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Apêndice 08 – Parecer do Comitê de Ética em pesquisa UNIJUI

1.3 ESTADO DO CONHECIMENTO SOBRE FORMAÇÃO DE PROFESSORES

2.1.1 Categorias analíticas da perspectiva fleckiana

O fato científico, para Fleck (2010), é dinâmico, transitório e mutável porque é reinterpretado segundo o modo de perceber o conhecimento disponível sobre ele que se modifica conforme o estilo de pensamento vigente em cada época. Nas palavras do autor o fato científico pode ser definido como uma “[...] relação de conceitos conforme o estilo de pensamento, que, embora possa ser investigável por meio dos pontos de vista históricos e da psicologia individual e coletiva, nunca poderá ser simplesmente construída, em sua totalidade, por meio desses pontos de vista” (p. 132).

A gênese do conhecimento, para Fleck, portanto, não se baseia numa perspectiva lógica, objetiva, neutra e nem é individual, posto que é socialmente produzido e compartilhado, resultante de processos históricos vivenciados por grupos por meio da interação, a sociogênese do conhecimento. Há no epistemólogo a “culturalização” das ciências, pois valoriza o contexto histórico-cultural na produção do conhecimento, defendendo que aspectos sociais, históricos, culturais e antropológicos condicionam a produção, ou, nos termos de Fleck (2010, p. 85), “O processo de conhecimento representa a atividade humana que mais depende das condições sociais, e o conhecimento é o produto social por excelência”.

O conhecimento é, portanto, sempre datado, socialmente situado e produzido por meio da interação entre a tríade sujeito, objeto e estado do conhecimento, este último compreendido como a inter-relação existente entre o já conhecido e o novo conhecimento a ser construído, já que “[...] algo já conhecido influencia a maneira do conhecimento novo; o processo do conhecimento amplia, renova e refresca o sentido do conhecido” (FLECK, 2010, p. 81).

A relação conhecido–novo, às vezes, é influenciada pelas protoideias, ou seja, concepções pré-científicas ou iniciais ainda mal delineadas, que se vivificam em elaborações atuais e são propulsoras do desenvolvimento da ciência. No dizer de Fleck (2010, p. 64), “Muitos fatos científicos e altamente confiáveis se associam, por meio de ligações evolutivas incontestáveis, a protoideias (pré-ideias) pré-científicas afins, mais ou menos vagas, sem que essas ligações pudessem ser legitimadas pelos conteúdos”. Então, às vezes, o novo é influenciado por ideias concebidas em outras épocas e contextos que persistem, apesar das reinterpretações que ocorrem na forma de compreender o conhecimento de acordo com o pensamento em evidência. Usamos a expressão “às vezes”

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porque Fleck (2010, p. 66) adverte que nem todo fato científico atual guarda relação com protoideias: “Não estou afirmando que se possa encontrar, sem meticulosidade exagerada, uma protoideia para cada descoberta científica. [...] nem toda ideia antiga que apresenta semelhanças com uma descoberta posterior possui com ela uma ligação histórica”.

Fica evidenciado que, segundo Fleck (2010), há conexão intrínseca entre os conceitos aceitos numa determinada época como válidos e o estilo de pensamento vigente, ou seja, o estado do conhecimento resulta de determinado estilo de pensamento que é compartilhado pelos coletivos de pensamento. Suas principais categorias analíticas são, assim, o estilo de pensamento, coletivo de pensamento, círculo esotérico e exotérico e a circulação das ideias entre eles. Trata também da importância dos periódicos, manuais e livros didáticos, veículos que promovem a circulação das ideias nos Coletivos de Pensamento, temas fundantes da pesquisa e abordados na sequência.

Estilo de pensamento (EP), adverte Delizoicov (2004), não é termo definido com

precisão por Fleck, que apresenta, porém, caracterização bastante exemplificada do que

faz um EP e para compreender a categoria analisamos excertos da obra de Fleck (2010):

[...] o indivíduo nunca, ou quase nunca, está consciente do estilo de pensamento coletivo que, quase sempre, exerce uma força coercitiva em seu pensamento e contra a qual qualquer contradição é simplesmente impensável (p. 84).

[...] temos, em cada uma dessas pessoas, um portador do desenvolvimento histórico de uma área de pensamento, de um determinado estado do saber e da cultura, ou seja, de um estilo de pensamento (p. 82).

Ele é uma coerção definida de pensamentos e mais: a totalidade das disposições mentais, a disposição para uma e não para outra maneira de perceber e agir (p. 110). (Grifos nossos).

Podemos, portanto, definir o estilo de pensamento como percepção direcionada em conjunção com o processo correspondente no plano mental e objetivo (p. 149). (Grifos do autor).

Depreendemos daí que o EP representa o modo de pensar, de compreender o saber de uma área e de agir segundo aquela compreensão que é compartilhado por determinado grupo (o coletivo de pensamento) que predispõe seus membros para a percepção seletiva dos fatos e para a ação direcionada e que se estabelece por meio da coerção exercida pelo coletivo sobre o indivíduo. Estão explícitos, então, os dois principais componentes do EP: a disposição para o perceber orientado e a respectiva ação dirigida e restringida ao estilo.

Quanto a sua origem, Pfuetzenreiter (2003) identificou em Fleck três fontes: as protoideias, às quais já referenciamos, a circulação intracoletiva e a circulação intercoletiva das ideias, ou seja, os efeitos do confronto de ideias que produz transformações na forma de conceber o saber em questão, categorias que serão explicitadas nesse capítulo. Sobre

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esses efeitos, Pfuetzenreiter (2002, p. 153) explica que há uma relação entre o grau do desenvolvimento do conhecimento e a possibilidade de sua ruptura, ou seja,

Quanto mais desenvolvido um campo do conhecimento, menores divergências de opinião irão ocorrer. O conhecimento vai se tornando uma estrutura rígida, com muitos pontos de confluência, deixando, portanto, pouco espaço para o desenvolvimento de outras formas de pensamento.

Amalgamado com o conceito de EP está o coletivo de pensamento - CP, que Fleck (2010, p. 82) caracteriza como “uma comunidade de pessoas que trocam pensamentos ou se encontram numa situação de influência recíproca de pensamentos [...]” ou ainda, “Designamos o portador comunitário do estilo de pensamento como coletivo de pensamento” (p. 154). Ou seja, um coletivo que compartilha pensamentos e práticas e que define, portanto, os pressupostos do EP. Fleck (2010), ainda, adverte que esse coletivo não significa apenas uma soma de indivíduos, nem necessariamente forma um grupo estável, fixo e claramente determinado, já que existe coletivo de pensamento “[...] quando duas ou mais pessoas trocam ideias: são coletivos momentâneos ou casuais de pensamento, que aparecem e desaparecem a cada momento” (p. 154), e não lhe cabe “[...] o valor de um grupo fixo ou de uma classe social” (ibidem), embora haja grupos estáveis ou relativamente estáveis que “[...] formam-se, principalmente, em torno de grupos altamente organizados. Quando o grupo maior existe por tempo suficientemente longo, o estilo de pensamento se fixa e ganha uma estrutura formal” (ibidem) e exerce maior força coercitiva sobre seus membros do que os grupos casuais. Outro aspecto relativo aos coletivos é de que o indivíduo “pode pertencer a vários coletivos de pensamento” (p. 87).

Há dois aspectos a serem destacados na perspectiva fleckiana: como se produz um EP e como se formam os CPs. Sobre o primeiro, Fleck (2010, p. 144) explica que a produção de um EP, que identifica como um fato científico ocorre por meio de um ciclo: primeiramente há um sinal de resistência no pensar caótico inicial, depois uma determinada coerção de pensamento e, finalmente, uma forma diretamente perceptível. (Grifos do autor). Esse ciclo é contínuo e dinâmico porque ocorre sem grandes rupturas ou revoluções, pois, para Fleck (2010, p. 153)

Nunca um fato é completamente independente de outros: ou se manifestam como um conjunto mais ou menos coeso do sinal particular, ou como sistema de conhecimento que obedece a leis próprias. Por isso, cada fato repercute retroativamente em outros, e cada mudança, cada descoberta exercem um efeito em um campo que, na verdade, não tem limites: um saber desenvolvido, elaborado na forma de sistema harmonioso, possui a característica de cada fato novo alterar todos os anteriores, por menor que seja essa alteração. Nesse caso,

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cada descoberta é, na verdade, a recriação do mundo inteiro em um coletivo de pensamento.

Esse ciclo de formação do EP, segundo Fleck (2010), é processual, tem origem nos processos comunicativos entre os membros do CP e ocorre numa dinâmica que tem a seguinte marcha: instauração, extensão e transformação. Na figura 1, há a representação esquemática desse processo.

FIGURA 1 – CICLO DE FORMAÇÃO DO ESTILO DE PENSAMENTO

Fonte: produzido pela autora com base em Fleck (2010).

Quanto à instauração, no início do processo há um ver confuso do objeto do conhecimento, que às vezes encontra-se mesclado por vários EPs, sem coesão nem consolidação das ideias e, por isso, pouco desenvolvido ou articulado. Nas palavras de Fleck (2010, p. 142):

[...] o olhar inicial e pouco claro é sem estilo: motivos parciais confusos, caoticamente acumulados e de vários estilos, e disposições (Stimmungem) contraditórias impulsionam o olhar não direcionado para lá e para cá: uma luta dos pontos de vista. Falta o factual, o fixo: as coisas podem ser vistas de uma maneira ou de outra, quase de maneira arbitrária. Falta o chão a coerção, a resistência, o ‘solo firme dos fatos’. (Grifos no original).

Conforme os membros de um coletivo produzem conhecimentos acerca do objeto de estudo – que é sempre social e não individual – há o compartilhamento que configura um estilo, um modo de pensar. Mas a “adoção” de um EP implica na perda da capacidade de observação de certos detalhes que, muitas vezes são irrelevantes ao EP vigente. É a fase clássica da criação de um EP, na qual só se percebem fatos que concordam e se enquadram nele com exatidão. Fleck (2010, p, 69) assim caracteriza a fase clássica:

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Aquilo que não cabe no sistema permanece despercebido, ou é silenciado, mesmo sendo conhecido, ou mediante um grande esforço é declarado como não contradizendo o sistema. Percebem-se, descrevem-se e até se representam determinados estados das coisas que correspondem aos pontos de vista em vigor, que, por assim dizer, são sua realização – apesar de todos os direitos dos pontos de vista contrários.

A adoção de um EP, portanto, aprofunda a visão sobre o objeto do conhecimento porque resulta na formação do olhar dirigido – o ver formativo – mas, ao mesmo tempo, anula a habilidade para outras formas de percepção. O ver formativo ocorre pela experiência e treinamento, da preparação que desperta a capacidade para uma visão direcionada a determinada perspectiva, aos parâmetros considerados válidos pelos membros do CP. Sobre esse processo de inserção num EP comenta Fleck:

A percepção da forma (Gestaltsehen) imediata exige experiência (Erfharensein) numa determinada área do pensamento: somente após muitas vivências, talvez após uma formação prévia, adquire-se a capacidade de perceber, de maneira imediata, um sentido, uma forma e uma unidade fechada. Evidentemente, perde- se, ao mesmo tempo, a capacidade de ver aquilo que contradiz a forma (Gestalt) (2010, p. 142). (Grifos no original).

Após o período de instauração do EP ocorre a sua extensão, ou seja, a divulgação das ideias entre os membros internos e externos do CP. É nesse momento que Fleck identifica a ocorrência do fenômeno que denominou harmonia das ilusões, quando aquele corpo de ideias e práticas já se encontra mais coeso e articulado e, por isso, promove a harmonia do EP no grupo, ou seja, seus membros passam a aderir e compartilhar daquele modo de conceber o novo conhecimento a ponto de incorporá-lo como constituinte da realidade, tornando-se referente e condicionando a forma como os fatos serão observados e analisados. Sua visão se torna, assim, ‘estilizada’, configurada, e Fleck (2010, p. 136) assim descreve esse fenômeno: “O processo de conhecimento altera o sujeito do conhecimento, adaptando-o harmoniosamente ao objeto do conhecimento, e é essa circunstância que assegura a harmonia dentro da opinião dominante sobre a gênese do conhecimento”. Essa harmonia interior do EP, então, “[...] gera a aplicabilidade dos resultados científicos e a crença numa realidade que existe independente de nós” (p. 136). Mas como um EP conquista essa condição harmônica a ponto de tornar-se explicativo da realidade? Para Fleck isso ocorre por meio da coerção de pensamento que o CP promove sobre seus membros por meio do ver dirigido que, na intepretação de Schäfer e Schnelle (2010), ocorre mais como doutrinação do que como estímulo do pensamento crítico-científico, pois diz Fleck (2010, p. 155) “Toda introdução didática é um ‘conduzir- dentro’ ou uma suave coerção”.

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Quando um EP é aceito pela comunidade seus membros esforçam-se para manter a harmonia das ilusões, negando a possibilidade de existência de contradições, como afirma Fleck (2010, p. 70): “Quando uma concepção penetra suficientemente num coletivo de pensamento, quando invade até a vida cotidiana e as expressões verbais, quando se tornou literalmente um ponto de vista, qualquer contradição parece ser impensável”.

Mas por que Fleck adjetiva essa harmonia como ilusória? Porque não parece possível supor que exista “a verdade” perene e duradoura, pois as explicações são sempre provisórias, passíveis de revisão quando não mais conseguem ser explicativas em todas as circunstâncias. Sobrevém, então, um esforço do CP para evitar o que o autor chama de fase de complicações, que se concretiza quando as exceções se manifestam denunciando sinais de exaustão do EP e, a despeito do esforço em escondê-las ou atenuá-las – buscando explicar, conciliar e reinterpretar as observações sobre a teoria -, o número delas ultrapassa os casos de regularidade. Ocorre então a perda do ver formativo, que indica a quebra do “feitiço” da harmonia das ilusões.

A manutenção da validade da teoria se manifesta pela resistência em aceitar as contradições, o que provoca dificuldade de diálogo com outros EPs, já que, segundo Fleck (2010, p. 161) “O estilo de pensamento alheio tem ares de misticismo, as questões rejeitadas por ele são consideradas exatamente como as mais importantes, as explicações como não são comprovadoras ou errôneas e os problemas, muitas vezes, como brincadeira sem importância ou sem sentido”. Então, há uma relação entre o estranhamento entre estilos e a possibilidade de comunicação entre diferentes coletivos que o autor denomina incongruência ou incomensurabilidade, ou seja, a dificuldade de estabelecer diálogo entre perspectivas excludentes, pois assumindo uma, necessariamente negamos a sua alternativa. Condé, no prefácio à edição brasileira do livro de Fleck (2010, p. xii) analisa o conceito de incomensurabilidade para Kuhn e Fleck e afirma que, para o último a incomensurabilidade “[...] é muito mais uma dificuldade de comunicação do que propriamente uma impermeabilidade entre diferentes estilos de pensamento, pois, entre diferentes estilos de pensamento, sempre permanece algo”.

Quando o CP adquire a consciência da existência e impossibilidade de negação das exceções ocorre a mudança de pensamento que é a força motriz da construção de novos conhecimentos. Delizoicov et al. (2002) chamam a atenção que é justamente esse embate de ideias entre diferentes CPs que impulsiona a produção porque as complicações /contradições/exceções tornam-se ferramentas para efetivar a terceira fase de evolução do

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EP, identificada por Fleck como transformação, que ocorre quando há a adaptação de alguns modos de percepção do pensamento até então aceito pelo EP, uma mudança que deriva da disposição para ver de forma diferente aquele objeto do conhecimento. Schäfer e Schnelle (2010, p. 19) assim interpretam essa fase apontada por Fleck:

Na transformação de um estilo de pensamento, portanto, nunca se trata de uma comparação quantitativa, de um corpus mais ou menos idêntico de saber. Com o deslocamento dos pressupostos, muda o saber: algo novo aparece – outra coisa, contudo, já não pode mais ser ‘sabida’ se ela perdeu seus fundamentos através da inovação.

Mencionamos dois aspectos da perspectiva fleckiana, ou seja, como se produz um EP e como se formam os CPs. Referente ao segundo aspecto é importante explicitar como eles se estruturam e funcionam – os círculos esotéricos e exotéricos; como ocorre o ingresso num CP – o processo de aprendizagem/treinamento; e a forma como ocorre a comunicação no e entre coletivos – circulação intra e intercoletiva de ideias.

Em relação ao primeiro aspecto, Fleck (2010) descreve que os CPs se organizam em torno de dois grupos hierarquizados epistemologicamente: o círculo esotérico e o

exotérico, conforme representação esquemática na figura 2:

FIGURA 2 – FORMAÇÃO DOS COLETIVOS DE PENSAMENTO

Fonte: produzido pela autora com base em Fleck (2010).

O círculo esotérico é numericamente menor, constituído pelos especialistas de determinada área, que têm, portanto, maior domínio intelectual naquele campo de conhecimento e produzem o saber também especializado. Fleck (2010) menciona nele a

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existência de três “subgrupos”: o da vanguarda, constituído pelos pesquisadores que trabalham em determinado problema de maneira prática; a tropa principal, que é a comunidade oficial e, por fim, os retardatários mais ou menos desorganizados. Ele ressalta que os pesquisadores não ocupam posição fixa no grupo, uma vez que varia em cada disciplina ou em cada problema a ser investigado.

O segundo grupo, o círculo exotérico, é formado pelos não especialistas - os leigos e leigos formados - e, por isso, é quantitativamente maior porque representa a opinião pública. Este último não tem relação direta com a produção do saber especializado, mas é portador de conhecimento da ciência popular. Sua contribuição no CP é a divulgação, de modo simplificado, do conhecimento científico produzido pelos especialistas, que ocorre por meio do uso de textos de popularização científica, aspecto que será comentado posteriormente.

O ingresso no círculo exotérico de um CP não exige pré-requisitos, porém o mesmo não se estende ao esotérico, onde somente serão reconhecidos aqueles que foram submetidos ao processo de aprendizagem dirigida a uma área específica que lhes capacita a perceber certas formas. Esse é um traço distintivo entre os dois grupos, o dos leigos e dos especialistas, ou seja, o nível de formação e de experiência, que eles dispõem, e Fleck (2010, p. 155) faz referência à importância dessa formação teórico-prática:

A iniciação em um estilo de pensamento, portanto também a introdução em uma ciência, são epistemologicamente análogas àquelas iniciações que conhecemos da etnologia e da história cultural. Não surtem apenas um efeito formal: o Espírito Santo desce no novato, e algo até então invisível se lhe torna visível. Esse é o efeito da assimilação de um estilo de pensamento.

Compartilhando saberes e práticas os membros do CP tendem a manterem-se unidos, desenvolvendo sentimentos de solidariedade intelectual que, não raro, dificulta a comunicação entre diferentes EPs, pois segundo Pfuetzenreiter (2003, p. 123) “Uma certa hostilidade é estimulada contra um indivíduo alheio ao grupo constituído, que compartilha de outro coletivo e utiliza outro tipo de linguagem, com o uso de palavras e expressões diferentes”.

A comunicação entre os membros de um CP e entre coletivos também foi objeto de estudo de Fleck que identificou como circulação intracoletiva o compartilhamento de ideias no interior de um EP, e intercoletiva aquela que ocorre fora dele. Registra o autor que, como as pessoas pertencem a coletivos de diferentes naturezas (científico, religioso, etc), atuam como difusores de conhecimentos e práticas e por isso a linguagem recebe especial atenção.

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A palavra como tal representa um bem intercoletivo peculiar: uma vez que a todas as palavras se lhes adere um matiz mais ou menos marcado pelo estilo de pensamento, que se altera na migração intercoletiva, elas circulam entre os coletivos sempre com uma certa alteração do seu significado. [...] podemos dizer, portanto, que qualquer tráfego intercoletivo de pensamentos traz consigo um deslocamento ou uma alteração dos valores do pensamento (FLECK, 2010, p. 161).

O autor faz referência às duas dimensões da linguagem: como meio de comunicação e como constituidora do pensamento porque não se trata apenas do uso de palavras, mas de transmissão de conceitos, de formas de ver e interpretar o mundo. As palavras, por assim dizer, estão impregnadas do valor “estilístico” atribuído pelo CP e sofrem alterações em diferentes coletivos, desempenhando importante papel na transformação dos EPs.

A circulação intracoletiva contribui para a inserção do indivíduo ao CP e na formação dos pares porque é o veículo de transmissão de conhecimentos e práticas do EP, enquanto que a intercoletiva atua na extensão do EP, ou seja, sua disseminação e popularização a grupos distintos que não comungam das ideias, consistindo essa no significado epistemológico mais importante dos processos de circulação das ideias. Nas palavras de Fleck (2010, p. 161):

Do mesmo modo que a atmosfera (Stimmung) comum dentro do coletivo de pensamento leva a um fortalecimento dos valores do pensamento, a mudança de atmosfera durante a migração intercoletiva provoca uma mudança desses valores em toda sua escala de possibilidades: da pequena mudança matizada, passando pela mudança completa do sentido até a aniquilação de qualquer sentido [...]. Ele adverte, no entanto, que o grau de circulação intercoletiva de ideias está diretamente relacionado com a diferença existente entre os estilos, ou seja, quanto mais traços comuns existirem entre os EPs tanto mais facilmente as ideias circulam e quanto maior a distância entre eles maior é a dificuldade de comunicação, já que as palavras podem revestir-se de significados bastante diferentes. Ele cita como exemplo do primeiro caso a relação entre físicos e biólogos e do segundo caso, físicos e filólogos, já que o uso