• Nenhum resultado encontrado

XXIII

Solitário

N

ão bastava entristecer pela própria aparência arruinada nem sua convivência limitada por seu comportamento im- pulsivo. Para um pequeno círculo social, a vida de Tedd não corrompia-se por fatos coletivos, pois temia a desestabilização do bem- estar individual. Antes solitário do que dividido.

Confortavelmente, viajava dentro de si como se não houvesse ama- nhã. Contemplava cada movimento de seu organismo que o mantinha vivo, para que todas as suas funções estivessem cientes de sua plenitude e de suas companhias.

Embora não fosse um fato conhecido, Tedd mantinha laços afeti- vos muito firmes com seus atuais colegas de apartamento. Alguns tão discretos quanto o silêncio constante. Alguns tão ansiosos pela interação que não permitiam sossego nem ao mais sereno dos sons. Eram cinco, mais ele. Um desafio imenso quando recordava sua personalidade forte, quase antissocial. Tudo pela ampliação do entendimento da vida. O trato, no entanto, era de que desde o início de tal convivência, uns aceitariam aos outros em um entendimento com base na sinceridade. Não haveriam conflitos desta maneira.

“A harmonia jamais pode ser quebrada quando verdadeira”, repetiam uns

aos outros incansavelmente. Qualquer faísca de desentendimento era apagada com rajadas de reflexão. O grande apartamento permitia isso. Cada móvel deveria estar posicionado em ângulos que proporcionas- sem um melhor fluido de energias. Não importavam quais energias. Se densas ou leves, tristes ou felizes, deprimidas ou eufóricas. Era ne-

102 - Da mente ao impulso

cessário fortalecer o filtro mental. O espaçamento amplo na mobília inteira facilitava a propagação de ecos originados em diversos períodos de introspecção.

Era verdade que, a princípio, queria ser como a sociedade o julga- va. Uma pessoa solitária, difícil de lidar. Mas sentiu, com certa estranheza, que deveria se abrir para diferentes horizontes. Aos trinta e quatro anos, percebia uma possibilidade de mudança que não o afetaria negativa- mente em qualquer instância. E assim decidiu.

Tedd perdera bons quilos ao iniciar sua convivência coletiva. As reflexões poderiam durar dias, assim como poucos segundos. Tudo era uma questão de encontrar as respostas interiormente. Porém, sentia-se cada dia mais aprisionado dentro do próprio apartamento. Chegava a ser ridiculamente reprimido por caminhar com passos julgados baru- lhentos até a cozinha para se alimentar ou ao sair para trabalhar. “Seu

quarto é seu templo.”

Eram raros os momentos em que todos estavam liberados para conversar livremente, rir, ouvir músicas, ligar a televisão. Qualquer ati- tude fora de hora poderia interromper os caminhos para a percepção das verdades vitais. Cada um deveria contribuir com sua presença útil para um bem maior e ainda incompreensível. Mas com o tempo, tudo se encaixaria, tudo faria sentido. Sua intuição não o trairia estilhaçando a confiança que construíra em si mesmo.

Em seus momentos solitários, Tedd percebia que não era respei- tado como prezava pelos outros. Sua essência individualista se aflorava novamente, amassando todas as conquistas interiores que mantinha em si até então. Onde está o coletivo? Seus olhos ficavam parcialmente molha- dos ao entender que cada resposta que obteve poderia ter sido induzi- da pelos seus companheiros e que estes o usavam somente para terem moradia sem custo algum. Era uma desconfiança que não conseguia negar a si mesmo. Chegava irritantemente a hora de questioná-los, mas as oportunidades pareciam deslizar para o nada. A convicção que vivia diante de seus companheiros a fim de sanar sua individualidade egoísta estava abalada.

“A gente não o vê mais, Tedd.” As palavras pareciam ecoar dentro do

Solitário - 103 você, sabe quem é?” Tedd não compreendia. As respostas que recebia se

debatiam em sua cabeça – jurava que podia sentir a ressonância em seu crânio. Qual deveria ser o propósito de abrir as portas do próprio lar para a entrada de estranhos? O emocional defasado já não o dava liberdade de discernimento. Estava exausto. Seus impulsos retornaram com força descomunal e destruiu os únicos laços afetivos que possuía. Aqueles que não passavam de meros convidados em sua moradia foram expulsos sem qualquer tom de piedade. Era seu direito. Era sua casa. Era sua vida.

Sua estabilidade interna retomava-se fluindo para melhor instanta- neamente. A saúde retornava e sua forma física estava quase atingindo sua aparência nos retratos de alguns meses atrás. Sua autodefesa social incrustava-se novamente com veemência. Afinal, sua natureza era indi- vidualista e, de uma vez por todas, aceitava-se assim.

Respirava aliviado após alguns dias quando, com surpresa, seus cinco ex-companheiros surgiram sentados em um dos largos sofás da sala de estar. Não queria crer. Esfregou os olhos por mais de uma vez. Cogitou alucinação, mas nada os tirava dali. Os mesmos. Dois em silên- cio, os outros três com falta de ar e bocas arregaçadas de tanto rir. Estes, posicionados de forma separada pelos silenciosos. “A gente não o vê mais,

Tedd. Somente você pode nos ver.”

Por mais altos que fossem os gritos, Tedd não conseguia que eles fossem embora. Não demonstravam o mínimo respeito para com sua boa vontade inicial. Pensava de milhares de maneiras sobre como deveriam ter cópias adicionais das chaves do prédio, ao passo que sua indignação consigo mesmo crescia por não ter trocado a fechadura de sua entrada. “Desista. Não vamos embora.”

Um comportamento agressivo fez com que Tedd corresse para cima do sofá. Eles não estão me levando a sério. Em um segundo, todos es- tavam a pelo menos quatro metros de distância no outro sofá, posicio- nados da mesma forma. Como não os toquei? A confusão se fazia presente na mente de Tedd, que só ouvia risadas e respirações ofegantes. Correu novamente em direção de ataque, atingindo somente o ar. A corrida até a cozinha seguindo as gargalhadas também foi em vão.

104 - Da mente ao impulso

A angústia tomava conta do ambiente assim como sentia sua gar- ganta se fechando. Tudo foi organizado detalhadamente para que a fuga da escolha que havia feito fosse impossível. Tudo parecia loucura de sua mente, que por vezes ecoava a frase que ouvia na adolescência.

“Me diga com quem tu andas que te direi quem és.”

De repente, ouvia tudo repetida e nitidamente, mas não enxergava mais qualquer presença. Uma parcela de alívio que tentou emanar-se foi destruída com a fragilidade de uma seda. Quando se deu de encon- tro ao espelho do banheiro, enxergava os cinco colegas de apartamento.

“Por mais que tente, Tedd, não vamos o abandonar. Estaremos sempre com você. Viveremos sempre com você. Somos a sua salvação.” Tedd estremeceu. Apenas

queria ser salvo desta tortura que, desde que fora permitida de forma inocente, se elevava progressivamente.

Com a destreza e confiança embalada por seus impulsos ansiosos, seus olhos bem abertos receberam dois de seus dedos grossos. A dor instantânea era banhada com um volume de sangue capaz de cobrir quase toda sua mão, que ainda percebia o líquido morno escorrendo. Os dedos que furavam tateavam automaticamente vários dos compo- nentes que resultavam em sua capacidade de enxergar, tão sentida em seus momentos de reflexão intensa. O sacrifício estava sendo feito até o último milímetro de seu nervo óptico. Não havia mais visão. O grau que sua consciência vinha sendo degradada era tamanho que qualquer ponderação de hesito não seria eficaz. Cada uma de suas células neces- sitavam de sua habitual solidão. Contemplava, então, a escuridão.

Os risos tentaram ser contidos por um instante de luto pela visão, mas não conseguiram. Parecia até que os dois silenciosos riram um tan- to. Tedd jamais moraria sozinho novamente.

No documento Editor Cassiano Calegari. Capa Bolivar Escobar (páginas 101-105)