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CAPÍTULO 2 – Tem algo queimando: A dor e o sofrimento social de um evento

1. Das palafitas às cinzas: O fim de um espaço praticado

Por volta de 18h já anoitecia. As labaredas de fogo cada vez cresciam mais e já consumiam todo o espaço físico da Baixada Perpétuo Socorro. Na entrada, pela Marcílio Dias, achei que o fogo chegava a 40 metros, porque estava mais alto que a maioria dos açaizeiros do entorno. Meu coração apertou tanto... O lugar que ardia em chamas tão densas era exatamente o lugar em que moravam muitas famílias trabalhadoras, de gente simples, que lutavam por uma vida digna, que almejavam escolas para os filhos, entre tantos outros sonhos, inclusive o que eles já tinham conquistado, da casa própria. Nessa hora o vento aumentou... vindo da maré do Amazonas. E o fogo que apenas triscava os açaizeiros da área entre Marcilio Dias e Ana Nery os tomou com força. Como disse

Zirma: “E lá vinha aquele vento açoitando o fogo. Aí depois os policiais chegaram e

mandaram a gente levar as nossas coisinhas mais pra frente porque ia ficar muito quente”. Nesta hora os bombeiros começaram a derrubar as árvores para tentar amenizar o fogo e evitar que ele passasse para as lojas e para as outras ruas do bairro.

Um amarelo alaranjado ardia e explodia num negro aterrador e poluente que se misturava entre as nuvens no céu que começavam a surgir. As sirenes pararam de soar por uns 3 segundos, e então eu ouvi um dos sons mais tristes de minha vida: Pessoas e animais gritavam e choravam desesperadamente. Muitos dos animais, naquela exata hora, estavam morrendo queimados, presos a correntes nas casas de seus donos. Nessa hora a garganta engasgou, e o estômago embolou. Respirei fundo e tentei me fazer de forte. Ligava pra seu Lobo, um senhor que morava no bairro. Eu sabia que ele estava no meio do fogo tentando salvar animais. Tentava encontrá-lo. Não dava mais para entrar na baixada. Os cabos de luz e telefonia foram cortados/desligados na área. Nada funcionava. Não se conseguia fazer ligações para nenhuma operadora. Eu também comecei a procurar uma amiga que mora na pequena passagem Santa Marta, uma área de ressaca aterrada, bem próxima à baixada. Era minha amiga Ândria. Perdi as contas das inúmeras vezes que tentei ligar para Lobo e Ândria. Os interlocutores da baixada eu ainda não tinha os seus telefones celulares, somente o telefone fixo de dona Maria de Jesus, que aquelas alturas não iria tocar.

Quando o fogo foi diminuindo na parte que levava à Rua Ana Nery, eu e meu esposo pegamos o carro e atravessamos o bairro por outra rua. Já devia ser umas 20h. Tudo era muito escuro. Nessa hora as pessoas não corriam mais, porque não tinha mais o que fazer. Elas simplesmente vagavam, olhavam para o fogo, arrasadas, cabelos

Moradores retirando os botijões de gás da Baixada Perpétuo Socorro, pela rua Ana Nery. Foto: Roberta Scheibe

Moradores próximos a Baixada jogavam água no pátio, com medo que o fogo se aproximasse de suas casas. Foto: Roberta Scheibe

desgrenhados, sujos de fumaça, com a roupa do corpo. Neste sentido, o evento crítico traz consigo sofrimentos sociais dotados da violência simbólica da perda da casa por um fato atípico, fruto de um erro humano, mas absolutamente sem intenção, que gera amplas, graves e longas consequências traumáticas para quem perdeu tudo nesse dia. Olhar para o nada, vagar com os cabelos desgrenhados, significa viver uma violência de fragmentação da experiência do viver, e – sobretudo – como defende Das (1995), encarar uma imensa ruptura num tempo e num espaço, onde o passado não tem mais sentido e a compreensão da realidade fica vaga, de uma hora para outra, de um minuto para outro, amplia uma lembrança recente. Uma memória ainda atrapalhada, que é presente, subterrânea e silenciosa de um passado presente na pele queimada e suja de fuligem de um sujeito social que teve uma guinada em seu cotidiano. Entramos por uma rua lateral, na direção da orla para dentro do bairro. Parei ao lado do supermercado Fortaleza. A noite já estava totalmente escura e não tinha luz. Como os telefones não funcionavam, eu gritava pelo nome dos amigos, parava ao lado de pessoas e perguntava se alguém conhecia Maria de Jesus, Vitória, Maria, Argia, Fernandes, Zirma, Ândria e Lobo. Eu e meu esposo, andávamos com a lanterna do celular, chamando por nossos amigos.

Entramos e paramos em frente a entrada da baixada pela via da Maestro Miguel. Ali o fogo permanecia muito forte. Eu estava a uns 100 metros do fogo, ele imperava em uns 25 metros de altura. Eu via aquele laranja que ardia no ar. As fagulhas voavam e se transformavam em espessa fumaça. O calor nos tocava. Ao meu lado e atrás de mim centenas de pessoas olhavam incrédulas o que acontecia. Pessoas que tinham perdido tudo. Pessoas que moravam ao redor, pessoas tentando encontrar suas famílias.

De tanto que procurei, mesmo no escuro – o fogo ficou um pouco pra trás – reconheci Ândria, parada, olhando o fogo à distância. Parecia um milagre ter encontrado uma das pessoas. Nos abraçamos tanto e ela nos disse que estava tudo bem. Como o vento virou, a Passagem Santa Marta, onde ela reside, não foi afetada. Entramos pela Santa

Marta para ver como ficou a “parte dos fundos” da Baixada Perpétuo Socorro, por trás da

rua Quintino Justo de Almeida. Circulamos em uma área de ressaca aterrada, em meio às casas. Eu ouvia os programas policiais provavelmente ligados em pequenos geradores, ou via aparelhos de telefone, pois ainda não havia luz. As pessoas olhavam para fora (vendo o incêndio ao vivo), e para os programas sensacionalistas que transmitiam ao vivo a tragédia.

Ao chegar na parte de trás da baixada, senti um aperto no peito. Uma sensação muito ruim. Havia uma área de 26 mil metros quadrados que agora era uma cinza dourada

brilhante. A sensação de dor era maior porque a cinza dourada era linda, visualmente falando nos termos de fotografia e linguagem cinematográfica, mas era um dourado que trazia uma tristeza sem fim e uma dor sem tamanho; porque a visão das cinzas que brilhavam carregava consigo a perda do lar e dos pertencimentos sociais de uma média de trinta anos de moradia. Tirei fotos para contar a história. Parecia a imagem daquele filme do Johnny Deep em que ele vendia chocolates, se apaixonava por uma mulher cuja terra da família italiana se dilacerou pelo fogo. E lá estava assim. Só que ao contrário do filme que só tinha parreirais de uvas, aqui eram parreirais de gente.

Enquanto a gente corria tentando ajudar, muitas outras pessoas faziam a mesma coisa. Muitos outros, claro, filmavam e fotografavam tudo para postar no facebook e,

inclusive, gente mal intencionada achando “cara de demônio” nas fotografias entre as

chamas; aproveitando-se da dor do outro. Enquanto eu e meu esposo acompanhávamos o incêndio, e tentávamos ajudar, sem sucesso, as pessoas nos convidavam para entrar em suas casas – nas outras passagens (que são áreas de ressaca aterradas, ocupadas e transformadas em moradia) para ter outra visão do incêndio, ou pelo menos mais de perto.

Onde estávamos era a passagem Augustinho, que fica atrás do “Casa Verde”. Dali se tinha

acesso a uma das entradas da Baixada Perpétuo Socorro. O desespero de todos era iminente. As mulheres choravam e rezavam “em nome de Jesus”, muitas famílias enchiam baldes de água e jogavam na direção da baixada, ou ao redor de suas casas, numa tentativa desesperada de proteção. Muitos enchiam toneis de água caso o fogo se aproximasse. Era choro, sofrimento, gritos. O Amapá estava em pânico.

Multidão na rua tentando tirar os pertences de casa. Rua Pedro Américo. Foto Roberta Scheibe

A Baixada Perpétuo Socorro imergiu em cinzas. Todos choravam. As notícias que corriam eram de que tudo começou com uma briga de vizinhos, que duas crianças morreram queimadas, uma loja foi saqueada e um homem assassinado. As notícias não estavam corretas. E eu não vi nada disso. Vi bombeiros correndo, famílias ajudando outras famílias, e muita gente sem chão.

Neste dia 250 casas, de acordo com a Defesa Civil (G1, 2013), foram queimadas. No entanto, os próprios moradores estimam o dobro, uma vez que a maioria das casas

possuía os “puxadinhos” para cima, ou para trás. Em cada um destes puxadinhos morava

uma grande família. Mas ao visitante desconhecido, parecia ser apenas uma casa. Segundo o laudo dos Bombeiros, em informação amplamente divulgada pela mídia – e julgada pela imprensa marrom –, alguns meninos que estavam consumindo drogas

brincavam com palitos de fósforos em uma das casas da “parte de trás”, “lá pra banda do Onorato”. “Onorato” era uma antiga loja de materiais de construção que se localizava nas

proximidades da Casa Estrela, mas que hoje é uma outra loja de materiais de construção. No entanto, nem todos os moradores acreditam nesta versão ou duvidam dos nomes dos culpados. Como a grande maioria das residências era estruturada em madeira, e à tarde o vento perto da orla sopra forte, o fogo consumiu os mais de 26 mil metros quadrados em torno de 2h30. Os bombeiros lutaram contra o fogo até mais de 23h.