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XXXIII Culpa e Punição

No documento Editor Cassiano Calegari. Capa Bolivar Escobar (páginas 143-147)

XXXIII

Culpa e Punição

O

ato caloroso o fazia se enxergar em fumaça e poucas cinzas ao redor de um corpo em partes avermelhado e desfigurado. Na garrafa plástica ainda restava algum resquício da gasolina.

Queimar. O intuito do padre não foi interceptado por sua alma ame-

drontada. Finalmente se despedia do mundo material. Não saberia se permaneceria vagando no mesmo local onde muitos julgariam como a ocorrência de uma decisão inconsequente, mas algum sentido gritava dentro de si que o sofrimento interno teria um final.

Ollif não se sentia atraído por qualquer que fosse o acúmulo de bens ou conquistas que representassem poder. Apenas baseava-se na simplicidade, muitas vezes combinada com a compaixão por quem o rodeava, sendo uma referência de tranquilidade. Fonte de paz. Desde a infância, percebia que os caminhos da vida o convidavam a caminhar sobre eles com passos leves, longe de qualquer infortúnio. Mesmo em posse de seu segredo intocável, seguia no ritmo da fé proporcionada pela religiosidade.

A promessa feita a si mesmo era de silêncio eterno quando algo se referisse a sua criação. O bloqueio mental que criou era incontestável, mas precisaria da confidência dele mesmo desde o momento em que seus olhos ficaram úmidos ao perceber que havia sido a causa da parti- da de seu pai para os céus.

O menino não tinha culpa. A auto-defesa foi natural. Após arrastar o corpo magro de seu pai para perto dos cacos de vidro, sentia o cheiro de álcool misturado com sangue espalhado pelo assoalho, semelhante

144 - Da mente ao impulso

ao que parecia evaporar de cada poro de seu pai. “Não vai machucar. Ve-

nha cá”. Os tons de voz trêmulos que pareciam reverberar no canto de

encontro das paredes que Ollif estava encurralado chegavam aos seus ouvidos ao passo que sua pele arrepiava.

Ao dar um passo a frente e estender um braço para agarrar a crian- ça, o homem alto acabou cambaleando e, por bater com o rosto enve- lhecido no chão, deixou a mão que segurava a garrafa de uísque barato se abrir. Sua fraqueza acumulada não pôde o defender.

O menino assistia seu pai agonizando. Rapidamente, fugindo de mais um abuso, tomou a decisão que transformou sua vida. Não pensou mais que alguns segundos, pois conhecia sua propensão a desistência em situações de risco. Com um dos grandes cacos de vidro em mãos, apro- veitando a postura indefesa de seu pai, cortou sutilmente as veias mais aparentes que avistou no pescoço comprido e sofrido em sua frente. A magreza ressaltava a aparência cansada destas veias. O sangue jorrava e os gemidos de dor mesclavam-se com os espasmos de incredibilidade da criança que estaria livre do amor incondicional que era obrigada a praticar. Um menino tão novo jamais teria culpa em um incidente envolvendo um adulto alcoólatra.

Desde então, a vida de Ollif foi dedicada a caridade. Adotado pela Igreja local, o formado líder religioso era tido quase como um santo da região que habitava e ministrava cultos de paz. Pessoas afirmavam, crentes, que percebiam uma aura límpida ao seu entorno. Mas os últi- mos meses estavam sendo conturbados para o padre. Seu retiro espiritu- al inexplicável foi mais extenso do que o prometido e causava saudades em fiéis.

Longe de sua sanidade, agora, lembrava de que o que bloqueava em sua mente retornara. As mãos do menino eram tão lisas quanto uma seda. Podia sentir os furinhos perto dos dedos delicados da mão fofa. A boca era como um desenho perfeito, com lábios finos. A pele clara con- trastava os olhos escuros, quase negros. Os cabelos possuíam a mesma cor preta dos de Ollif, fazendo que a combinação fosse perfeitamen- te harmônica. As lágrimas do menino eram uma mistura de prazer e pecados que confessava anteriormente. O padre sentia-se desbravando um novo ambiente, causando uma nova integração com os sentidos de

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viver. Estou mais vivo. A criança seria consolada pela vida, assim como ele foi. A certeza de que ela encontraria a paz e seria capaz de proferir a bondade era absoluta. “Todos sentimos dores para que possamos sentir o alívio

e encontrar a nós mesmos”, dizia ao órfão que o procurara momentos antes

do sexo, no espaço de sua casa humilde improvisado como confessio- nário.

Sua mente desejava profundamente a relação proibida. Tudo em sua vida havia sido tão regrado. Suas amarras foram soltas. No entanto, sua punição própria foi maior do que sua mente programara inicial- mente. A cada segundo, sua energia pesava mais, com culpa e sem fato- res explicativos que não unicamente o prazer carnal, o qual nunca havia experenciado. Nenhuma reza o curaria. A perturbação tomou conta do seu ser. Seu retiro seria eterno.

Gasolina foi o último gosto a fazer seu paladar trabalhar. Engas- gou-se e lacrimejou. Sentia seu corpo ardendo profundamente. Na cai- xa de fósforos utilizados para acender seu fogão ainda restavam alguns palitos. O fogo originado do atrito entre os três palitos de fósforo unidos e a lateral da caixa foi conduzido até a boca de Ollif. A sensação, no ins- tante, pareceu vagarosa, como se fosse em câmera lenta. O risco quente e cortante seguiu rigorosamente o rastro da gasolina para dentro do corpo. Seus músculos latejavam. Alguns órgãos pareciam dilatar e fer- ver junto ao sangue. O ardor do inferno. Os olhos nada mais enxergavam, exaltando ainda mais o sentido do tato, que aos poucos foi sumindo. Repetia para si mesmo seu último conselho como líder espiritual: “Todos

sentimos dores para que possamos sentir o alívio e encontrar a nós mesmos.”

Fumaça e cadáver queimado representariam sua última imagem

material. Seu espírito ainda assistia o cenário torcendo pelo perdão para poder, enfim, sumir sem saber se deixaria saudades ao pequeno instru- ído.

No documento Editor Cassiano Calegari. Capa Bolivar Escobar (páginas 143-147)