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o caso das normas programáticas

No documento PAULO THADEU GOMES DA SILVA (páginas 197-200)

5.6 O Tribunal Constitucional

5.6.1 Tribunal Constitucional à luz da teoria luhmanniana:

5.6.1.2 o caso das normas programáticas

O segundo problema aqui analisado tem a ver com a positivação, no texto constitucional, das denominadas normas programáticas - entre programante e programada, a teoria preferiu programática -, associada a programa instituidor de política pública417 e, conforme construção teórica nacional, identificadas com uma questão política. Se estão inseridas na Constituição, então permitem elas o aumento da irritação recíproca entre os sistemas político e jurídico. São, também, normas pertencentes ao sistema jurídico, com as quais os Tribunais têm que trabalhar para decidir os casos jurídicos, aí incluídos aqueles veiculadores de questão política. Produzem, dessa forma, comunicação jurídica.

O problema reside exatamente na configuração que se deve desenhar para as normas programáticas: são elas programas do sistema jurídico, portanto, deveriam ser programas condicionais, do tipo se/então418; contudo, de uma análise, ainda que superficial, de suas

416 E pensar que a petrificação já foi sinônimo de punição: “Por entre pios sentidos ali devorou todos eles e a

própria mãe, que, gemente, esvoaçava ao redor dos filhinhos: o bote atira-lhe o monstro, apanhando-a por uma das asas. Mas, pós haver o dragão os filhotes e a mãe devorado, foi pelo deus, que o enviara, mudado num grande prodígio; petrificou-o ali mesmo o nascido de Crono tortuoso” (HOMERO. Ilíada. 2. ed.. SP: Ediouro, 2002, Canto II, p. 86, grifou-se).

417 Conforme José Afonso da SILVA. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed.. SP: Malheiros, 1998,

p. 138.

418 Com LUHMANN: “Frente a las protestas (que son de esperarse), y frente a todo lo que los juristas

acostumbran pensar apoyados en el “social engineering approach” de principios de este siglo, y pese a la euforia por la planificación de los años sesenta, se debe constatar lo siguiente: los programas del sistema jurídico son siempre programas condicionales” (El derecho de la sociedad. Op. cit., p. 253, grifo original).

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estruturas, elas se afiguram muito mais como programas de fins419 do que como programas condicionais.

A teoria oferece socorro420, num primeiro momento, para estabelecer as diferenças entre as decisões no sistema político e no sistema jurídico421. No sistema político ela é programante, enquanto no jurídico é programada; no político é de caráter global, enquanto que no jurídico é particularizada; no político há a pressão legítima do Publikum422, enquanto que no jurídico essa pressão soa como corrupção; no político a decisão é tomada em coletivo, enquanto que no jurídico há a manifestação de um drástico isolamento423.

Todavia, remanesce o problema de o sistema jurídico ter que trabalhar com esse tipo de normas, pois que, embora possuam estrutura de verdadeiro programa de fins, são

419 A Constituição brasileira traz em seu texto vários exemplos desse tipo de norma, que são considerados pela

teoria constitucional como não-auto-aplicáveis, v.g., artigo 170, 193, 196, etc... Todas essas normas têm em comum uma característica dos programas finalísticos: são prospectivas e não retrospectivas, são normas diretivas ou dirigentes.

420 Celso Fernandes CAMPILONGO. Política, sistema judicial e decisão judicial. SP: Max Limonad, 2002,

pp. 103-107. No mesmo sentido, Reinhold ZIPPELIUS, op. cit., pp. 412-415. Com Benjamin N. CARDOZO: “If you ask how he is to know when one interest outweighs another, I can only answer that he must get his knowledge just as the legislator gets it, from experience and study and reflection; in brief, from life itself. No doubt the limits for the judge are narrower. He legislates only between gaps. He fills the open spaces in the law” (The nature of the judicial process. New Haven and London, Yale University Press, 1991, pp. 113-114.

421 Para Mauro CAPPELLETTI, as distinções entre a decisão jurídica e política são que as jurídicas se referem

aos casos e controvérsias, onde se manifesta a atitude de imparcialidade e norteadas pela inércia jurisdicional (Juízes legisladores?. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1993, pp. 75-76). Celso Fernandes CAMPILONGO, ao cuidar das funções judiciais em quadro comparativo, assevera que no Estado pós-social o objetivo do Judiciário é a administração dos conflitos, a litigiosidade é sobre interesses difusos e a ideologia judicial é formada pela desformalização, deslegalização e delegação. (Os desafios do Judiciário: Um enquadramento teórico, in José Eduardo FARIA (org.). Direitos humanos, direitos sociais e justiça. SP: Malheiros Editores, 1994, p. 50.

422 Publikum, público deve ser entendido como os lobbies, os movimentos sociais e grupos de advocacia de

interesse público. Na sociologia alemã: “teilnehmende Öffentlichkeit, die Teilnehmer einer Veranstaltung, Besucher von öffentl. Einrichtungen” (Karl-Heinz HILLMANN, Wörterbuch der Soziologie. Op. cit., p. 704). LUHMANN afirma que Politik, Verwaltung e Publikum pressupõem a diferenciação ao nível da organização - onde o Publikum não se caracteriza como sendo organização - e se diferenciam ao nível da interação do sistema político, diferenciação essa que é importante porque permite uma análise das relações de poder no próprio sistema e uma correção da representação oficial da hierarquia do poder político (Die

Politik der Gesellschaft. Op. cit., pp. 253-256).

423 A distinção entre problema político e jurídico pode ser exemplificada por uma decisão judicial que interdite

um partido político neo-nazista; seus correligionários cerrarão fileiras com a Democracia Cristã alemã, mas não deixarão de existir. Portanto, o problema continua sendo político e não jurídico.

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programas do sistema jurídico. A pergunta, então, é pela consistência desse tipo de decisão jurídica.

A teoria defende com unhas e dentes esse arranjo institucional; entretanto, não aponta soluções para os problemas sociais da democracia vividos no presente - talvez isso ocorra pela inadequação da própria descrição. É exemplo disso a dogmática constitucional que vive a apregoar, sem a preocupação com a produção de sentido, a existência, no sistema jurídico, das tais normas programáticas, e isso mesmo que custe um alto preço no pagamento das decepções geradas, para as quais, ao menos no direito constitucional, não há tratamento de cura/compensação adequado: a retórica só faz adiar a adequada descrição do problema e, por conseqüência, devidas propostas teóricas de normatização. E, como escreve LUHMANN, soaria cínico pedir mais duzentos anos para resolver-se o problema da desigualdade424.

A jurisprudência constitucional, fazendo o que pode, utiliza o argumento de que se trata de norma programática para não conferir eficácia à norma então julgada, portanto, emprega o argumento de defesa contra a própria defesa425: condena o culpado, in casu, a sociedade, com o devido processo, mas sem a regular defesa, representada por uma mais satisfatória descrição. A sociologia, de seu turno, vive a esquadrinhar dados empíricos, tais como o número de ações diretas de inconstitucionalidade propostas, a identificação dos

424 O cerne do problema se encontra na dupla inclusão/exclusão. Quanto mais inclusão se atinge, mais exclusão

se produz. Uma maior demanda de carne por parte da Europa ao Brasil, o que aumenta as exportações brasileiras e gera empregos, causa uma maior devastação da Amazônia, pois que as fazendas têm que ser aumentadas visando ao incremento da criação de gado. Isso não quer dizer uma tomada de posição contrária ou favorável, apenas descreve de maneira adequada o problema. Basta pensar-se que no famoso caso do

lancer de nain, o anão restou sem emprego.

425 E o sistema jurídico por certo agradeceria, se pudesse, ao sistema político, a pura e simples revogação, depois

de quinze anos de existência e de nenhuma eficácia, do artigo 192, da atual Constituição brasileira, pelo qual havia a determinação de estipulação da taxa de juros a doze por cento ao ano: um encargo do qual se livrou e ao qual nunca pôde fazer face. Não fosse bastante, um outro exemplo de forte significado é representado pela denúncia que o Brasil fez da Convenção n. 158, da Organização Internacional do Trabalho, que preceituava sobre a proibição do término, sem causa, da relação de trabalho por iniciativa do empregador, tendo em vista, ao que parece, a sua total não-factibilidade, pois que se assentava exatamente na possibilidade de disposição de um tempo já não disponível; até onde se sabe, nenhuma sanção internacional foi imposta ao País por causa dessa denúncia. E se tivesse ocorrido, perguntar-se-ia: onde está a soberania desse Estado-Nação?

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membros do sistema jurídico com as ideologias de esquerda/direita, e assim por diante. O resultado é quase nenhum para a descrição mais adequada do problema. Essa problematização, além de representar que o quê é analisado pelo sistema jurídico é uma questão política que não diz respeito à diferenciação funcional do sistema político, coloca no centro das atenções a possibilidade ou impossibilidade de os Tribunais, sejam Constitucionais ou não, pouco importa, pois tanto num caso como noutro pertencem eles ao sistema jurídico, assumirem a responsabilidade por decisões que contenham caráter finalístico: a famosa policymaking by Courts426.

Se o Estado do sistema político não pode ou não quer fazer frente à concretização dos programas de fins positivados na Constituição por meio de normas programáticas427, os Tribunais podem, desde que queiram. Vontade política, termo absolutamente sem qualquer sentido na sociedade moderna, torna-se vontade jurídica: political prudence torna-se juris prudence. O problema é: como isso é possível, se é que é possível? A defesa dessa possibilidade é bastante expressiva no Brasil, especialmente pelas teorias que argumentam tratar-se a sociedade brasileira como sendo exemplo de sociedade periférica à central428, o que vai dar na pergunta pela segurança do direito. Daí a necessidade de o Judiciário pôr cobro à omissão do Legislativo e do Executivo, mesmo que se esquecendo - ou desconhecendo - do princípio da escassez429.

426 Para uma crítica a essa possibilidade, veja-se Richard S. WELLS e Joel B. GROSSMAN. The concept of

judicial policy-making: A critique. Journal of Public Law, v. 15, 1966, pp. 286-310.

427 A dogmática argumenta que só pelo fato de existirem já produzem eficácia jurídica, que significa, de sua vez,

a impossibilidade de serem retiradas do ordenamento constitucional, conforme José Afonso da SILVA.

Aplicabilidade das normas constitucionais. Op. cit., pp. 152-155. Contudo, remanesce a questão: para que

servem elas na ordem social, se numa democracia parece ser impensável a maioria ir contra a ordem social, vez que é ela, a mesma ordem social, quando tratada na ordem constitucional, representante da livre iniciativa, da concorrência e da valorização do trabalho - mas não do capital?

428 A análise sociológica dos imigrantes que vivem no centro da cidade de São Paulo, e não em sua periferia, e

nem por isso pertencem a uma classe ou sociedade mais desenvolvida é só um exemplo da inadequação da descrição da complexidade da sociedade moderna com base nessa distinção.

429 A jurisprudência constitucional, pela decisão monocrática de relatoria do Ministro CELSO DE MELLO,

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