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CAPÍTULO 2 – Tem algo queimando: A dor e o sofrimento social de um evento

3. Notas sobre resistências

3.3 O sofrimento social do pertencimento arrancado

Dona Isaura, numa tarde quente na escola Mario Andreazza, me disse: “Eu não

quero ir embora pra longe desse bairro... eu não quero não, eu não vou! Porque eu sou

muito conhecida, eu sou muito ‘percurada’. Pensa, são 24 anos morando”. As pessoas ao

seu redor, que acompanham a cena de dona Isaura, em pé, chinelos de dedos, com gestos expansivos, concordam com ela. Motivada ela continua sua fala de resistência: “Eu não vou não. Agora, eu não entendo, porque ele (governador) não limpa ali (no lugar onde

queimou), não aterra e não manda fazer casa? Lá no mesmo lugar...”. A preocupação, na

verdade, era com relação aos equipamentos centrais e a especulação da liberação de casas

e apartamentos em bairros longínquos ao centro de Macapá: “se alguém adoece lá longe,

nunca tá desocupada pra vir. Imagina pra lá”, argumenta. “No dia do incêndio, no Novo

Horizonte – o meu genro é segurança da Unifap – pegaram um ‘takes’. Pra vir rápido pagaram 40 reais, já pensou? Agora pensa lá pra zona norte! Não tem escola, não tem

hospital... Ainda mais a gente com os nossos ‘pobrema’”, desabafa dona Isaura.

Enquanto ocorriam as especulações com relação à liberação do dinheiro do aluguel social, de uma ajuda de custos em torno de R$3.000,00 e de um cartão de crédito financiado pela aixa Econômica Federal de R$5.000,00 – que poderia ser devolvido em um prazo de três anos -, e também ao destino da futura morada, as pessoas sentiam-se ao léu, sem nada, com o pouco que lhes tinha sido doado. Lembravam-se do passado recente e pensavam nas expectativas futuras. A maior preocupação era não precisar sair do bairro de pertencimentos, onde havia amizades e o fornecimento de suas necessidades de consumo.

A família de Maria de Jesus já tentava se acostumar com a ideia da moradia distante. Isidora chegou a me dizer que preferia ir ao Conjunto Oscar Santos do que ao Macapaba,

porque lá era casa e mais “família”, com lugar para as crianças brincarem na frente das

casas. Fernandes também dizia que só queria uma casa para morar, não importava o lugar. Maria preferia ficar no bairro, mas se não desse, não iria se opor. No entanto, a maioria das pessoas, como Argia, Zirma, Zaíra e Isaura, não queriam sair do bairro e revelam, nas suas falas, as subjetividades de mais de 20, 30 anos de pertencimentos sociais incorporados no Bairro Perpétuo Socorro, revelando trajetórias, sociabilidades e práticas cotidianas, como pode ser percebido na fala de uma das ex-moradoras da baixada:

Acordava cedo, tomava café, levava meu neto pra escola no Azevedo Costa, eu ia de pé, porque eu gosto de andar. Ia deixar ele, vinha de lá, e eu era muito ‘percurada’ pra puxar, porque eu tenho curso de parteira. Até a minha carteira queimou, eu tenho que conseguir outra... E era isso, eu lavava minha roupa na mão que eu não tinha máquina, a minha filha às vezes batia minha roupa na máquina mas quem espremia era eu. E era assim, eu ia comprar minha comida... às vezes dava uma deitadinha, me levantava e ia na casa da minha vizinha.... eu não gostava de televisão, de novela, de nada, só do jornal. Depois do jornal eu ia dormir. Eu ia puxar barriga. Domingo (dia 27/10) vai fazer três anos que eu peguei o último menino. Aqui em Macapá, na minha casa, só na casa dos vizinhos eu já peguei 23 crianças. Ô meu Deus, tudo isso queimou, eu tinha uma relação com o nome das crianças, das mães, mas queimou tudinho, ficou só na memória... E eu fiz esse curso, passei, tinha minha carteira... E eu não quero sair daqui.

As falas, recheadas de verbos pretéritos, parecem ratificar o fim de uma vida habitada na baixada, de uma experiência praticada no espaço da moradia. O ato de falar, nesse momento, além de relembrar operações diárias também tinha a função de memória subterrânea (POLLAK, 1989), porque era uma voz de resistência em meio aos escombros e os relatos oficiais da defesa civil. Uma fala que define uma rede de conexões e uma malha (INGOLD, 2014), ou uma teia de trajetórias percorridas e sentidas. Todos se lembravam de bons momentos de sociabilidades e pertencimentos, impulsionados pelos bens culturais e sua produção local. O contexto da fala acima citada revela contextos de usos (DE CERTEAU, 1990, p.96) de outras práticas do morar, de caminhar, de viver. Os moradores tinham operações próprias, resistindo aos horários formais de trabalho, às formalidades de luz, água, a massificação da televisão. Naquele labirinto urgiam operações próprias, do café, da conversa com o vizinho, da cultura do parto natural, dos percursos no entorno da casa, fundamentadas num contexto de bairro tradicional, pobre, cuja culinária da cidade sai de seu seio.

Fernandes, a senhora baixa e gordinha, com problemas na visão, que adora utilizar o discurso como a principal de suas práticas ordinárias não cansava de dizer que, mesmo

tendo violência física de gangues e traficantes, tendo que se fazer “de cega, surda e muda

para no outro dia não ser encontrada com a boca cheia de formigas”, lá era um lugar muito bom para se viver, porque ocorriam rodas de conversa em torno de comensalidades ampliando práticas sociais em torno do consumo. Ela fala de uma vida muito recente:

“Ah, era muito bom. Se reunia com a família, os vizinhos lá pelas 16h30, 17h, fazia um

café preto, cozinhava uma mandioca, era muito bom. Lá no final de semana era bacana... tudo a gente inventava, era churrasco, era geladinha, era feijoada, era sopão... A gente fazia festinhas... agora sabe-se lá onde tão nossos amigos”. Vitória também me disse, nos poucos momentos em que a vi no abrigo (pois durante o dia inteiro ela continuava

trabalhando): “vou sentir muita saudade dos lugares... Da casa, dos amigos próximos...

sabe-se lá se vamos ver eles de novo”. Dona Zirma, senhora de 65 anos que estava sozinha

esperando seu destino, também me disse em seu forte sotaque maranhense: “Ah, eu

gostava demais, porque tudo ficava pertinho. E agora ninguém mais sabe pra onde a gente vai. Eu queria ficar perto do centro da cidade. Que é mais fácil”, disse. E de trás de seus grandes óculos de grau, que lhe dá o enquadramento de um mundo em ruptura, em

aconteceu... o governo tem culpa, porque era tudo baixada, não acham um lugar pra botar

esse pessoal. E às vezes acham, mas o pessoal volta”!

Então ela disse o que várias pessoas já me disseram: “Já me disseram que se

mandarem embora (para longe do bairro) eles vão vender a casinha que vão ganhar e vão voltar pra lá construir outra (na Baixada do Bairro Perpétuo Socorro)... Olha! Tá muito

apegado né!”, conta Zirma. Nestas práticas discursivas de Fernandes, Vitória e Zirma,

aparecem lugares de pertencimento e o começo de novas percepções de mundo. Estas mulheres não são passivas, elas incorporam falas sobre o papel do Estado, das igrejas e das famílias. Estas pessoas, assim como a personagem Asha de Veena Das, também se colocam no papel de testemunhas e transgressoras (DAS, 1995). Nas narrativas há a ressignificação do passado e o começo de delineações do futuro via imaginário. São, também, novas formas de habitar o seu mundo numa atividade que não deixa de ser

“subversiva”.

As falas de Fernandes também revelam que este momento de ruptura não é uma violência isolada sentida pelos moradores. Eles viviam cotidianamente a violência (portanto, como diz Das (1995), ela pode descer ao cotidiano) seja nas ações das “certas

condições” dos vizinhos, da metáfora de ter que calar-se frente a traficantes e mandatários

ordinários do local, sobre o abuso de poder policial, além da violência e sofrimento social da pobreza e do distanciamento social e econômico das classes dominantes. Finalmente,

a expressão de Zirma sobre “ficar perto da cidade” e estar “apegado” revela uma expressão de esperança, numa “forma de vida” (DAS, 1999, p.38).

Neste momento o fator tempo não agiu, porque para eles, o passado da baixada é

presente. “Meu filho disse que ele tava na escada e que o fogo vinha por debaixo. Ele

chorou tanto porque comprou uma casinha de dia das crianças pra filha dele, mas coitada... queimou a casinha, o velocípede, as bonequinhas, tudo. Não salvou nenhum brinquedo. As bonecas grandes dela foram tudinho... Eu disse pra ele não chorar porque

Deus vai dar uma outra para ela. Mas graças a Deus tá todo mundo vivo”, disse Fernandes.

Nesta fala, Fernandes, como narradora distante de um espaço, mas jamais distante de sua história descritiva no tempo, traz conselhos e ensinamentos morais (BENJAMIN, 1993, p.200). A situação vivida pela família de Fernandes, contada em detalhes, de modo artesanal, tem caráter extraordinário, porque tem exatidão, tem valor. E o fato vivido, em si, está morto no espaço, mas não na memória que relata uma versão do fato. Por isso o que Fernandes conta é um conteúdo com autoridade. Tudo o que acaba deixa uma coisa

coisa atrás de si” (BENJAMIN, 1993, p.212). É a vida lembrada (p.214), que morreu, mas que vive na memória e traz dor à família de Fernandes. E é este tom que dá sentido e moral a um elemento fundamental da narrativa: a voz do mundo místico que lhes dá um consolo. “Deus vai dar outra pra ela” e “Graças a Deus tá todo mundo vivo”. Para Benjamin (p.218) é “o consolo da voz da natureza” à figura do justo. A experiência de Fernandes é agora minha experiência também, pois sua narrativa foi incorporada em minha memória.

O compartilhamento da dor atinge as pessoas, que num primeiro momento enfocam

um sentido religioso ao seu sofrimento, explicitado em falas como “Deus sabe o que faz”, “Deus tem algo melhor pra nós” ou “Deus vai dar uma outra (boneca) pra ela”; e num

segundo momento passam a proliferar um sentido político, de análise dos fatos, como fez Zirma, e de resistências contra o Estado. A dor é racionalizada, como percebido em frases

de “o governo tem culpa”, “era uma bomba que a qualquer momento ia estourar na nossa mão”. Zoé também chorava ao lembrar-se dos pertences de sua filha: “A minha filha,

coitada, saiu com a roupa do corpo. Ela fez três anos esse ano (enche os olhos de lágrimas). Essa menina ganhou tanta roupa, tanta roupa, ela tinha aquelas bonecas que

nem chegou a tirar da caixa”. No relato testemunhal, o evento crítico vivido – ou, neste

caso, convivido – decompõe os sentimentos, fere o corpo (fisicamente, com queimaduras e machucados) e a alma (nos liames mais subjetivos), interrompe um modo de vida habitado, num cotidiano incinerado, onde se transmutam em cinzas os espaços habitados, as relações e as conquistas materiais que lhes são custosas. A dor eloquente de Zoé, que parecia não ter fim, aparecia em sua voz, entrecortada a lágrimas e soluços: “Ela ganhou uns vestidos de seda de cento e pouco que deram pra ela de presente quando ela fez um

ano e que tava muito grande. Ela ainda nem tinha usado”. Para de falar e chora. Todos ao

seu redor baixam a cabeça. Alguns silêncios parecem ser a eternidade. Zoé resolve

continuar: “E eu não tinha usado porque a mulher comprou maiorzinho que ia dar nela

com uns quatro anos. As coisas dela eram todas da Jequiti, da Natura, tudo coisa boa, e

agora ela não tem é nada”. As falas e os silêncios constituem um drama subjetivo,

açoitado pelos símbolos tão vivos do “fogo”, da “queimada” e das “cenas de terror” que estão vivas em sua memória.

Maria também mostra, pela primeira vez, o deslocamento de seu cotidiano causado pelo evento crítico vivido e o trauma de sua vida ordinária vivida por mais de 20 anos naquele lugar. Ela faz questão de dizer que mesmo pobres, muitos sem estudo formal, que

a maioria dos moradores habitantes do local trabalhava, “eram honestos e dignos”, ao

contrário da opinião que a população de Macapá tem sobre os moradores da área.

Apesar de ser uma favela, uma baixada, era uma periferia lá... Mas os pais sempre eles procuraram trabalhar. Nós, por exemplo, a vizinha Sergipana vendia o acarajé dela, o vizinho do lado tinha o bilhar e o bar dele, a outra vizinha trabalhava num colégio, o Miguelzinho sempre vendeu churrasco na rua... era o dia todinho eles vendendo, entendeu? A única coisa de maior necessidade lá era essa mulher que os filhos dela tocaram fogo... porque ela tinha 11 filhos... todos pequenos, entendeu? Tooooodos pequenos, um filho de um, outro filho de outro... e ela não trabalhava, a única coisa que ela sobrevivia era esse negócio dessa bolsa (Bolsa Família59). Agora ela visita o Iapen, porque agora o marido dela

tá preso né. Tinha vizinhos pobres, a Graça também, que tinha muitos filhos... uns 8 filhinhos ela tem... mas a maioria trabalhava. Ahhh, tiveram tantos momentos bons, aniversáááário... entendeu? Tem muita criança Roberta... e eles vem com fome. Porque se passa fome também lá, como eu te falei, os filhos da Ipásia... e quando a gente fazia aniversário enchia de criança que ia só pra comer. E era bom isso (no sentido de gostar de ajudar). Era coisa boa que eu podia ver lá. Quando os pais chegavam de tarde as crianças tavam lá, aleeeegres esperaaando. Tem coisas boas também na baixada, não é só coisas ruins não.

Maria não é muito de falar “do que passou”, ela fala lentamente e arrastado quando

lembra de seu espaço habitado. Ela conta que perdeu o que tinha de mais precioso: sua casa, os documentos e todas as fotografias de sua família. Uma experiência traumática que não será esquecida tão cedo. Em uma de nossas conversas ela parou, se encostou na cadeira, olhou pro nada e disse:

Não foram dez meses, foram 20 anos ali... A minha casa quando eu vi pegar fogo... era um pedaço de mim! Parece que era uma criança que tava gritando pra mim ajudar. Agora, como é que eu vou ajudar? Como eu vou ajudar a minha casa... ? (fica triste). Durante vinte anos que eu

59 É um programa do governo Federal Brasileiro de transferência direta de renda à famílias em situação de

pobreza (com renda inferior a R$170,00) e extrema pobreza (renda inferior a R$85,00) do Brasil. Podem participar as famílias que tenham crianças de 0 a 17 anos.

construí... poxa era importante pra mim a minha casa. Eu amava ela! (vai se emocionando) Todo dia eu cuidava dela. Eu amava a minha casa! São coisas importantes assim que vem... as amizades da gente... Tem uma saudade, porque nós perdemos, né, assim que eu me lembro... por exemplo, as fotos. As fotos ficaram tudo... Queimaram! Tudinho!!! (olhos cheios de lágrimas) Coisas... Coisas que tem muito valor sentimental! (as lágrimas escorrem pelo rosto de Maria... mas na sua voz ela permanece firme). Não material, mas espiritual, né. As fotos dos meus fiiiiilhos (Fala com carinho), a foto do meu casamento, quando eu casei... tudo queimou lá... que tem importância pra gente (enxuga as lágrimas e sorri).

As lágrimas que escorrem pelo rosto de Maria expressam o tamanho de sua dor. Não somente a sua fala, mas nas suas lágrimas. É quando Das (2011), inspirada em Wittgenstein, fala sobre as linguagens do corpo, e também sobre os silêncios que falam. Estas linguagens aparecem num contexto de cotidiano e resistência que precisa ser mantido – por isso Maria enxuga suas lágrimas e sorri, continuando a falar no mesmo tom de voz calmo. Esta situação também pode ser percebida na fala de Vitória, quando conta:

Um dia eu chorei tanto lá (no abrigo), por causa da minha casa... eu fui trabalhar e a Clarice (amiga que mora com a família de Vitória e estava grávida. Ela é como uma filha para Vitória.) ficou lá no abrigo com os meninos. Aí quando eu cheguei, eles falaram que a gente tinha que procurar kitnet. Aí nós rodemo até umas 8 horas da noite eu e meu marido. Depois eu cheguei tão cansada, nós tomemo um banho (no abrigo), e não tinha mais janta. E tinha uns guardas que ficavam lá. Aí a gente foi atrás de comida lá e eles barraram nós (depois das 20h não dava mais pra sair do abrigo). Aí eu disse que eu tinha saído e o cara disse ‘eu não quero saber, a lei agora é não sair. Agora a senhora não pode sair!’ Égua, eu chorei tanto nesse dia, eu chorei tanto... Aí um homem veio ver o que tava acontecendo, eu falei, aí eu disse ‘infelizmente o meu patrão tá viajando, senão eu ia ligar pro meu patrão agora’, eu disse pra ele (por ele ser promotor público e poder “fazer algo por eles”). Aí eles perguntaram se eu queria um copo de leite... eu fiquei tão triste nesse dia, sabe... eu chorei muito mesmo! E eu disse: ‘Eu sou pobre sim, mas eu chegava em casa e eu tinha as minhas coisas. Eu nunca passei por essa humilhação como eu tô passando agora’. Aí a mulher da diocese veio e perguntou se eu queria bolacha, se eu queria leite. Aí quando foi no domingo a gente passou o diiiiia sem comer (diz rindo) não foi Clarice? (Clarice concorda com um sorrisinho). Pobre quando acontece essas coisas fica sem nada né. A gente não tinha nada... nem dinheiro. E a gente ficou esperando pela comida, e a prefeitura atrasou, sei lá, foi alguma responsabilidade, alguma coisa... A gente foi comer já de tarde... ficamos esperando. Foi umas 4 h da tarde quando trouxeram uma marmita lá pra gente. Aí de madrugada ela (Clarice) me diz.... ‘Vitória, Vitória, já tá me dando as dor’.... Aí eu

pensei ‘Meu Deus do céu... e agora que a gente tá sem dinheiro!!’. Aí eu chamei a ambulância e nós fomo. Chegamo na maternidade e não tinha leito. E aí lá vai... a gente pegou e foi pro São Camilo. Aí lá graças a Deus que tinha. Aí depois veio uns amigos da gente, a irmã dela, aí arrumamos as coisas lá. E ela ainda passou uma semana no hospital, porque o nenê nasceu com a pele toda amarela...

Vitória e sua família sofreram por exclusão, esquecimento social e moral. Perder tudo e não poder contar com a sensibilidade do outro doía em Vitória e a deixou tão triste. A este sentimento, Veena Das utiliza-se do termo “sofrimento social” para esmiuçar contextos sociais e políticos, como ferramenta de intervenção na realidade (1995). Assim, o sofrimento social adiciona experiências de dor, traumas, distúrbios, doenças, humilhação e perda dos pertencimentos (KLEINMAN, 1997). Assim como Vitória chorou de humilhação e de fome, como Clarice dependia do Estado para ter seu filho depois de ter visto queimar todas as roupinhas para seu bebê, compradas a muito custo, como Zoé teve um estresse traumático, dona Maria de Jesus sofreu de asma, falta de ar e crise nos rins, assim como Argia teve depressão, Fernandes desenvolveu dores intensas na cabeça.

A dor de Maria ao falar da casa, de Vitória ao sentir-se humilhada em passar fome, entre tantos outros exemplos, demonstram na linguagem, nos gestos e na voz uma dor que lhes foi desferida, exacerbam imaginários, subjetividades e pertencimentos, sentidos vividos e construídos. E, em todas as falas destas interlocutoras, é como se elas fizessem um pedido de reconhecimento e dignidade. A partir daquele momento ter vivido o incêndio no seu lugar de moradia passa a ser, também, uma marca de pertencimento entre eles, que gera laços de comunidade.

4. O sofrimento social e as resistências nas relações com o Estado