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XXVII Dominó Humano

No documento Editor Cassiano Calegari. Capa Bolivar Escobar (páginas 119-123)

XXVII

Dominó Humano

A

janela foi estraçalhada assim como o crânio de Jonny. A chuva em queda forçava os cacos de vidro a escoarem pelas valetas próximas à casa de madeira, onde as tábuas do chão gritavam a cada passo firme dado na sala. A beleza do sangue se esvaindo com- binava magnificamente com a sonoridade do movimento da água, que mesclava-se graciosamente ao vermelho.

Afirmar que o temperamento de Jonson era tranquilo poderia ser exagero. Mas nada importa quando se é poderoso. O poder permite. O ego viciado em realizações a cerca de si mesmo ocultava qualquer aconteci- mento em vidas alheias. E isso era tão prazeroso quanto transar com os animais de estimação do próprio filho adotivo, que chorava junto com os cãezinhos quando percebia o sofrimento nos olhos de seus melhores amigos.

Desistir era algo falho, em qualquer circunstância. O pai solteiro possuía mil espelhos entre os espalhados em sua casa e os mantidos dentro de si. Sua autocrítica era essencial para derreter qualquer mani- festação contrária às suas ambições. Torturou, matou, defecou na cara de quem tentou lhe impor verdades diferentes das suas. E o seu mundo sabia o quanto literal eram estes acontecimentos. Questão de sobrevivência.

Após a morte dos três primeiros filhos, a possibilidade de guarda de crianças estava recusada permanentemente. Os laudos que criava apontavam doenças graves, porém, não parecia ser possível conseguir outro objeto para enfeitar sua casa tão cedo. Sua cordialidade era algo totalmente crível, de sensatez inabalável. Como seria possível qualquer

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situação negar-lhe algo? Infelizmente, protocolos não eram aceitos em sua vida.

Raptar uma criança exigia muito mais do que observar por lentas tardes calorosas a pracinha pública de brinquedos. Era preciso analisar cada ação de cada um que frequentasse o local. Pais, babás, avós. A au- sência de algum pequenino perdido o frustrava. Ainda assim, todos os dias observava horários e movimentos de seus possíveis companheiros. As cores da praça eram desgastantes para sua visão, mas sua necessida- de de aprovação não o deixava sossegar seu interior. Qualquer momen- to poderia ser crucial.

Sua pressa ignoraria o alarde das pessoas, que deveria acontecer pouco antes da praça sumir de seu campo de visão. A mão grossa tapan- do a boca do menino abafava qualquer inocência que expelia-se pelos olhos desproporcionais em forma de lágrimas geladas de medo infantis. Enquanto dirigia com sua outra mão seu carro pacientemente, explica- va ao novo companheiro suas recomendações de convivência.

Jonny não reagia tamanho o choque psicológico. Branco. Não era possível captar qualquer informação. Nem auditiva, nem visual. Sentia, apenas, seus lábios tremendo, contraindo-se até se tornarem amarelos. O carro confortável não era capaz de fazê-lo relaxar. “Filho, a mamãe já

volta. Se comporte como combinamos.” E pensar que não teve nem tempo de

jogar o futebol que tanto queria. Desobedecer sua mãe parecia castigo divino, como ela mesma o advertia. “Vai ter que se acertar com Deus.” Pelo jeito, Deus era mal e não fazia questão se calar.

Passadas quatro horas, o garoto não esboçava reação alguma. A es- colha de Jonson não foi certeira. Sua essência o dizia para esperar mais, escolher com mais proximidade de suas certezas. Mas o impulso anulou seu instinto. Tudo o que tinha era um companheiro mudo, sem sal, que parecia não lhe dar ouvidos.

A cada grito de ordem, notava que nem piscar seu então filho ado- tivo era capaz. O ego crescia e feria sua mente a cada indiferença que se criava. Não conseguia dominar um ser tão inferior em todos os sentidos. Idade, beleza, poder. O menino não era coisa alguma. Muito menos poderia ser comparado a alguém como seu mais novo pai. Os espelhos

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refletiam os olhos esbugalhados do menino em uma neutralidade sem espécie de graça.

Respirando fundo, buscava saciar sua sede de afirmação. A sala pa- recia escassa, mesmo podendo observar sua aparência nos espelhos ao seu redor. Mais um assim. O que estou fazendo de errado? Jonson não conheceu nem a voz de seu novo companheiro. Sete anos de idade e tão poucas palavras não condiziam com a realidade.

A substituição aconteceria. O silêncio consequente do pânico da criança foi quebrado junto com a janela por gritos agudos de desespero. Restava apenas terminar de estilhaçar o vidro da janela da sala com o rosto de Jonny. A cada arremesso, Jonson sentia a raiva interior voltan- do ao seu controle. O corpo pequenino já estava mole. Quando enfiou seus dedos indicador e médio nas pequenas narinas, teve a sensação de desgrudar as cartilagens da criança dos ossos. Neste momento, encara- va com frieza os olhos imensos à sua frente e proferia em sussurros suas frases de efeito. “Quem aqui é o maioral agora? Eu. Eu sou. Eu.”

A nuca do menino ainda estava morna, mas deveria ser em função do contato da mão robusta que o apertava nos momentos dos empur- rões de encontro ao vidro. A palidez vinha chegando em degradê, con- forme o sangue escorria das diversas vertentes formadas em seu rosto, que agora possuía alguns ossos fraturados. Após seco, Jonny seria que- brado, empalhado e montado junto com os demais objetos decorativos da sala de estar. O dominó humano. Cabeça com cabeça, perna com per- na, e assim por diante. Ele era o quarto e completaria o jogo, não fosse por seu órgão sexual, que não faria par com o corpo de Celeste.

Jonson queria estimular seu dote paterno e concluir sua obra. En- feitar sua sala o fazia recordar o quão poderoso poderia ser. Adotar outro filho já era uma decisão unânime entre ele e seu próprio ego. A convivência com seres inferiores o moveria à automatização de sua afirmação. Quem sabe até parte dos espelhos poderiam ser retirados.

No documento Editor Cassiano Calegari. Capa Bolivar Escobar (páginas 119-123)