• Nenhum resultado encontrado

Relações sociais de observação implicadas na construção do objecto

Uma concepção de investigação empírica teoricamente orientada, como aquela que preside à presente investigação, compreende todas as operações implicadas na produção de conhecimento sobre o real, o que, consequentemente, inclui todas as operações que directamente se relacionam com a pesquisa observacional (Pinto, 1984: 10).

O trabalho científico, como referem Almeida e Pinto (1990), “é agenciador de um processo de produção que desemboca num produto. Se se quiser partir do conceito da forma geral da prática, como actividade que se exerce sobre uma matéria prima para a transformar num produto final, recorrendo a determinados meios de trabalho, a caracterização diferencial da prática científica exigirá a especificação dos diversos elementos que a integram” (1990: 9). A exigência da especificação dos diversos elementos que caracterizam a prática científica obriga à contínua recorrência, por parte do investigador, dos planos teóricos e metodológicos. No plano metodológico, e como anteriormente já referido, esta pesquisa observacional centrou-se na análise da informação oriunda dos registos escritos que fazem parte constitutiva dos processos individuais de internamento hospitalar. Na sequência desta opção, importa, reafirmar aqui alguns princípios de vigilância crítica no plano metodológico, inerentes aos processos de recolha de informação. Deste modo, a presente investigação adoptou uma concepção que implicaria, desde logo, o imprescindível trabalho de problematização das relações sociais de observação, no sentido de clarificar e sublinhar “a dinâmica social e as estratégias simbólico-linguísticas adjacentes à recolha de informação” (Pinto, 1994: 87).

Como analisado no contexto nacional por Antunes e Correia (2009), o processo, embora de cariz mais metodológico, associado ao acesso aos objectos empíricos tem constituído, na sociologia da saúde, uma dimensão que é sistematicamente alvo, por parte dos investigadores, de reflexão teórica. Na sequência deste processo de reflexão teórico- metodológica é recorrente a inclusão e o reconhecimento da importância central que as teorias

146 auxiliares ou de médio alcance desempenham no domínio das relações sociais de observação (Carapinheiro, 1998; Lopes, 2001) sobretudo, na esteira do que teórica e metodologicamente defende Pinto (1984, 2004) à luz dos contributos centrais de Bourdieu e de Merton.

Da definição do objecto empírico à construção de um objecto de estudo

O objecto empírico central que foi definido nesta investigação - os processos de registo de saúde de internamento hospitalar - corresponde a um objecto já previamente elaborado e que se encontra indissociavelmente ligado a uma estrutura organizativa complexa. Ou seja, estes processos de registo englobam, na génese da sua construção, a intervenção de diversos agentes sociais em articulação com uma forte componente organizativa e institucional representada aqui pelo hospital. Como analisa Heath (1982) os registos constituem uma importante dimensão organizativa nas instituições hospitalares onde a mais superficial e rápida visita, a uma organização deste tipo, revela facilmente um grande dispêndio de energia e recursos que são direccionados quer para o registo dos vários aspectos da biografia dos doentes, quer para o funcionamento burocrático destas instituições.

Em que consistem então os processos de registo de saúde dos indivíduos, que se encontram em internamento hospitalar? De uma forma resumida, cada processo é constituído por um conjunto de registos escritos, em suporte de papel, que são elaborados por diferentes profissionais de saúde que constituem as equipes hospitalares. O conjunto destes diferentes registos são normalmente reunidos numa mesma pasta que é individualizada e identificada para cada pessoa internada. A leitura conjunta desta informação permite dar conta do acompanhamento temporal e mesmo espacial do indivíduo, nas suas diferentes fases e percursos no interior da instituição hospitalar. Estes percursos vão desde a entrada do indivíduo no hospital passando pelas diversas situações de internamento e de consultas, que poderão ocorrer em vários serviços hospitalares ou até em diferentes hospitais, e que, finalmente, culminam no fim da sua situação de internamento quer seja por alta, por transferência ou por óbito. Os processos de registo referentes aos óbitos são, normalmente, ainda acompanhados pela acumulação de outros registos oriundos de anteriores internamentos e que se encontram nesta mesma pasta individual, sendo o mais usual, a presença dos registos referentes aos mais recentes internamentos e consultas hospitalares.

Após a saída desta condição de internamento, seja por alta, por transferência ou por óbito, os registos que foram sendo elaborados são posteriormente guardados e arquivados num local próprio, ficando reunidos por indivíduo e organizados de forma cronológica, ou

147 seja, organizados de forma que possibilite o acesso rápido sobre o conjunto dos vários registos que reflectem os vários internamentos que cada pessoa possa ter tido ao longo da sua vida. O conjunto destes processos fica reunido num mesmo espaço físico e sob uma mesma identificação e, deste modo, é possível uma reconstituição diacrónica dos vários internamentos ocorridos no percurso de vida de uma mesma pessoa.

No interior de cada processo de internamento hospitalar podem-se encontrar registos e informações oriundas de diversas profissões e de diversos serviços localizados no interior do hospital, que dão conta da divisão do trabalho em saúde, e que, percorrem um conjunto de profissões que incluem a enfermagem, a medicina, a psicologia, os serviços sociais ou os serviços administrativos. Simultaneamente, também se poderá encontrar no interior destes processos, informação e registos com origens exteriores ao próprio hospital e que podem incluir registos de transferências de outros hospitais, centros de saúde, lares ou ainda registos oriundos de profissionais de saúde, por exemplo, do Instituto Nacional de Emergência Médica ou de outras profissões como bombeiros, agentes da Polícia de Segurança Pública ou da Guarda Nacional Republicana. Encontra-se igualmente em cada processo os resultados dos exames de imagiologia - radiografias, TAC, ECG -, bem como o conjunto de análises laboratoriais realizadas durante cada internamento. Apesar da grande diversidade de origens profissionais envolvidas na construção destes processos a maioria dos registos, referentes aos indivíduos internados, é contudo maioritariamente elaborada por profissionais de medicina e de enfermagem. Facilmente se percebe que os registos de saúde hospitalares constituem um objecto empírico potencialmente rico em termos informativos, mas que terá que ser enquadrado num conjunto de preocupações teóricas e metodológicas.

Na génese da elaboração destes registos por parte dos profissionais de saúde terão que ser considerados, naturalmente, a implicação de processos de recolha de informação que envolveram a intervenção e a mobilização de diversos processos e técnicas de observação. Estes processos e técnicas constituem-se como outras tantas relações qualificadas do ponto de vista social, que têm que ser situadas em determinados contextos e estruturas sociais e que, neste sentido, devem também ser perspectivados como parte integrante na construção dos objectos de conhecimento.

Esta articulação surge como imprescindível, na medida em que o significado da informação recolhida no decurso desta investigação implica de forma simultânea, uma interpretação articulada com as iniciais relações sociais de observação (Costa, 2007; Pinto, 1994) e com os seus efeitos consequentemente envolvidos, no restante processo de investigação.

148 Decorrente deste posicionamento, o presente trabalho teve como objectivo de investigação complementar a construção de um objecto de estudo tendo por base, precisamente, as relações sociais implicadas na elaboração dos processos de registo de internamento hospitalar, centrado nas profissões de saúde de medicina e de enfermagem, por se encontrarem estas mais implicadas na sua elaboração quotidiana.

Neste nível de análise importa considerar também as propriedades sociais resultantes das dimensões especificamente interaccionais e contextuais, com o objectivo de complementar com as dimensões estruturais e disposicionais (Costa, 2007: 22). Propriedades sociais que resultam da interacção de médicos e de enfermeiros em diferentes contextos e quadros de interacção, nas mais diversas situações de internamento hospitalar, com os restantes profissionais de saúde, mas também com os indivíduos em situação de internamento. Este tipo de análise pretende, deste modo, inferir uma possível reconstituição de parte do processo que esteve envolto na elaboração, por parte de médicos e de enfermeiros, dos registos presentes nos processos dos indivíduos internados em contexto hospitalar.

Na construção deste objecto de estudo recorre-se no plano teórico, para além dos contributos situados na área da sociologia da saúde, os contributos da sociologia nos domínios das profissões e das organizações.