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O domínio da sociologia da saúde agrupa um conjunto de perspectivas teóricas plurais sendo que a sua delimitação teórica, o seu campo de acção ao nível empírico, bem como a sua própria designação têm servido de palco a um conjunto de problemáticas que, como refere Carapinheiro (2006), remetem em primeira instância “para as circunstâncias sociais, políticas e as condições intelectuais e teóricas que antecederam e nas quais se forjou este projecto de especialização sociológica e, em segunda instância, para os percursos acidentados da sua institucionalização académica e científica, em contextos sociais marcados por diferentes tradições sociológicas” (2006:7).

A própria definição sobre a designação deste domínio tem sido atravessada por controvérsias teóricas e encontra-se actualmente ainda longe de abranger um consenso. Sendo já clássica a inicial distinção efectuada por Strauss (1957) entre sociologia da medicina e sociologia na medicina, a designação deste domínio tem assistido a um conjunto de outras propostas de formulação que têm passado pela inclusão ou pela combinação dos termos

saúde, doença, medicina ou medicinas (Carapinheiro, 2006: 7-9).

A nível nacional, apesar da designação de sociologia da saúde não constituir actualmente a única formulação presente, ver por exemplo as propostas de Cabral, Silva e Mendes (2002) e Cabral e Silva (2009) que recorrem à designação de sociologia da saúde e

da doença, é, contudo, a forma institucional mais frequentemente usada, ao nível da produção

académica em sociologia (Antunes e Correia, 2009). Segundo a interpretação de Carapinheiro (2006) a designação de sociologia da saúde assenta num reconhecimento mais abrangente que remete para a assumpção de que a ideia de saúde não exclui a ideia de doença e que, simultaneamente, não consagra a doença como um negativo de saúde (2006: 9).

No plano histórico, o inicial desenvolvimento do domínio de uma sociologia da saúde localiza-se primeiramente na sociologia americana, numa tradição que se mantém ainda hoje sob a designação de medical sociology, ou seja, de sociologia da medicina. Nos Estados

52 Unidos o primeiro uso do termo medical socioloy surge em 1894, num artigo publicado sob a autoria de um médico, Charles McIntire, numa revista originária do campo médico, intitulada de Bulletin of the American Academy of Medicine (Cokerham, 2008). Esta inicial designação e delimitação do domínio remetiam, no essencial, para uma orientação direccionada para o estudo das especificidades das relações internas da profissão e do trabalho médico e das suas relações externas com a sociedade (Cokerham, 2008: 34).

O domínio da sociologia da saúde americana era, por isso, caracterizado por ter um percurso de relativa autonomia em relação à própria sociologia. Na verdade, a influência e o crédito dos contributos e do reconhecimento deste domínio eram mais originários da medicina do que propriamente da sociologia (Cokerham, 2008). Contudo, importa frisar que o significado de autonomia aqui utilizado refere-se mais a uma lógica de separação da sociologia do que propriamente a uma real independência na construção cientifica ou na autonomia de decisão sobre as agendas de investigação. Como refere Cabral, Silva e Mendes (2002) a atenção desta disciplina “centrava-se na profissão médica e nos locais onde os médicos exerciam a sua actividade, ou seja, o hospital, o qual constituía, simultaneamente, a instituição onde podiam encontra-se os indivíduos que padeciam de patologias agudas” (2002: 27).

Este conjunto de factores ajudam explicar a popularidade da designação de medical

sociology e, sobretudo, como analisou Strauss (1957), ajudam a perceber a visão de uma

concepção, muito corrente na altura, de sociologia na medicina, ou seja, de perspectivar os contributos desta sociologia como subsidiaria ou mesmo dependente da medicina. Curiosamente, e na sequência do que tem sido referido, a solicitação dos contributos deste domínio sociológico não eram situados no plano de uma análise mais teórica e mais demorada, cujas consequências da produção do conhecimento só seriam observadas num prazo temporal mais alargado, mas eram sobretudo vistas como uma forma útil para a resolução de problemas práticos ocorridos no interior das instituições hospitalares.

Neste sentido, o domínio da sociologia da saúde carecia de um corpo teórico que pudesse consubstanciar um real grau de autonomia no plano científico. A primeira perspectiva sociológica que desenvolveu uma análise teórica própria sobre os fenómenos da saúde e a da doença foi a do funcionalismo norte-americano, ancorada sobretudo sob os escritos de Parsons, durante as décadas de cinquenta e de sessenta do século XX. É sobretudo através da obra de Parsons, que a então designada sociologia da medicina, se tornou numa área disciplinar reconhecida pelo campo académico sociológico (Cokerham, 2008).

53 Na sua obra, The Social System, Parsons (1951/1984) elabora a sua teoria baseando-se nos contributos de Durkheim e Weber e, neste sentido, passa a integrar na sociologia da saúde um corpo e uma tradição teórica que até então se encontravam ausentes.

Segundo a tradição estruturo-funcionalista de Parsons (1951/1984) a saúde é enquadrada também como um valor fundamental, que se encontra integrado num sistema mais amplo de valores que caracterizam as sociedades contemporâneas. Releva-se nesta perspectiva de Parsons a importância que os estados de saúde das populações desempenhavam no funcionamento geral do sistema social como um todo. Um óptimo nível de saúde na população, como um todo, era vista, segundo Parsons (1951/1984), como um pré- requisito para o bom funcionamento das modernas sociedades. Também num nível analítico mais micro da explicação da acção social a saúde era concebida como uma das pré-condições para a acção. O grande contributo de Parsons mantém-se para a sociologia da saúde e deverá ser localizado na defesa da tese de que a produção de conhecimento sobre a saúde e a doença ter que ser enquadrado na condição de se adoptar a perspectiva de que estes fenómenos são constituídos e parcialmente definidos por processos biológicos, mas que são igualmente parcialmente definidos por processos sociais.

Este posicionamento epistemológico marca e percorre o domínio da sociologia da saúde até à contemporaneidade, marcando presença mesmo nas diferentes abordagens e tradições sociológicas. A actualidade desde pressuposto é exemplificada através de um pequeno excerto de Carapinheiro (2006) que sustenta que no domínio da sociologia da saúde:

“a saúde e a doença são entendidas como designações sociais que não dependem, senão parcialmente, de processos biológicos e fisiológicos, ou seja, são predominantemente encaradas como entidades sociais, culturais, morais, políticas, éticas estéticas, perspectivadas nos planos das culturas, representações e práticas que lhes dão significado e sentido, das experiências subjectivas e objectivas que moldam as circunstâncias de as viver, e dos modos de acção e de regulação que circunscrevem as suas formas de institucionalização” (2006: 8).

A saúde como um espaço social. Concepção multidimensional da saúde

Os fenómenos relativos à saúde mais do que uma realidade derivada de definições biológicas, médicas ou até filosóficas emergem simultaneamente como uma noção e como um espaço definido pelas relações entre o corpo físico e o corpo social (Fassin, 1996). Uma relação cultural, politica e historicamente construída na qual se sedimentam os significados

54 elaborados tanto pelo senso comum como pelo conhecimento erudito e pericial e que, deste modo, evocam um espaço social multidimensional onde se desenrolam lutas e conflitos e que coloca em relação um conjunto de agentes que aí se posicionam como profissionais de saúde, doentes, administradores ou políticos, que envolve lutas entre agentes que, por sua vez, desenvolvem estratégias para impor as suas visões diferentes do que é social e politicamente tratado como um problema de saúde (Ferreira, 2007; Fassin, 1996).

A saúde é por isso uma noção multidimensional e um valor plural que também se encontra num mercado regido por leis e mecanismos de concorrência e regulado pelas relações entre os profissionais de saúde, o público leigo e o Estado. É um produto do discurso médico e institucional e, ao mesmo tempo, é uma realidade do senso-comum (Fassin, 1996: 38).

Uma revisão bibliográfica no domínio da sociologia que procure uma interpretação sobre a noção de saúde permite concluir que não existe uma forma simples nem óbvia de definir este fenómeno (Blaxter, 1990; Bury, 1997; Cockerham, 2008).

Desde a antiguidade clássica grega que a saúde é entendida como o normal e a doença como o desvio (Dubos, 1993). Saúde e doença têm surgido, assim, como os dois lados de uma mesma moeda, numa relação dicotómica que se naturalizou ao longo do tempo. Contudo, entre a saúde e a doença não existe uma pura simetria ou uma simples figura alternativa. Como refere Radley (1993), os mundos da doença e da saúde não poderão ser completamente separados porque se constituem enquanto dimensões que informam cada uma das partes (1993: 2). Se, por um lado, a ideia de saúde não exclui a ideia de doença (Carapinheiro, 2006) por outro, e como salienta Fassin (1996), a saúde e a doença situam-se em níveis diferentes de interpretação, sendo que a saúde não pode ser reduzida à sua simples oposição à doença. Como refere Carapinheiro (2006), a doença não surge como o mero negativo de saúde, ou nas palavras de Fassin (1996), a saúde não poderá ser entendida como o inverso da doença mas ao invés, o seu entendimento deverá situar-se mais como o seu anverso. Ou seja, para Fassin (1996), a saúde recobre uma maior amplitude de significação no mundo social surgindo como uma noção mais lata, mais abstracta e mais indefinida do que a ideia de doença.

Relativamente as dicotomias saúde e doença, cuja lógica se estende e se reifica em dicotomias assentes nos pólos do normal e do desvio, em que a saúde surge como o equivalente do normal e a doença como o equivalente do desvio, Canguilhem (1984) defende a tese, mais complexa, de que, por exemplo, o ser saudável e o ser normal não se constituem como simples equivalentes, até porque, no suposto outro pólo, o patológico, este estado pode até ser considerado como uma espécie de normal. Na mesma lógica de argumentação Blaxter

55 (1990) defende ser perfeitamente possível enquadrar o estatuto de saudável com a co- existência, por exemplo, de doenças crónicas ou de incapacidades. Para Canguilhem (1984) o estar saudável não é somente ser normal numa dada situação, mas também estar ou ser normativo nessa situação.

No plano das representações sociais a definição de saúde surge de forma bastante lata e multidimensional numa palete de significados que surgem associados ora às dimensões de normalidade, de equilíbrio e de ausência de doença ora associado à noção de reserva, recurso ou capital, ligado aqui à capacidade para o desempenho de tarefas quotidianas e à prossecução de objectivos de vida (Vagero, 1995; Blaxter, 1990).

Como refere Vagero (1995) a saúde é consistentemente reportada como um valor humano e como um recurso fundamental quando às pessoas lhes é questionado sobre as dimensões mais importantes nas suas vidas. Na verdade, a noção de saúde integrou na vida moderna o dever de saúde (Herzlich e Pirerret, 1991) como um recurso que o indivíduo deve promover. Como refere Ferreira: “A extensão da noção de saúde pode tornar legítima qualquer forma de intervenção, médica ou não, para promover a saúde que se afirma como um valor fundamental das sociedades modernas ” (Ferreira, 2007).

O termo de saúde, segundo Fassin (1996), descreve um espaço social mais extenso que o da própria doença ou o da medicina: “ à forma elementar do evento que constitui a doença, deve-se opor a realidade complexa da saúde como noção culturalmente determinada e como um espaço politicamente estruturado” (Fassin, 1996:34).

Segundo Stacey (2003), as concepções dominantes sobre a saúde que são originárias do campo médico, quer da área da medicina clínica como do domínio da epidemiologia, apresentam uma abordagem teórica, tendo por referência central a oposição à doença. Na medicina clínica o significado de saúde remete para o estado de ausência de doença ou morte e, de forma similar, na epidemiologia o estado de saúde de, por exemplo, uma nação é medida através de uma série de quadros e indicadores que referem a incidência da doença entre as populações ou a frequência com que morrem, em relação com diversas condições.

A primeira tentativa institucional mais famosa de ir para além do modelo convencional da doença é provavelmente a definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), patente na inaugural constituição de 1946, que estabelece uma visão de saúde com um significado abrangente e multidimensional: “A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença e enfermidade” acrescentado que “a saúde de todos povos é essencial para conseguir a paz e a segurança e depende da mais estreita cooperação dos indivíduos e dos Estados” (OMS, 2000).

56 Stacey (1993) refere que uma definição deste tipo pode ser usada como um estado ideal ou como um objectivo geral que oriente as pessoas em vez de uma possibilidade empírica. Como refere Silva (2008), a saúde como bem-estar é uma expressão que tem vindo a ganhar um importante significado na promoção da saúde. Se, por um lado, esta maior abrangência na definição de saúde permite descentrar o discurso por referência única à doença e salientar uma concepção positiva e multidimensional, por outro, a operacionalização de um tão abrangente conceito corre o risco de englobar praticamente todas as actividades humanas, num equivalente próximo da noção de felicidade (Bury, 1997; Blaxter, 1990). Se a definição de saúde proposta pela OMS em 1946 comporta, por um lado, uma concepção positiva e multidimensional da saúde, por outro, estabelece a saúde como um direito e a obrigação política de assegurar a cada indivíduo as melhores condições de vida possíveis (Ferreira, 2007). Deste modo, a ideia de desigualdade perante a saúde, a doença ou a morte é, como referem Cabral, Silva e Mendes (2002), compreendida a partir da ideia de direito à saúde.