradas de forma regular pela generalidade dos países contrariamente ao que sucede com as estatísticas sobre a morbilidade (Cabral, Silva e Mendes, 2002; Giraldes, 1996; Macintyre, 1994).

Apesar das potencialidades teóricas e metodológicas, decorrentes da mobilização de informação estatística sobre a mortalidade para a avaliação do estado de saúde de uma forma mais agregada, co-existem, igualmente, um conjunto de limitações associados a estes indicadores que importa analisar.

A mortalidade e as causas de morte deixam de fora um conjunto alargado de doenças e de famílias de doenças, de onde se destacam, a título de exemplo, os problemas relacionados com a área da saúde mental que, normalmente, não transparecem nas estatísticas de saúde baseadas na mortalidade (Macintyre, 1994). Como salienta Campos et al (1991: 77), apesar dos problemas de saúde mental raramente resultarem em causa de morte constituem, em termos relativos, como uma das mais importantes situações de morbilidade em qualquer país.

Para além desta omissão, patente na informação sobre a mortalidade de um conjunto de importantes doenças, importa considerar as dimensões relativas aos processos de decisão médica sobre a atribuição e identificação das causas de morte.

Os processos de diagnóstico e as decisões clínicas sobre a identificação e atribuição da causa de morte constituem-se, também, enquanto processos sociais e históricos complexos. A classificação das doenças e a definição dos diagnósticos é igualmente influenciada, não só por contextos mais estruturais, mas igualmente por dimensões que reflectem mais directamente os contextos de interacção quotidiana entre os profissionais de medicina, os utentes e as organizações e instituições de saúde. Contextos de interacção onde entram em jogo, por um lado, as diferentes características dos utentes, idade, sexo, classe social, etnicidade e, por

98 outro, contextos que englobam as diferentes instituições de saúde e os seus modelos de organização, onde o diagnóstico é efectuado.

Como analisa Prior (1985), uma dificuldade central relativamente à definição do diagnóstico da causa do óbito, e que se encontra igualmente exposto na literatura médica, encontra-se relacionado com a exigência da identificação de apenas uma causa do óbito, ou seja, pretende-se normalmente a identificação da causa principal. Esta lógica reenvia para um processo cognitivo associado a um tipo de modelo explicativo monocausal, sendo certo que em muitas situações, como refere Prior (1985), várias condições patológicas se encontrem presentes e concorram para uma explicação sincrónica e multicausal do óbito.

Uma vez nomeada a causa principal do óbito, esta identificação ficará indissociavelmente ligada à causa do óbito, que irá posteriormente traduzir-se em informação estatística a nível nacional, sendo que, o reducionismo que resulta desta necessidade mais objectivista de apresentar uma causa do óbito pode esconder a complexidade de causas envoltas no processo que conduziu ao óbito (Stacey, 1993). Frequentemente, como analisam Stacey (1993) e Prior (1985), as causas dos óbitos reflectem processos de conflito e de negociação que não reúnem, de forma frequente, consenso clínico em redor da identificação desta causa principal do óbito.

Um outro tipo de limitações, associado aos indicadores estatísticos sobre a mortalidade, encontra-se relacionado com o deficit de conhecimento que é produzido sobre o percurso que vai desde a definição clínica da causa do óbito até a elaboração final das estatísticas de mortalidade (Prior, 1985). Este percurso social complexo envolve, normalmente, outro tipo de agentes intermediários, para além dos médicos, e que têm de ser incluídos neste processo social relativo à própria de produção destes indicadores. Destacam- se, assim, a importância que constitui uma análise sobre os contextos e práticas dos técnicos que são responsáveis pela execução da tradução e da transcrição da informação clínica presente nos certificados do óbito para um sistema de codificação da causa do óbito. Prior (1985) revela, através de um estudo realizado sobre os técnicos que certificam os códigos do óbito que, por vezes, estes agentes procuram deliberadamente eliminar oscilações consideradas como indesejáveis, a respeito da informação clínica, tendo por base uma sensibilidade social que transparece, por vezes, quando, por exemplo, as causas de óbito envolvem situações de suicídio, alcoolismo ou mesmo relativas ao cancro (1985: 173).

Em Portugal, a Direcção-Geral da Saúde (DGS, 2006b) reconhece que a qualidade das estatísticas de mortalidade não tem sido sistematicamente avaliada destacando, em primeiro lugar, o deficit de preenchimento por parte do médico do formulário específico para a

99 certificação clínica do óbito, em segundo lugar, os problemas inerentes à transcrição das causas de óbito dos certificados clínicos para os verbetes de óbito do Instituto Nacional de Estatística e, por último, as dificuldades relacionadas com a necessidade de uma nova transcrição de informação agora do conteúdo destes verbetes de óbito para uma final introdução dos códigos no programa informático específico. A DGS (2006b) acrescenta que estas possíveis fontes de erro, apesar de se encontrarem identificadas, não permitem uma exacta quantificação dos erros daí decorrentes, nem de que causas de morte poderão ser mais afectadas (2006b:13)16.

Na execução deste processo de tradução e transcrição, entre a informação clínica e a operacionalização da causa do óbito, o instrumento de codificação envolvido, internacionalmente, consiste num sistema de classificação oriundo da OMS denominado de Classificação Internacional de Doenças (OMS, 2000). Pelo grau de importância que esta classificação representa, ir-se-á proceder, em seguida, a uma análise mais detalhada sobre este instrumento de codificação.