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PAULO THADEU GOMES DA SILVA

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Academic year: 2018

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PAULO THADEU GOMES DA SILVA

QUESTÕES POLÍTICAS

DOUTORADO EM DIREITO

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PAULO THADEU GOMES DA SILVA

QUESTÕES POLÍTICAS

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito (Direito do Estado), sob orientação do Prof. Dr. Celso Fernandes Campilongo.

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BANCA EXAMINADORA

____________________________________

___________________________________

___________________________________

___________________________________

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AGRADECIMENTOS

Na elaboração deste trabalho o apoio contínuo de vários professores e amigos foi imprescindível. Agradeço a todos e, especialmente:

ao meu orientador o Professor Doutor Celso Fernandes Campilongo, que me introduziu no mundo da teoria luhmanniana;

ao Professor Doutor Raffaele De Giorgi, que me abriu as portas do livre pensar;

a José Bonifácio Amorim dos Santos, advogado, pai intelectual, início de tudo;

aos amigos Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, pelo contraponto iluminista de pontos de vista, Herbert Covre Lino Simão, Carlo Fabrizio, Paulo Taubemblatt e Marcos José Gomes Correa pelos constantes debates nos quais sempre fiquei vencido;

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RESUMO:

Uma das funções da doutrina das questões políticas, na sociedade moderna, é designar a forma da distinção direito/política. A forma dessa distinção, que é determinada pelo sistema jurídico, quando analisa uma decisão do sistema político, tem dois lados: a questão política como questão jurídica e como questão não-jurídica. No exercício da determinação da forma dessa distinção, pela análise das questões políticas, há a necessidade de se levar em consideração as distintas temporalidades inerentes aos sistemas jurídico e político, bem como os diferentes programas com os quais esses mesmos sistemas trabalham, o que vai produzir a afirmação de que os Tribunais do sistema jurídico não podem iniciar uma policy, substituindo-se ao Estado do sistema político. A descrição do tema sob essa perspectiva leva à proposição da mudança do nome “doutrina das questões políticas” pelo nome “doutrina da questão do Estado do sistema político”.

(7)

ABSTRACT

:

Drawing what distinguishes law and politics is one function of the political questions doctrine in modern society. The form of this distinction, which is determined by the legal system when analysing a decision arising from the political system, has two sides: political questions viewed both as legal and non-juridical questions. When working to define this differentiation through the analysis of political questions, we must take into account the different temporalities associated with such legal and political systems, as well as the different programs connected to them. This will take us to the following point: courts from the legal system cannot initiate a policy, replacing the State’s political system. The discussion thereof obliges us to propose the alteration of the name “political questions doctrine” to “doctrine of the State’s question of the political system.”

(8)

RÉSUMÉ:

L’une des fonctions de la doctrine des questions politiques, dans la société moderne, c’est celle de désigner la forme de la distinction droit/politique. La forme de cette distinction, qui est déterminée par le système juridique, lorsqu’il analyse une décision du système politique, a deux côtés: la question politique comme question juridique et comme question non-juridique. Dans l’exercice de la détermination de la forme de cette distinction-là, par l’analyse des questions politiques, nous devons prendre en considération les distinctes temporalités inhérentes aux systèmes juridique et politique, ainsi que les différents programmes avec lesquels ces mêmes systèmes travaillent, ce qui va produire l’affirmation que les Tribunaux du système juridique ne peuvent pas faire débuter une policy, se substituant à l’État du système politique. La description du thème sous cette perspective mène à la proposition du changement du nom “doctrine des questions politiques” vers le nom “doctrine de la question de l`État du système politique”.

(9)

A democracia e a aristocracia não são Estados livres por natureza. A liberdade política só se encontra nos governos moderados. Mas ela nem sempre existe nos Estados moderados; só existe quando não se abusa do poder; mas trata-se de uma experiência eterna que todo homem que possui poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites. Quem diria! Até a virtude

precisa de limites (MONTESQUIEU. O

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 11

1 CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO ... 1.1 Justificativa do título ... 1.2 Abordagem histórica ... 1.2.1 Antigüidade ... 1.2.2 Medievo ... 1.2.3 Modernidade ... 1.3 Abordagem jurídica ... 1.3.1 Constituição em Kelsen ... 1.4 Abordagem sociológica ... 1.4.1 Titular do poder constituinte originário: evolução semântica ... 1.4.2 Constituição em Luhmann ... 1.5 Contraposições entre a abordagem jurídica e a abordagem sociológica ...

18 18 19 19 23 26 30 31 33 36 47 52

2 EVOLUÇÃO SEMÂNTICA DO TERMO “QUESTÃO POLÍTICA” ... 2.1 Origem e história do termo “questões políticas” ... 2.2 Introdução da discussão jurídica sobre o tema no Brasil ... 2.2.1 Rui Barbosa como responsável pela inauguração da discussão no Brasil ... 2.2.1.1 O primeiro caso jurídico: Estado de Sítio ... 2.2.1.2 O segundo caso jurídico: Os atos inconstitucionais do Congresso

e do Executivo ante a Justiça Federal ... 2.2.1.3 O terceiro caso jurídico: O direito do Amazonas ao Acre Setentrional ... 2.3 O artigo 68 da Constituição brasileira de 1934 ... 2.4 O artigo 141, § 4º, da Constituição brasileira de 1946 ... 2.5 A indefinição de um conceito de questão política na teoria constitucional ...

57 57 71 71 71 80 82 84 86 90

3 OS DOIS LADOS DA FORMA DA DISTINÇÃO DIREITO/POLÍTICA ... 3.1 Os dois lados da forma da distinção direito/política ... 3.1.1 Um lado da forma: questão política como questão não jurídica ...

3.1.1.1 Justificativa do uso do termo questão política como questão não jurídica... 3.1.1.2 A construção da jurisprudência constitucional brasileira baseada em

programas do sistema jurídico e em critério auto-imunizador do sistema político ... a) decreto-lei como impeditivo à transformação da questão política em

questão jurídica ... b) medida provisória como impeditivo à transformação da questão

política em questão jurídica ... c) questão interna corporis como impeditivo à transformação da questão política em questão jurídica ... c.1) comissão parlamentar de inquérito e questão interna corporis.... 3.1.1.3 Quadro-resumo da matéria questão política como questão não jurídica... 3.1.2 O outro lado da forma: questão política como questão jurídica ...

3.1.2.1 Justificativa do uso do termo questão política como questão jurídica ... 3.1.2.1 Construção jurisprudencial do tema baseada nos direitos fundamentais ... a) direito individual como transformador da questão política em questão

jurídica ... a.I) comissão parlamentar de inquérito e direito individual ... b) direito social como transformador da questão política em questão

jurídica ... c) o exercício das técnicas de controle de constitucionalidade como

(11)

4 A OBSERVAÇÃO DA QUESTÃO POLÍTICA PELOS SISTEMAS POLÍTICO E JURIDICO ... 4.1 Justificativa da escolha da abordagem a ser aqui empreendida ... 4.2 Teorias sobre o Estado ... 4.2.1 Estado em Kelsen ... 4.2.2 Estado em Luhmann ... 4.2.2.1 O Estado do sistema político ... 4.3 Como o sistema político observa a questão política como não-jurídica ... 4.4 Como o sistema político observa a questão política como jurídica ... 4.5 Tribunais ...

4.5.1 Tribunais em Kelsen ... 4.5.2 Tribunais em Luhmann ... 4.5.2.1 Os Tribunais do sistema jurídico ... 4.6 Como o sistema jurídico observa a questão política como não-jurídica ... 4.7 Como o sistema jurídico observa a questão política como jurídica ...

131 131 135 135 138 138 141 142 143 143 144 144 150 151

5 A FORMA DE ORGANIZAÇÃO DO PODER

5.1 O princípio da separação de poderes: resumo histórico ... 5.2 O princípio da separação de poderes à luz da teoria luhmanniana ... 5.2.1 Política e Administração ... 5.3 Função do princípio de separação de poderes ... 5.3.1 Conceito de função ... 5.3.2 Criação da diferenciação funcional dos sistemas jurídico e político ... 5.4 Funções da questão política; ... 5.4.1 dificuldades de acesso à informação ... 5.4.2 a necessidade de uniformidade da decisão ... 5.4.3 o respeito a uma mais ampla responsabilidade dos poderes políticos ... 5.4.4 limitações normativas da questão política ... 5.4.5 a manutenção da diferenciação funcional dos sistemas jurídico e político ... 5.5 Legislativo e Executivo: o controle político do poder ... 5.6 O Tribunal Constitucional ... 5.6.1 Tribunal Constitucional à luz da teoria luhmanniana: ... 5.6.1.1 um problema de ordem temporal ... 5.6.1.2 o caso das normas programáticas ...

153 153 157 157 160 160 165 168 168 169 170 170 172 173 177 180 186 196

CONCLUSÃO ... 205

(12)

11

INTRODUÇÃO

Tanto na teoria do direito quanto na do direito constitucional sempre ocupou lugar de

destaque a distinção direito/moral, baseada no critério diferenciador representado pela noção

de sanção. O prestígio atribuído a essa distinção como que ofuscou a teorização a respeito de

um outro par, também tão diferente como aquele e tão imbricado um ao outro: trata-se da

distinção direito/política. Talvez isso tenha ocorrido pelo fato de sempre se ter observado essa

distinção como uma unidade, com o direito e a política convergindo para a idéia de

estatalidade. Todavia, a distinção sempre existiu na Modernidade. Essa distinção pode ser

descrita por meio da seleção de vários elementos discrímens: para este trabalho elegeu-se a

doutrina das questões políticas.

O tema eleito diz com a distinção entre direito/política, distinção essa que nem sempre

é indicada pela teoria constitucional e que muita vez é causa de confusão conceitual. O

problema parece residir na relação que existe entre um conceito e outro ou entre um sistema e

outro. Descer o véu da ignorância que paira sobre essa relação significa descrever como pode

se realizar a distinção direito/política. A análise da doutrina das questões políticas é apenas

uma dentre tantas que podem ser levadas a cabo na consecução de se descrever a distinção

principal: as questões políticas, portanto, servem à descrição da relação existente entre direito

e política.

A doutrina das questões políticas, no Brasil, está a merecer estudo mais detalhado pela

teoria. Com efeito, dela não tratam nem mesmo os mais solicitados manuais de direito

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12

aparentemente, estaria ligado à política e não ao direito. Um outro fator poderia estar ligado a

que, também de forma aparente, não é dispensada ao tema a atenção pela jurisprudência dos

Tribunais, pois que neles a doutrina das questões políticas ocupa lugar de menor destaque, o

que é representado pelo pouco número de casos jurídicos em que é veiculada. Contudo,

conforme a descrição proposta, esses fatores mostrar-se-ão falsos, pois que se pode afirmar

que a questão política tem a ver tanto com a política quanto com o direito, reproduzindo as

tensões existentes entre os dois domínios científicos e também as suas tênues linhas

demarcatórias e separadoras, bem como a sua forte existência na jurisprudência

constitucional.

A discussão sobre o tema, mesmo que incipiente, ainda é marcada pela confusão que

se faz entre os sistemas jurídico e político que, para uma parte da teoria, não são diferenciados

entre si e, para outra parte, diferenciam-se em alguns aspectos, mas não funcionalmente. Essa

falta de clareza contribui para uma descrição não muito produtiva de temas correlatos, tais

como a função de cada sistema, das normas programáticas e da própria questão política. De

igual efeito, é o próprio constitucionalismo que fica à espera de sua descrição, que deve levar

em conta, ao menos se se propuser a normatizar o tema, as estruturas sociais correspondentes,

nas quais a doutrina das questões políticas se manifesta.

Este trabalho propõe-se a responder a questão: de que forma se deve observar as

questões políticas? Deve-se dispensar a elas o mesmo tratamento que vem sendo conferido

pela doutrina e pela jurisprudência? Ou, numa superação dessas propostas, que ainda apostam

no exaurimento da compreensão do tema pela oferta de um conceito que dê conta de

descrevê-lo, propor-se uma nova descrição, forjada no abandono da aproximação com a teoria

tradicional e sobre as bases de uma explicação que tome em linha de consideração a

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13

Para responder a essa pergunta lançar-se-á mão da teoria sistêmica de Niklas

LUHMANN, porque ela é a responsável pela formulação dos conceitos que se reputam

fundamentais à descrição do tema e que serão aplicados no desenvolvimento desta proposta.

A escolha teórica não é gratuita e nem casual. Primeiro porque há, sempre, a necessidade de

se eleger uma teoria para se explicar determinado problema. Perry ANDERSON, por

exemplo, em Linhagens do Estado absolutista1 utilizou a teoria marxista e sua concepção de

materialismo histórico para desenvolver o tema do absolutismo. MONTESQUIEU parece ter

escrito O espírito das leis tendo a seu lado A política, de ARISTÓTELES2.

É ela uma teoria da sociedade e não uma teoria exclusiva do direito. Isso não impede

de tomá-la como método para este trabalho, pois o sistema jurídico é um dos sistemas parciais

da sociedade e ocupa lugar central na formulação teórica respectiva. Em conseqüência, a

proposta aqui apresentada é um trabalho jurídico e sociológico, na medida em que tenta ligar

o pensamento sociológico ao dogmático. Ver-se-á que esse objetivo é possível de ser

realizado, desde que se escolha adequadamente o método.

Escolhido o método, que é teórico e sociológico e, portanto, não dogmático, deve-se

aplicá-lo ao tema específico, qual seja, a análise doutrinária e jurisprudencial das questões

políticas. Assim como a teoria luhmanniana, aqui também a história é imprescindível, pois a

análise realizar-se-á sobre um material já historicamente produzido, fruto que é da práxis

constitucional brasileira e pertencente, por isso mesmo, à jurisprudência constitucional.

O tema, de igual maneira à escolha da teoria, não foi eleito por acaso. Ele representa,

não de forma exclusiva, mas com muita força, em concreto, a realização de um dos aspectos

da teoria luhmanniana, que é traduzido pela idéia de separação entre os sistemas político e

1 SP: Brasiliense, 1998, Prefácio, p. 7.

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14

jurídico, os quais estão acoplados por uma estrutura que vem a ser a Constituição –o tema das

questões políticas residiria exatamente nessa zona cinzenta existente entre esses sistemas

parciais da sociedade. Portanto, nada mais pertinente, tematicamente, do que a análise da

análise das questões políticas já empreendida pela Suprema Corte norte-americana e pelo

Supremo Tribunal Federal brasileiro: satisfaz-se, assim, à teoria científica, sedenta de

aplicação, e à teoria jurídica propriamente considerada, sedenta de apreciação. A teoria

luhmanniana está sedenta de aplicação, porque no Brasil encontra ela pouca divulgação,

sendo mesmo oportuno afirmar que, se existe uma vulgata do pensamento kelseniano, do

luhmanniano nem a vulgata existe; a teoria jurídica, representada pelo estudo da análise das

questões políticas, quando interpretadas pelos tribunais, também está a merecer um

esquadrinhamento sistemático por parte dos doutrinadores, pois que muito pouco material

analítico encontra-se à disposição.

Na elaboração da monografia, trabalha-se primeiro com o conceito de Constituição,

pois o desenvolvimento da análise do tema depende diretamente de qual conceito de

Constituição se assume. Há uma oferta enorme de conceitos relativos a esse objeto. No que

diz com esta tese, opta-se pela compreensão de Constituição como acoplamento estrutural,

pois é ela que permite uma aproximação sociológica do conceito e indica a separação

sistêmica entre o direito e a política, evento esse que ocorre na sociedade moderna e não na

Antigüidade e nem no Medievo. Isso não quer dizer que se despreze o conceito jurídico.

Toma-se o jurídico como ponto para se fazer a contraposição entre ele e o sociológico.

Contudo, antes de apresentar esse conceito de Constituição assumido, percebeu-se a

necessidade de propor o deslocamento da titularidade do poder constituinte, o criador da

Constituição, do Terceiro Estado para a sociedade moderna diferenciada funcionalmente, pois

(16)

15

No regular desenvolvimento da monografia, manifestar-se-á, ainda, imprescindível ao

seu alinhavo a própria evolução semântica das questões políticas ocorrida na doutrina e na

jurisprudência constitucionais. Nesse momento, são analisados os diversos e possíveis

significados atribuídos à doutrina das questões políticas nas várias fases do constitucionalismo

pelas quais a sociedade moderna passou. Essa descrição é indispensável à compreensão do

tema, pois é ela que vai indicar as mudanças de seu significado de acordo com as estruturas

sociais então vigentes. Essa análise é possível de ser realizada por meio da descrição da

jurisprudência norte-americana, onde a doutrina foi desenvolvida, a despeito de ter sido criada

pela jurisprudência inglesa, e da jurisprudência brasileira; não se pretende, por óbvio, esgotar

a descrição dos casos, mas sim mencionar aqueles que são considerados mais significativos à

compreensão do tema. Neste momento do trabalho, sobressaem dois aspectos dignos de

destaque: a) a perquirição pela natureza da questão ou da função do poder; b) a variação de

significado do tema ligada à concepção de constitucionalismo então vigente e que, de sua vez,

corresponde às estruturas sociais também existentes. A história constitucional do Brasil, por

exemplo, em sua fase “imperial” é representada por uma Constituição de origem liberal que

encontra correspondência no regime de escravidão e, em sua fase republicana, é marcada por

decretações de estado de sítio, o que não impede, de seu turno, o reconhecimento mesmo da

formação de um Estado de Bem-Estar e a continuação do Poder Judiciário representado pelo

Supremo Tribunal Federal, sem embargo das várias descontinuidades referentes à vigência

das Constituições.

Impõe-se, de igual efeito, a descrição dos dois lados da forma da distinção

direito/política. É que na proposta desta tese há a refutação do sentido da dupla

“judicialização da política/politização da justiça”, desde que se parta da premissa de que a

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16

refutada porque todos os casos jurídicos apresentados ao crivo dos Tribunais são

judicializáveis, versem eles sobre questão política ou sobre questão jurídica; “política”

também é recusada porque os processos decisórios levados a cabo no sistema político não

podem ser substituídos pelos tomados no sistema jurídico. Assim, não se judicializa a política,

pois esta não pode ser reduzida ao normativo. Antes, há a manifestação da questão política

como questão jurídica, desde que se converta uma em outra, e da questão política como

questão não-jurídica, desde que não se converta uma em outra. Essas duas possibilidades de

manifestação da questão política compõem os dois lados da forma da distinção

direito/política, que se manifesta nas decisões políticas do Estado, objeto de decisão final

pelos Tribunais, decisões judiciais essas aqui também analisadas.

Assentado que a questão política indica a distinção direito/política é mister descrever a

observação da questão política como jurídica e como não-jurídica, pelos sistemas jurídico e

político, o que pode ser feito pela apresentação do funcionamento dos sistemas político e

jurídico de acordo com a teoria luhmanniana: o Estado ocupando o centro do político e os

Tribunais o do jurídico. É nesse pano de fundo de organização dos sistemas em análise que

está descrita a observação que eles, sistemas, fazem da decisão jurídica que mantém ou

converte a questão política.

Por fim, há a necessidade de descrição da forma de organização do poder, sede onde

será operada a descrição de política, administração e judiciário. Aqui, já com base no conceito

de função, esquadrinha-se a função de cada sistema envolvido na discussão, assim como a do

princípio da separação de poderes e a da própria questão política, para então se chegar à

descrição da função do Tribunal Constitucional, levando-se em conta a dimensão temporal e o

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17

Todos esses passos estão cumpridos, sempre que possível, tomando-se em linha de

consideração os conceitos e esquemas da teoria luhmanniana, pois uma dificuldade

encontrada é exatamente aquela referente ao seu caráter abstrato, o que faz dela, por isso

mesmo, teoria com pretensão heurística. Essa abstração torna a própria teoria, muita vez,

difícil de ser aplicada a um tema específico, como é o caso do selecionado neste trabalho,

relativo à dogmática constitucional. Também na medida do possível, então, tenta-se fazer a

ligação entre os significados produzidos tanto na sociologia quanto na dogmática; todavia, o

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18

CAPÍTULO 1

CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO

1.1 JUSTIFICATIVA DO TÍTULO

O desenvolvimento de um tema inserido num projeto de reflexão científica depende

da direta conexão que deve existir entre seus antecedentes e seus conseqüentes.

Neste trabalho, o desenrolar da abordagem proposta para o tema das questões políticas

está na dependência do conceito de Constituição assumido3 como um seu necessário

antecedente, pois é ele que vai permitir considerar os sistemas político e jurídico como

diferenciados funcionalmente entre si e da própria sociedade. Daí a relação entre o método

eleito neste primeiro capítulo com aquele inerente ao segundo capítulo, que tratará da

evolução semântica da doutrina das questões políticas. A tese é a de que, como será

observado, os conceitos de Constituição válidos para a Antigüidade e para o Medievo não

permitiram o surgimento da doutrina das questões políticas, fosse porque ainda não houvesse

especialização funcional dos poderes, fosse porque não existisse diferenciação sistêmica entre

o jurídico e o político, assim como a idéia de direitos fundamentais: não havia, portanto, uma

Constituição formalizada em um documento que, por sua vez, se referisse à organização

formal do poder e aos direitos fundamentais. Para que essa tarefa possa ser cumprida, lança-se

mão, aqui, de aportes divididos em histórico, jurídico e sociológico.

3 Marcelo NEVES também toma como ponto de partida o conceito de Constituição para a construção de seu

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19

1.2 ABORDAGEM HISTÓRICA

Para esta aproximação, observam-se tentativas doutrinárias de indicar a presença da

idéia de Constituição, sem seu significado moderno, na Antigüidade e no Medievo. Esta

abordagem se justifica pela demonstração da autonomia do político e do jurídico que se

realiza na Modernidade, o que vai produzir efeitos no tema das questões políticas, de vez que

é apenas na Modernidade que ele, tema, surgirá. A indagação, então, é pelo motivo desse

surgimento ter ocorrido apenas na sociedade moderna e não na Antigüidade ou no Medievo, o

que será respondido no curso da descrição feita a seguir.

1.2.1 Antigüidade

Na Antigüidade teria ela, a Constituição, existido sob o conceito de politeia - depois reformulado por Aristóteles para politia4-, que, no século IV significava a busca de uma forma de governo que pusesse fim ao estado de crise então vivido - stasis -, mediante o reforço da unidade da polis. Os romanos encontraram termo correspondente nas palavras res publica, coisa de um povo reunido pelo consenso sobre o direito5. Ela, a polis, estava para a

época e para os gregos, ao lado da república para os romanos, como o feudo para o Medievo e

o Estado para a Modernidade, embora, mesmo na Itália renascentista, ainda houvesse a

existência de cidades-estados6.

Por essas razões, sempre imperou, naquele tempo, a noção de que uma Constituição

ideal - Aristóteles e sua virtude cívica se encaixam perfeitamente aqui - seria uma

4 Conforme Maurizio FIORAVANTI. Costituzione. Bologna: Il Mulino, 1999, p. 19.

5 Ver esboço similar em Nelson SALDANHA. Formação da teoria constitucional. RJ: Forense, 1982. 6 Ver a interessante análise de Peter BURKE, As Cidades-Estados, in John HALL (org.) Os Estados na

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20

Constituição média ou mista, que representasse um meio-termo, um ponto de equilíbrio entre

os interesses envolvidos em diferentes lados dos conflitos.

O que não foi diferente entre os romanos, que também trabalharam com os

substantivos de estabilidade e equilíbrio, os quais foram expressamente mencionados por

Cícero nos seis livros do seu Da república. É nesse contexto que a Constituição era entendida

como um “grande projeto de conciliação social e política”7. Não se identificava, portanto,

com a idéia moderna de Constituição. Talvez essa impossibilidade de identificação entre as

duas idéias - a antiga e a moderna - se devesse ao fato mesmo de que, embora existindo

legislação, não havia, na Antigüidade, direito positivo – desde que um conceito não se

confunde com o outro.

Mesmo A Constituição de Atenas e A política, de ARISTÓTELES não podem ser

consideradas parâmetro de comparação, pois que significavam muito mais teoria política do

que documento formal de positivação de normas constitucionais. Em A política8,

ARISTÓTELES, considerando o Estado uma reunião de famílias9, propõe um modelo ideal

de Constituição, que ele mesmo designou de “perfeita” e que possa contribuir para a

felicidade da cidade, felicidade essa que não poderia existir sem a virtude10. Defende, para a

realização desse ideal, a divisão da cidade em muitas classes, a manutenção dos banquetes -

Symposiuns -, o alcance de um ideal, representado pelo bem geral, na ação de governo e a alternância do poder de mando entre subordinantes e subordinados, tudo na consecução de um

único fim, qual seja, uma república perfeita11.

7 Conforme Maurizio FIORAVANTI, Costituzione, op. cit., p. 24. 8 Bauru/SP: Edipro, 1995.

9 Idem, Capítulo II, p. 15.

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21

Já em A Constituição de Atenas, ARISTÓTELES descreve a época de Sólon como

aquela em que imperou a Constituição média, um meio-termo entre as reivindicações lançadas

pelos cidadãos pertencentes às diferentes classes12; idéia essa que não diferia da de Platão,

para quem o problema da Constituição era o de sua origem, não podendo ser ela uma

Constituição dos vencedores, porém aquela resultante da composição e da pluralidade: a

patrios politeia, a Constituição dos antepassados13. Essa descrição, retomada em A política sob nova roupagem, pois que não mais se tratava de politeia, mas sim de politia, além de representar uma opção pela Constituição dos antepassados, desde que se pense que a

observação aristotélica era feita sobre o passado, demonstra que a mudança dos conceitos era

atrelada às crises vividas pela polis. Esse estado de crise, produzido pela economização da vida dos cidadãos, traduzia-se na instauração de conflitos entre os próprios cidadãos, os quais

poderiam ser resolvidos apenas pela idéia de uma Constituição média. Buscavam-se, mesmo

naquele distante tempo, mais especificamente, no século IV, as condições de possibilidade da

ordem social14.

Ainda como teórico da Antigüidade, pode-se colacionar POLÍBIOS, um grego que,

em sua História, retoma os temas enfrentados pela teoria no século IV, para fazer operar um

real deslocamento do foco de análise, o qual já não mais centrar-se-ia no equilíbrio que

12 SP: Hucitec, 1995, em especial os caps. V a XI, pp. 21-31. No cap. IX, ARISTÓTELES escreve: “Ao que

parece estas três constituem as medidas mais populares do regime de Sólon: primeiro, e a mais importante, a proibição de se dar empréstimos incidindo sobre as pessoas; em seguida, a possibilidade, a quem se dispusesse, de reclamar reparação pelos injustiçados; e terceiro, o direito de apelo aos tribunais” (p. 29).

13 PLATÃO, As leis. Bauru/SP: Edipro, 1999, Livro III, pp. 135-171 e A república. Bauru/SP: Edipro, 1994,

Livro VIII, pp. 303-341.

14 Esses períodos de crise vividos na Antigüidade não se ativeram ao séc. IV; desde o séc. VIII até o séc. VI foi

(23)

22

deveria15 existir entre as classes de ricos e pobres, mas sim entre os poderes existentes em

Roma, representados pelos Cônsules, pelo componente régio, Senado, pelo componente

aristocrático e pelo povo por intermédio de suas assembléias. Na relação entre os poderes

então existentes, deveria prevalecer o equilíbrio, por meio da criação de obstáculos e

colaboração entre eles16.

CÍCERO, ao contrário, embora romano vai centrar suas análises na necessidade de

retomada do ideal cívico grego - a virtude governando a República - para enfrentar os

problemas então vividos, traduzidos em mais graves conflitos entre patriciado e plebe. Para

isso, formula a idéia de res publica, “a República, coisa do povo, considerando tal, não todos os homens de qualquer modo congregados, mas a reunião que tem seu fundamento no

consentimento jurídico e na utilidade comum”17. Optando pela monarquia como a melhor

forma de governo dentre as três que ele mesmo reputa de primitivas - a tirania, a oligarquia e

a anarquia -, CÍCERO argumenta que prefere um Estado com poder eminente e real e que

atenda tanto aos grandes quanto à multidão: haveria a necessidade, então, de se amalgamar a

monarquia, a aristocracia e o povo, para que essas mesmas formas de governo não se

degenerassem18.

Desse breve esboço das principais teorias do mundo antigo a respeito da política,

sobressai que o foco central era a preocupação com a solução do período de crise vivido à

época. Contudo, não havia na Antigüidade, como existem na Modernidade, teorizações em

15 História. 2. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1996, Livro VI, pp. 325-349. Por certo que POLÍBIOS não

utiliza qualquer expressão referente à especialização funcional dos poderes; ele escreve sobre a distribuição do poder político entre as diferentes partes do Estado (p. 336).

16 “...(omissis): quando um dos poderes, crescendo desproporcionalmente em detrimento dos outros, passa a

aspirar à supremacia e tende a mostrar-se excessivamente predominante, como nenhum deles pelas razões expostas acima é absoluto - ao contrário, as intenções de um podem ser neutralizadas e obstadas pelos outros -, nenhum deles predomina sobre os outros nem pode desprezá-los” (ibidem, p. 338).

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23

torno da soberania do Estado, da especialização funcional dos poderes soberanos e dos

sistemas sociais e, mais especialmente, dos direitos fundamentais19: a preocupação teórica

daquela época não era direcionada a uma norma, mas sim a buscar um ideal político que

fizesse frente à crise instaurada. Isso se devia ao fato de que a realidade daquele tempo era

apreendida dessa maneira pela teoria, o que equivale a dizer que às estruturas sociais da

Antigüidade, referidas a um mundo pouco complexo, correspondia uma semântica da

Constituição expressa em conceito do porte de um projeto de conciliação política e sempre

voltando a sua observação para o passado.

Não havendo, portanto e ainda, a possibilidade de se pensar em sistemas político e

jurídico com suas respectivas funções e nem em direitos fundamentais, como decidir se uma

questão era política ou jurídica? Simplesmente essa questão não era posta, pois que na

Antigüidade, de forma bastante tênue, uma questão política era apenas política e uma questão

jurídica era apenas jurídica, mesmo que violado qualquer direito individual.

1.2.2 Medievo

FIORAVANTI20 propõe que, embora a Idade Média tenha ficado conhecida como

aquela do eclipse da Constituição, existiu, de fato, uma Constituição do Medievo21. Traça,

para isso, duas características gerais que informaram a idéia: a) a intrínseca limitação dos

poderes públicos; b) uma ordem jurídica dada, não mais ideal, estruturada por milhares de

19 Não parece ser contestável a afirmação de que a idéia de direitos fundamentais seja atinente à Modernidade,

conforme escreve Michel VILLEY: “Les droits de l’homme ont été le produit de la philosophie moderne, éclose au XVIIIe siècle” (Le droit et les droits de l’homme, Paris: PUF, 1983). Para essa constatação, bastaria ilustrar com a situação dos camponeses que eram excluídos dos processos de decisão e das mulheres que nunca compareciam às cortes; na esfera política, a exclusão também se mantinha, pois as mulheres não possuíam direitos políticos, daí a caracterização da polis como um ‘clube masculino’. Para um quadro geral, ver História ilustrada da Grécia antiga, de Paul CARTLEDGE (org.), RJ: Ediouro, 2002.

20 Ibidem.

21 Pensar na “Supremacy of Law” no Medievo não é o mesmo que na Modernidade: aqui a supremacia é da

(25)

24

vínculos e pactos. Com efeito, o direito na Idade Média era caracterizado como sendo

representante de um pluralismo que, de sua vez, decorria da aceitação, pelo regime político,

do direito vulgar a par do direito oficial, e se manifestou tanto no primeiro quanto no segundo

Medievo, respectivamente sob as noções de personalidade do direito - direito de quem

pertencia a determinada estirpe conexa ao mito do sangue - e dos iura propria e ius commune22.

Além disso, caracterizava-se o direito medieval pela relativa indiferença do poder

político para com ele, direito, o que fazia daquele, poder político, um poder incompleto, não

pleno. Por certo que essa indiferença do político - não havia poder orientado em sentido

universalístico - em relação ao direito produziu a autonomia deste, o que ainda não podia ser

considerado como um processo de diferenciação funcional do sistema jurídico em sistema

parcial da sociedade, manifestado apenas na Modernidade23. Prova disso pode ser encontrada

na relação hierárquica entre política e direito que existiu nas sociedades pré-modernas, onde a

idéia de iurisdictio se resumia na máxima: é-se príncipe porque se é juiz, juiz supremo24,

22 Conforme Paolo GROSSI, L’ordine giuridico medievale, Roma-Bari: Laterza, 2001, pp. 39-56. Ius

commune que não se identifica com common law, conforme escreve R. C. VAN CAENEGEM: “There was, however, another ‘common law’ or jus commune, which reffered to Roman and canon law, also named the ‘common written law’ ”. Judges, legislators and professors. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 44.

23 Para uma comprovação dessa autonomia do direito, ver Harold J. BERMAN, Law and revolution – The

formation of the western legal tradition. Cambridge: Harvard University Press, 1983.

24 Paolo GROSSI, op. cit., p. 131. Nesse livro, o próprio autor propõe não traduzir iurisdictio e lex no Medievo

(26)

25

confusão medieval que persistiu mesmo no Antigo Regime - em Portugal, nos séculos XVI a

XVIII, o Presidente do Tribunal de Justiça era denominado Governador da Relação ou das

Justiças-, onde o rei podia “quebrar” - casser, em francês -, em grau de recurso e utilizando-se da iurisdictio retenta, justice retenue, qualquer decisão judicial25.

Por essas razões é que no Medievo também se trabalhou com a idéia de uma

Constituição mista, só que, ao contrário da dos antigos, que tentavam justificar a legitimação

dos poderes públicos, aqui se tratava de tentar limitar esses mesmos poderes.

Essas idéias, compiladas por FIORAVANTI, vêm expostas em vários autores

considerados como sendo do Medievo, dentre os quais sobressai SÃO TOMÁS DE AQUINO,

especialmente em sua Suma Teológica, sede de aparecimento do conceito de Constituição

mista medieval como temperamento do poder. Nesse conceito estaria embutido o significado

de Constituição mista como sendo aquela que combinasse os méritos da monarquia, da

aristocracia e da democracia, obra exclusiva da Razão: a Cidade dos homens era apenas um

fato natural, e não mais, como em AGOSTINHO, ligada ao pecado original26.

Todavia, e ainda que se admita correta a tese de FIORAVANTI, também a idéia de

Constituição mista medieval não seria comparável à de Constituição moderna, pois que, no

Medievo não havia direito positivo e nem a autonomia do político, os dois eventos ocorridos

na Modernidade.

25 John GILISSEN. Introdução histórica ao Direito. 3. ed.. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p.

498. No Ancien Régime, ao lado do référé législatif, havia os arrêts de règlement, pelos quais as Altas Cortes, conhecidas como Les Parlements, podiam promulgar regulamentos com força de lei, daí originando-se o antigo provérbio francês: Dieu nous garde de l’équité de parlements, conforme Mitchel de S. O. I’E. LASSER. Judicial (Self-) Portraits: Judicial Disclosure in the French Legal System, Yale Law Journal, v. 104, 1995, p. 1330. Na literatura, ver o que pode fazer um sistema jurídico desdiferenciado e sem organização na pessoa do juiz Azdak, da obra O círculo de giz caucasiano, de Bertolt BRECHT.

26 Ver François CHÂTELET, Olivier DUHAMEL e Evelyne PISIER-KOUCHNER. História das idéias

(27)

26

1.2.3 Modernidade

A Modernidade é conhecida pela riqueza de suas produções teóricas sobre a

Constituição, todas inseridas num contexto histórico respectivo, e ele mesmo sujeito e objeto

de transformações, ao que parece não-planificadas, da realidade.

As revoluções inglesa, americana e francesa são exemplos sintomáticos do

deslocamento da produção teórica; sem a sua ocorrência talvez não tivesse havido a

manifestação de pensamento de um TOCQUEVILLE e de um PAINE. Não é intenção, neste

trabalho, fazer-se uma descrição minuciosa do pensamento desses autores, até porque o foco

será centrado na concepção de Constituição como acoplamento estrutural de Niklas

LUHMANN, a ser adiante descrita. Sem embargo, não é demais destacar-se que, para Alexis

de TOCQUEVILLE, o juiz americano era revestido de imenso poder político que provinha do

direito de fundar sua decisão na Constituição e não nas leis27. Portanto, a Constituição seria,

nessa perspectiva, fonte de poder para o juiz decidir politicamente, confusão essa que, por

óbvio, não remanesce na sociedade moderna. Thomas PAINE (1791-1792) limitou-se a

descrever o processo de formação da Constituição americana, denominando-a de “bíblia

política do Estado” e de propriedade de uma nação28.

Entretanto, antes mesmo desses eventos revolucionários se realizarem, dois autores

foram fundamentais à compreensão do conceito moderno de Constituição e, por

conseqüência, do conceito de Estado: BODIN e MAQUIAVEL.

BODIN29 refuta a tese medievalista de recombinação dos méritos dos vários regimes

políticos existentes, quais sejam, monarquia, aristocracia e democracia, para argumentar no

27 A democracia na América. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987, p. 83. 28 Les droits de l’homme. Alençon: Belin, 1987, pp. 215-239.

(28)

27

sentido de que a monarquia era o seu regime político preferido. Para que o poder do rei seja

um poder soberano é necessária a manifestação de duas características básicas: tem que ser

perpétuo; tem que ser absoluto30. Por poder perpétuo entendia BODIN aquele não delegado,

portanto, originário31. O pano de fundo no qual se construía a teoria de BODIN,

especificamente neste aspecto, tinha a ver com todos aqueles que exercitavam o poder de

imperium32 e a necessidade de criar como que apenas uma fonte de onde pudesse se originar esse poder, o que não acontecia naquela época, pois que a aquisição do poder de imperium era objeto de várias delegações. Poder absoluto, para BODIN, não era aquele ilimitado, sim,

aquele apenas indivisível, que escapava ao controle dos outros poderes33. Os limites a esse

poder absoluto - que indicavam, de sua vez, a submissão da política ao direito - eram de duas

ordens: o primeiro ligado à distinção rei/Coroa e que impedia a mudança das regras inerentes

à sucessão do trono e a alienação dos bens pertencentes ao domínio público; o segundo ligado

ao impedimento do rei de tomar os bens dos súditos, bem assim de alterar os direitos privados

inerentes a essa condição por sua vontade discricionária.

Portanto, e segundo FIORAVANTI, o esquema de BODIN representa uma ruptura

com a idéia medieval de poder, pois que, já agora, há a necessidade de um poder soberano e

central, vale dizer, um poder político pleno, para que a sociedade funcione, e aí a distinção,

também elaborada por BODIN, entre estado-regime/governo é fundamental. Todos aqueles

com atribuição de exercício de poder de imperium estariam envolvidos no exercício do

30 Juan BODINO. Los seis libros de la República. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1992, p. 267. 31 Ibidem, pp. 267-272.

32 Sobre os significados de imperium e dominium, ver o esclarecedor artigo de Jean GAUDEMET,

Dominium-Imperium. Les deux pouvoirs dans la Rome ancienne, in Droits – Revue Française de Théorie Juridique, PUF, Paris, 1996, n. 22, pp. 3-17. Destacam-se, para o caso, os significados de imperium ligados à religião e à política e de dominium ao doméstico, o que gerou a idéia de público - poder - e privado - apropriação de bens. Contudo, essa distinção sempre experimentou mudança de significado na história da Roma antiga até o Alto Medievo.

(29)

28

governo, enquanto que o regime político, representado pela soberania do monarca, não seria

passível de divisão.

Contudo, essa teorização não seria viável sem aquela que a precedeu, representada

pelos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio34 e pelo O príncipe35, ambos de

MAQUIAVEL. De lado as intermináveis polêmicas a respeito da teoria política vazada nos

textos dos Discursos e de O príncipe, aqui estará em foco uma idéia central exposta nas

obras e que serve à argumentação, qual seja, aquela referente à autonomia do político.

É sabido que da distinção entre ordem temporal e ordem espiritual decorreu, no século

V, a teoria papal de que somente Deus deteria a plenitudo potestatis, enquanto que ao Pontífice caberia a auctoritas - a mais alta dignidade - e ao Rei a potestas temporal, sendo cada um soberano em seu domínio: a autoridade do Papa em matéria eclesiástica e religiosa e

o poder do Rei sobre os seus súditos36. Pois o secretário florentino, nas obras antecitadas, veio

romper exatamente com a idéia de que a plenitudo potestatis seria conferida a Deus, operando uma laicização dessa potência suprema. A laicização desse poder supremo se realiza pela

idéia da política como propriedade do homem e pela política como atividade da existência

coletiva37: os principados são adquiridos pelos homens, embora ainda houvesse os

principados eclesiásticos, exemplo de exercício de poder temporal da Igreja, e sobre os quais

34 Na edição aqui utilizada o nome do livro é Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. 3. ed..

Brasília: Universidade de Brasília, 1994. Nessa obra, bastante extensa, pode-se destacar tanto um enfoque sobre a autonomia do jurídico quanto sobre a do político esparramado pelos respectivos capítulos. Para uma mera exemplificação, sobre a autonomia do político, ver os Capítulos Nono, Décimo Oitavo, Décimo Nono, Vigésimo, Vigésimo Quinto e Trigésimo Quarto, Quadragésimo Oitavo e Qüinquagésimo Quinto, do Primeiro Livro, respectivamente, pp. 49-51, 75-77, 79-80, 81, 91, 113-115, 152 e 171-174; sobre a autonomia do jurídico, ver os Capítulos Sétimo, Vigésimo Quarto, Trigésimo Sétimo e Quadragésimo Quinto, do Primeiro Livro, respectivamente, pp. 41-43, 89-90, 121-123 e 145-146.

35 A edição aqui utilizada é a de SP: Nova Cultural, 1987.

36 Também conhecida como doutrina das duas espadas, foi ela formulada pelo Papa Gelasio I - 492-496 - em

carta ao Imperador Bizantino Anastácio I, o qual se mostrava complacente, por motivos políticos e econômicos, com os bispos que perseveravam na heresia monofisista. Ver, nesse sentido, Harold J. BERMAN, op. cit., pp. 92-93.

(30)

29

MAQUIAVEL deixou de escrever, conforme sua própria afirmação38. Não se trata mais de se

socorrer dos mandamentos da Igreja ou da tradição moral para a realização da política: o que

é é o Estado, potência - e não ainda organização - central e legiferante e que decide sobre as

questões da coletividade.

Estava, dessa forma, dado o primeiro conceito de Estado moderno39, que seria tomado

na conta de acoplamento estrutural entre os sistemas político e jurídico40. Havia a

necessidade, já então, de um poder político orientado em sentido universalístico e criador da

lei, pois o direito, ao contrário da concepção que marcou o Medievo, não era mais dado, mas

sim criado: o law finder substituído pelo law maker. Este último, o novo rei, é soberano na medida em que faz a lei, de nada mais valendo o costume. Daí porque a diferença estabelecida

entre iurisdictio e lex no Medievo e na Modernidade, já frisada anteriormente neste trabalho, e da própria palavra soberania, pois que, na Idade Média, soberano significava apenas uma

posição de proeminência, pela qual os barões eram soberanos em suas baronias, nada tendo a

ver, portanto, com o caráter de estatização do direito.

A Modernidade seguiu seu curso histórico e viu passar diante de seus olhos o

movimento intitulado Constitucionalismo, pelo qual foi colocada ênfase na idéia de

Constituição como limite e garantia. Depois disso vieram as Revoluções norte-americana e

38 O Príncipe, op. cit., pp. 45-47.

39 Assim como existiram os Anti-Federalistas, houve também O Anti-Maquiavel: FREDERICO DA PRÚSSIA,

que escreveu um livro exatamente com esse título e que já na Introdução alinhavou: “Constitui O Príncipe de Maquiavel, em matéria de moral, aquilo que constitui a obra de Bento Espinosa em matéria de fé: Espinosa sapou os fundamentos da fé, não se propondo nada menos do que destruir toda a religião; Maquiavel corrompeu a política, e teve em mira destruir os preceitos da sã moral” (Lisboa: Guimarães Editores, 2000, p. 7). Teria sido, de fato, a política corrompida por Maquiavel? A questão não mais pode ser tratada sob o enfoque de quem estava com a razão, se Aristóteles ou Mazarin, mas sim representada pela indagação: É possível a descrição do sistema político da sociedade moderna pela moral?

40 Sobre a idéia do Estado como acoplamento estrutural entre o sistema político e o jurídico, ver Niklas

(31)

30

francesa41, tidas como fatos históricos formadores da moderna teoria constitucional e de onde

decorreu a formalização da Constituição em um texto escrito, contrariamente ao que tinha

ocorrido já na Inglaterra, sede de uma Constituição não escrita - Instrument of Government, 1653, a primeira Constituição, na visão de LOEWENSTEIN - e a fórmula original encontrada

na figura do King in Parliament42.

Portanto, parece correto afirmar que a Constituição como idéia e como crença, no

sentido moderno, não mais apenas de estrutura política43, mas como lei superior de

determinado ordenamento nacional é fruto das revoluções norte-americana e francesa, ainda

que entre elas houvesse nítidas diferenças: estava semeado o terreno para a teoria que iria

distinguir entre Constituição material e formal. E foi exatamente a elaboração de uma

Constituição escrita que permitiu a KELSEN diferenciar entre Constituição material e formal,

inaugurando, nesses termos, a abordagem jurídica da Constituição.

1.3 ABORDAGEM JURÍDICA

Esta abordagem é necessária porque aqui se está a tratar de um tema que mantém

relação de pertinácia com o sistema jurídico e com o sistema político. Esse método escolhido,

então, vai se desdobrar em abordagens que sejam, também, pertinentes: a jurídica é uma

delas. Como não poderia deixar de ser, KELSEN vem à tona, pois foi ele que elaborou um

41 Atualmente há proposta teórica de complementação aos princípios da liberté, égalité et fraternité, quais

sejam, security, diversity e solidarity, conforme Erhard DENNINGER, State Tasks and Human Rights, Ratio Juris, v. 12, 1999, pp. 1-10.

42 Idéia originária da teoria de John LOCKE, especialmente no Livro II, Capítulos XI a XIV, Dois tratados

sobre o governo. SP: Martins Fontes, 1998, pp. 502-541, de onde se pode extrair a preocupação com o equilíbrio entre os poderes legislativo e executivo e a prerrogativa régia.

43 Conforme Georg F. W. HEGEL, Da ‘la Costituzione della Germania’, in HEGEL - Antologia di scritti

(32)

31

conceito jurídico de Constituição que pode ser contraposto ao sociológico44: produziu, sem

saber, comunicação jurídica. Essa comunicação jurídica, a par de iniciar o que se

convencionou denominar de sistematização do direito, elevando-o à categoria de ciência,

tendo em vista seu caráter objetivo, produz efeitos mesmo na teoria jurídica atual, pois que os

seus conceitos de Constituição formal e material ainda são utilizados, seja pela doutrina, seja

pela jurisprudência, além de fornecer subsídios para a análise da jurisdição constitucional.

1.3.1 Constituição em KELSEN

Tanto o KELSEN da Teoria pura do Direito45 quanto o da Teoria geral do Direitoe

do Estado tratou o conceito de Constituição do ponto de vista normativo, reduzindo esse

conceito ao normativo, pelo qual haveria duas concepções de Constituição: a material e a

formal. A Constituição material, para ele, é o ato inicial de qualquer ordenamento jurídico,

pois é ela que regula a produção das normas jurídicas gerais, enquanto que por Constituição

formal deve-se entender a Constituição formalizada em documento escrito, a qual, além de

regular a produção de outras normas jurídicas, também prescreve um processo de mudança do

texto distinto e mais rígido do que aquele que informa o ordenamento infraconstitucional46. A

Constituição formal, então sendo identificada com Constituição escrita47 e, por conseguinte,

com rigidez no que dizia com o processo legislativo de mudança de seu texto, não significava,

por outro lado e só por si, direito positivo.

44 Conforme KELSEN: “O Direito pode ser objeto de diversas ciências; a Teoria Pura do Direito nunca

pretendeu ser a única ciência do Direito possível ou legítima. A sociologia do Direito e a história do Direito são outras. Elas, juntamente com a análise estrutural do Direito, são necessárias para uma compreensão completa do fenômeno complexo do Direito”. (O que é justiça? SP: Martins Fontes, 2001, pp. 291-292)

45 É relevante, neste passo, ressaltar que KELSEN, embora fosse um autor do século XX, escreveu a Teoria

Pura do Direito, cuja primeira publicação ocorreu em 1934, sobre uma base de reflexão que datava de mais de vinte anos, ou seja, do início do século XX, portanto, ainda impregnado das idéias do século XIX.

46 Teoria pura do Direito, SP: Martins Fontes, 2000, p. 247; Teoria geral do Direito e do Estado, SP: Martins

Fontes, 1992, p. 130.

47 Uma análise das fontes históricas de direito antigo e escrito, nem por isso positivo, ver Los primeros códigos

(33)

32

KELSEN tentou, em sua Teoria Pura, reduzir a multiplicidade de conceitos

trabalhados pela ciência jurídica, à dimensão normativa48: essa tentativa foi bastante

significativa no direito constitucional, pois é ele considerado como o grande ramo do direito,

de onde todos os outros decorrem, ainda que a distinção direito constitucional/resto do direito

se manifeste no próprio direito. Todavia, isso não tinha o condão de significar direito positivo

ou, melhor escrito, poderia significar direito positivo numa perspectiva filosófico-jurídica49,

mas não, por exemplo, sociológica50 e isso, mesmo que, conforme aqui já escrito, a teoria

kelseniana tivesse sido produzida no século XX, conquanto ainda impregnada do pensamento

do século XIX. Portanto, mesmo na kelseniana concepção formal de Constituição, a

positivação é termo correlato de decisão, pois foi ela, a Constituição, posta por força de um

ato de vontade - em Carl SCHMITT, ato do poder constituinte51. O significado de

Constituição material em KELSEN guarda pertinência com a estrutura escalonada da ordem

jurídica exposta na Teoria Pura, pois é ali que o autor vai argumentar que o Direito possui a

particularidade de regular a sua própria criação.

48 Conforme Tercio Sampaio FERRAZ JR. A ciência do Direito. SP: Atlas, 1986, p. 37.

49 Tercio Sampaio FERRAZ JR. distingue o sentido filosófico do sentido sociológico da positivação

(Introdução ao estudo do Direito. 2. ed.. SP: Atlas,1995, p. 75). Entende-se, contudo, que esse sentido filosófico pode ser compreendido como sentido filosófico-jurídico, pois que o conceito era trabalhado na ciência jurídica.

50 Quem primeiro utilizou a expressão ius positivum foi Abelardo, conforme esclarece Guido FASSÒ, Storia

della filosofia del diritto – I. Antichità e medioevo e III. Ottocento e Novecento. Roma-Bari: Laterza, 2001, respectivamente, pp. 198 e 177. Ainda de acordo com o mesmo autor, positivismo jurídico era utilizado como refutação a qualquer pensamento de caráter metafísico e a distinção entre positivismo jurídico e sociológico se sustentava em que o formulador do positivismo, August COMTE, conferia pouca consideração ao direito, fenômeno que, para ele, se manifestava nos primeiros dois dos três estados atravessados pela humanidade: o teológico e o metafísico, sendo que no terceiro, o positivo, a obra dos juristas seria substituída pela dos sociólogos (III, pp. 156 e 176).

(34)

33

O Direito, então, regula a sua própria criação, por meio da idéia de Constituição

material, que regula a produção das normas jurídicas gerais, produção essa que é a legislação

e que compreende a determinação dos órgãos competentes para executar essa tarefa, bem

como a fixação do conteúdo das futuras leis. Esse argumento, em KELSEN, insere-se naquilo

que ele denominou de dinâmica jurídica, sede da idéia de norma fundamental como

pressuposição lógico-transcendental - mais tarde, em sua Teoria geral das normas, KELSEN

admitiu ser a norma fundamental uma norma fictícia, não um ato de vontade, apenas um ato

pensado52. Por último, a concepção de Constituição material em KELSEN permite diferenciar

entre forma constitucional e forma legislativa, sendo a primeira ligada ao argumento de que a

modificação do texto constitucional é de caráter rígido e a segunda à idéia de que a

modificação do ordenamento infraconstitucional é de índole menos rígida53. Esses, então, os

primordiais pontos para a problematização ao final deste capítulo, a qual será feita mediante

contraposições entre esta abordagem jurídica e a abordagem sociológica.

1.4 ABORDAGEM SOCIOLÓGICA

A abordagem sociológica aqui eleita é aquela ligada à teoria luhmanniana, pois é ela

que vai nortear o conceito sociológico de Constituição a ser assumido neste trabalho como

compulsório antecedente de um conseqüente representado pela análise das questões políticas,

sob o enfoque da mesma teoria: preserva-se, assim, a coerência metodológica. Mais do que

garantir a preservação da coerência de método, a escolha da teoria luhmanniana decorre da

compreensão de que é ela a que descreve a sociedade moderna complexa e contingente, onde

(35)

34

os sistemas parciais da sociedade - o político e o jurídico - dela se diferenciam

funcionalmente.

Há várias possibilidades de se conceituar Constituição54. O conceito produzido, no

mais das vezes, vai depender da abordagem feita ao objeto. Para este caso e conforme já

elaborado, pode-se lançar mão da abordagem histórica, jurídico-dogmática e sociológica. Na

abordagem histórica, aqui já escrita, estão compreendidos os aportes que centram seu foco na

descrição dos processos de eventos ocorridos nas sociedades antigas, medievais e modernas.

De acordo com o também aqui já mencionado, há autor que teoriza a respeito, afirmando que

mesmo na Antigüidade e no Medievo houve Constituição55. Na sociedade moderna, qualquer

problematização nesses termos careceria de sentido, pois que o fenômeno é conhecido.

No que diz com a abordagem jurídico-dogmática56, os conceitos são inúmeros, sendo

impossível, teoricamente, enumerá-los. Existe, por exemplo, na atualidade, o conceito em

voga emitido por CANOTILHO, segundo o qual a Constituição seria o estatuto jurídico do

político ou um sistema aberto de regras e princípios e mesmo uma Constituição dirigente57.

Conforme descrito no item anterior, o parâmetro aqui utilizado como conceito jurídico

de Constituição foi aquele elaborado por KELSEN e isso porque é ele que oferece, por meio

54 Por exemplo: “Arthur Young rapporte de France à propos de cette nouvelle expression: ‘constitution... which

they use as if a constitution was a pudding to be made with a receipt’”, Niklas LUHMANN, Constitution, in

Droits – Revue Française de Théorie Juridique, Paris: PUF, 1996, n. 22, p. 104. Arthur Young foi um agrônomo inglês que estava na França estudando agricultura quando a Revolução se manifestou. Conforme Jules MICHELET: “Entretanto, a emoção tão grande, tão viva desse povo unido em um pensamento logo conquista o viajante; pouco a pouco ele se associa, sem confessar a si mesmo sua mudança, às esperanças da liberdade; o inglês faz votos pela França! Evidentemente com muitas reservas, e com a condição de que a França adote a constituição da Inglaterra (Arthur YOUNG, Voyage, tomo I, passim)”, História da Revolução Francesa. SP: Companhia das Letras, 1998, p. 135.

55 Maurizio FIORAVANTI, op. cit.. Ver também: Heinz MOHNHAUPT e Dieter GRIMM. Verfassung – Zur

Geschichte des Begriffs von der Antike bis zur Gegenwart. Berlin: Duncker & Humblot, 2002.

56 Conforme Guido FASSÒ: “Ebbe così grande sviluppo quella che i giuristi chiamano ‘dogmatica’, cioè

l’elaborazione di concetti giuridici generali compiuta sulla base di norme esistenti perché esistenti, ossia come ‘dogmi’. Op. cit., III, p. 180.

57 CANOTILHO se vê às voltas com problemas gerados pelo conceito criado por ele mesmo. Para um panorama

(36)

35

de conceitos como os de Constituição formal e material, as possibilidades de problematização

do tema em comparação com o significado de Constituição na teoria luhmanniana. É que, em

KELSEN, a noção de Constituição como norma portadora de supremacia formal, servindo de

parâmetro formal e material a todo o ordenamento jurídico58, é a que se insere naquilo que se

pode denominar de conceito dogmático-jurídico clássico e que por isso mesmo oferece a

possibilidade de contraposição ao conceito sociológico, método esse que vem permeando esta

monografia.

Para os fins deste trabalho, centra-se a análise na abordagem sociológica, pois que o

método aqui eleito é de cunho idêntico, o que nada tem a ver com pesquisa empírica ou coisa

do gênero. Mais especificamente, no conceito de Constituição, segundo a teoria luhmanniana,

pois é ele que permite a construção desta tese sobre a diferença existente entre o jurídico e o

político e dessa forma demonstra os limites de cada sistema. Isso não representa a refutação

de conceitos elaborados, por exemplo, por LASSALLE59, segundo o qual a essência da

Constituição expressaria os fatores reais de poder, ou por CONSTANT60 - o de Rebecque, não

o Botelho de Magalhães. Quer-se apenas descrever mais um conceito de Constituição ou,

mais apropriadamente, um novo conceito. Antes, porém, de se iniciar a descrição da

concepção de Constituição na teoria luhmanniana, é necessário uma pequena digressão acerca

da evolução semântica do conceito de titular do poder constituinte, pois é a partir do

58 Hans KELSEN, A garantia jurisdicional da Constituição, in Jurisdição constitucional. SP: Martins Fontes,

2003, pp. 130-138.

59 Ferdinand LASSALLE, cujo livro Über die Verfassung (1863) foi traduzido para a edição brasileira por A

Essência da Constituição. RJ: Liber Juris, 1988, argumentava que a Constituição era apenas uma folha de papel que tornava jurídicos os fatores reais de poder - a monarquia, a aristocracia, a grande burguesia e os banqueiros - contra a pequena burguesia e a classe operária.

60 Benjamin CONSTANT, Princípios políticos constitucionais. RJ: Liber Juris, 1989, escrito em 1814, cuja

(37)

36

esclarecimento desse ponto que se poderá descrever e assumir o conceito proposto por

LUHMANN.

1.4.1 Titular do poder constituinte originário: evolução semântica61

Evolução semântica corresponde, neste trabalho, ao conceito elaborado pela teoria

luhmanniana. Evolução, para Luhmann, é um evento cego, que não pode ser planificado.

Semântica, de sua vez, significa o patrimônio conceitual da sociedade que está disponível para

a comunicação. Nesses termos, evolução semântica é o processo epigenético que se manifesta

na sociedade, referente aos conceitos utilizados e reutilizados pela mesma sociedade. Assumir

esse conceito de evolução semântica obriga, por via de conseqüência, a refutar qualquer tese

que afirme ser a evolução da doutrina das questões políticas representante de uma

historicidade linear em direção a um eventual aperfeiçoamento do instituto. Isso vale, por

exemplo, para a idéia de determinada construção jurisprudencial sobre o tema, norteada pelo

código binário melhor/pior62.

O perigo da manifestação do não científico wishful thinking63 ronda toda e qualquer teoria que lance mão de juízo de valor para descrever os eventos da sociedade moderna. Com

a teoria constitucional não poderia ser diferente, pois parece ela unânime em afirmar que a

idéia de poder constituinte foi articulada por Emmanuel Joseph SIEYÈS. Citações

comprobatórias podem ser encontradas nos livros respectivos. É tomado por construído e

61 Com Claudio BARALDI: “La semántica es el patrimonio conceptual de la sociedad. En términos

sociológicos, es posible definir la semántica con referencia a los conceptos de sentido y comunicación. En síntesis, la semántica es aquella parte de significados de sentido condensados y reutilizables que está disponible para la emisión de la comunicación. La evolución de la semántica es proporcional al desarrollo de los medios de difusión de la comunicación e a la mutación de la estructura de la sociedad”, Semántica, in Glosario sobre la teoría socialde Niklas Luhmann. México: ITESO, 1996, pp. 143-145.

62 É exemplo disso o artigo de Fábio KONDER COMPARATO, intitulado A “Questão Política” nas medidas

provisórias: um estudo de caso, in Revista Trimestral de Direito Público, n. 31, 2000, pp. 5-16.

63 A advertência, muito apropriada, vem de Jon ELSTER, Marx Hoje. SP: Paz e Terra, 1989, p. 16. Ver,

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ainda válido um conceito que, pelo fato mesmo de não se discutir a respeito de sua evolução

semântica, já não consegue ser descrito por sua função na sociedade moderna, o que pode ser

percebido quando se tenta refletir sobre a função do sistema jurídico e sobre como é possível

a existência do poder constituinte na modernidade.

Tema coberto de sacralidade pela mesma teoria constitucional, por exemplo, é a idéia

de direito fundamental, dela decorrendo a dificuldade que chega mesmo a impedir o

aprofundamento - ou abstração - da própria teoria quando se tenta dela mesma tratar. E aqui a

discussão prévia a respeito do poder constituinte se manifesta como um compulsório

antecedente, de modo que é a partir desta noção que se pode aprofundar ou não o nível de

reflexão teórica sobre as chamadas questões políticas em face ao aumento da complexidade

social.

O objeto aqui eleito é de fundamental relevância para a teoria constitucional, a qual se

encontra patinando em compilações de diversos autores, sem o aparecimento de uma idéia

que possa colaborar para a adequação dos sistemas à complexidade da sociedade moderna.

Trabalha a teoria, consciente ou inconscientemente, portanto, com uma idéia pré-moderna,

senão medieval, de poder constituinte representada em sua titularidade pelo Terceiro Estado64

e pretende validar essa idéia na sociedade moderna. Por certo, isso ainda ocorra tendo em

vista, sempre e sempre, a emissão de juízos de valor quando se coloque na pauta de reflexão

tema como o do poder constituinte; talvez aconteça porque nunca se tenha refletido sobre isso.

O método, quando existe, ainda é iluminista, forjado na melhor tradição(?) de se

64 Uma descrição pormenorizada do Terceiro Estado é de Edmund BURKE. Reflexões sobre a revolução em

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