CAPÍTULO 1 Por onde flanou a cronista para encontrar suas pessoas-
6. Um cenário desconcertante
Os moradores da Baixada Perpétuo Socorro se identificam e constroem as suas
relações e laços sociais espacializadas no entorno das concepções da “casa própria” e “espaçada”, perto dos equipamentos centrais de necessidade do grupo – como escola,
posto de saúde, posto policial e supermercado –, e num contexto de busca pela educação dos filhos. O pertencimento, para estes moradores, é um sentimento que levou muitos
anos para ser nutrido, uma vez que muitas pessoas “chegavam chorando” na baixada, pelo
fato de estar morando em “cima de um lago”, num “buraco” e em um “lugar fedorento”. Mas, hoje, há pertencimento territorial gerado por anos – 10, 20, 30 anos – de produção
do espaço. Eles criaram um espaço como “sendo seu”, ampliando velhas casas ou
construindo casas confortáveis, com todos os móveis e eletrodomésticos necessários. As
famílias mais precarizadas argumentam que a casa na baixada “é o que resta”, e também se sentem pertencidos ao bairro por “ser perto de tudo”.
Perambula no imaginário das famílias moradoras desta baixada a “conquista” – as
lutas, os “acessos a direitos”, as “condições”, por meio de suas táticas e estratégias de
lutas simbólicas e econômicas – da casa própria, mesmo sem documento oficial; uma conquista da emigração do interior, do meio rural, ou de outras cidades e até mesmo outros locais de Macapá, onde muitas pessoas viviam uma vida de dependência de outras pessoas (como morar com pais, tios); a conquista do conhecimento e da educação para os filhos; e uma forma de ascensão social de uma população de baixa renda, de quem “não
tinha nada” e hoje já tem “casa própria e faculdade”. São conquistas e ascensões sociais que clamam pelo direito à cidade, mesmo que de forma “invisível”, ou “esquecida” pelo
poder público.
Nesta política do espaço, vista nas microcenas (TELLES, 2007), do lado de fora de suas fronteiras ou limites (LYNCH, 1997), os moradores sofrem uma estigmatização
territorial (WACQUANT, 2005) e são vistos e identificados como “os pobres da baixada”, os “malandros”, em que é reforçado um sentido classificatório de
desqualificação social, gerando uma dor de indignidade pessoal, como já foi descrito.
Entendo “pobres” e “pobreza” de acordo com as reflexões de Simmel (1986), em que a
pobreza é uma construção sócio-cultural elaborada por não pobres, onde a noção de pobreza tem a ver com as metodologias de interação social em tempos e espaços peculiares. Estas construções de pobreza classificam as pessoas pela sua renda e local de
moradia, levando em conta a residência em lugares “precarizados” e de “risco social”.
desqualificação social, como determinadas estigmatizações em torno da “parte da frente” e da “parte de trás”, com situações em que muitos moradores transmitem estigma ao outro morador. “Eu não sou pobre, já a família da fulana”... Eles afastam-se socialmente do outro, da “outra parte” considerada socialmente indesejada e lhes direcionam
preconceitos. Alguns moradores da “Parte da Frente”, em algumas situações, utilizam a moradia – e o banheiro – como um “operador classificatório” e hierárquico (CECCHETTO & FARIAS, 2009, p.228). No entanto, o fato é que este grupo é invisibilizado, em função da ocupação a lugares da cidade de condições precarizadas (LEFEBVRE, 2001). Estes grupos, por sua vez, segundo suas falas, dão ares de não querer sair destas áreas de proteção ambiental porque são próximas ao centro; e parecem usar- se de táticas para requerer ao governo a reforma das pontes da baixada.
No contexto da pertença a este lugar de moradia os sujeitos que aqui vivem dão um
sentido de lugar “bom” pra baixada, “porque aqui é nosso”, “minha casa”, “perto de tudo”, “supermercado bem aqui, escola bem ali, posto de saúde aqui do lado, polícia aqui no canto”. Após décadas de residência neste lugar, onde os moradores foram moldando o
espaço de moradia ao longo dos anos, com reformas na casa e aterros de espaços alagados,
ali é a sua casa, com fortes laços com os vizinhos “de porta”, sejam eles familiares ou
amigos adquiridos em anos. A pertença, aqui, não é à baixada, ou a este “buraco”, como diz dona Argia. A pertença é ao bairro, lugar de feiras, comidas, lojas, supermercado,
escolas e posto de saúde. Lugar de amigos, e de vizinhos que “ajudam quando a gente precisa” e de gente “que não incomoda”.
Por outro lado, os moradores negam – e em alguns momentos se contradizem – viver num lugar perigoso. Reafirmam que ali é o espaço que lhes proporciona uma “vida
digna”, condição socioeconômica melhor do que em outros lugares da cidade, onde teriam
que pagar altos aluguéis e dependeriam de transporte público. A moradia na baixada lhes ensina táticas e estratégias de vida, incluindo as de representação simbólica, como narrativas da segurança do lugar, e a capitalização social e simbólica, elementos que os ajudam a posicionar-se como agentes ativos frente ao sistema opressor da sociedade
capitalista consumista. Mas, sentimentalmente, os moradores têm “medo” da violência simbólica que vem “de fora da baixada”, com preconceitos, rótulos e estigmatizações, e também têm medo dos “moleques” que andam “fazendo bronca por aí”, andando com
arma branca pelas pontes da baixada. Algumas famílias, como a de Maria de Jesus e de Maria confiam na polícia e, caso precisem, recorrem a ela. Mas há outras famílias que não acreditam na polícia ou acreditam que ela faça parte de um sistema de interesses
simbólicos e financeiros, “eles vem aqui, se achando os bonzão, batem em pai de família honesto, batem em moleque, querem cobrar uma verba pra eles... mas não são todos os
policiais que são assim... mas muitos são”, diz Zaíra. Zaíra, não quer nem ouvir falar em
polícia: “ligo para os meninos do presídio (seu esposo e os amigos que estão presos) e
eles vão tocar o terror”. Logo, a confiança e o sentido de segurança são destinados não ao
Estado, mas a familiares e amigos que, muitas vezes, podem estar presos ou envolvidos em ilegalidades e informalidades, mas que transmitem segurança a eles, e onde os valores
e as concepções de “crime” e “culpado” não são os mesmos do código penal (muitos
amigos ou familiares presos são valorizados e admirados porque o motivo da prisão pode estar relacionado a tentativas de ajudar os moradores da baixada, quando se refere a delitos em prol de benfeitorias no lugar, por exemplo). Este sentido de segurança também
se mostra na relação com o vizinho, que é “boa”, mas atravessada por conflitos e rupturas, como as “fofocas”, “ilegalidade” e “maus exemplos”. “Amigo” para os moradores da Baixada Perpétuo Socorro, são “vizinhos” e vice-versa. Mas ser “um amigo de verdade” ou um “bom vizinho” não é “viver um na casa do outro”, como diz Maria, e sim “ajudar quando a gente precisar” ou, como sempre falam Maria de Jesus e Fernandes, é “ficar na sua”, não “interferir na vida do vizinho”.
A baixada define-se não pelos seus limites espaciais, mas de interações sociais (AGIER, 2011). Não é, nem nunca foi, unida. Há um falso sentimento de união. Na
verdade o que há na baixada é uma “lei do silêncio” cumprida em função de interesses e
medidas de sobrevivência, que geram sentimentos de segurança. Se fosse um lugar seguro dona Maria de Jesus não nutriria um sentimento de tristeza e revolta pelo assassinato de seu filho, numa ponte próxima a casa dele. Diga-se de passagem, as brigas e os assassinatos, na maioria das vezes, ocorrem por passionalidade nos relacionamentos, brigas de casais, traições e, em alguns míseros casos, por dívidas pequenas de drogas baratas, onde geralmente os assassinados são adolescentes descalços. Escrevi este texto em muitos trechos no tempo presente porque vivi a Baixada Perpétuo Socorro. Porém, este lugar praticado durou aproximadamente 53 anos, até 15h de 23 de outubro de 2013.
CAPÍTULO 2 – Tem algo queimando: A dor e o sofrimento social de um evento