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CAPÍTULO 2 – Tem algo queimando: A dor e o sofrimento social de um evento

2. Todos perderam quase tudo: O sofrimento social e a resistência

Quem mais sofre em função destes eventos são populações de baixa renda, que ficam atreladas às sanções do Estado. Os sujeitos sociais afetados pela violência física ou simbólica propiciada pelo evento crítico podem estar vinculados a questões de parentesco,

como foi o caso na baixada, em que se afetaram moradores da “parte da frente”, formada

em torno de algumas famílias grandes (em que muitos filhos se casaram com os filhos

dos vizinhos e continuaram morando na baixada) e da “parte de trás”, constituída de

muitas famílias (havia em torno de 40 casas na parte da frente e 210 na parte de trás. Se levarmos em conta os puxadinhos, iria duplicar). Nestes casos de eventos críticos, as cláusulas seguidas por uma comunidade mantêm o grupo coeso até um certo momento – como vivenciei por ocasião deste incêndio –, porque seguem regras de interesses que se equivalem e proporcionam um equilíbrio, mesmo que aparente, entre eles. Nos casos em que há uma ruptura imediata do cotidiano – como o

Visão das casas entre a rua Ana Nery e Marcílio Dias. Foto: Jonatham Costa.

Local do incêndio já tomado pelo fogo. Visão do alto de uma casa de três pisos da rua São José. Foto: Roberta Scheibe

fogo que destruiu as casas – todos se esforçam para restabelecer a suposta harmonia do grupo.

No caso da Baixada Perpétuo Socorro a protrusão é causada pela fatalidade do incêndio, resultado das escassas condições do lugar; mas que se forem refletidas de modo profundo e histórico, se chegará à ocupação de terras da União, à omissão do Estado em permitir habitação em terras de mangues, áreas alagadas e de preservação ambiental e em não observar as condições de vida nestas áreas habitadas. Governos estadual e municipal apenas faziam reparos em pontes e pisavam em ovos com a população desses locais para não perder a imensa quantidade de votos que os moradores lhes proporcionavam nas eleições (mesmo que desde 2010 tenha começado algumas ações de políticas públicas

isoladas para alguns lugares de habitações “subnormais”). A desarmonia do grupo

começa a surgir quando as primeiras famílias ganham suas casas e não tem mais interesse em lutar para que os outros membros da antiga comunidade ganhem suas casas.

Eram 23 horas. Logo que se percebeu as proporções gigantescas do incêndio na Baixada Perpétuo Socorro, Governo do Estado, Prefeitura, igrejas e voluntários se uniram

para ajudar as “vítimas”, assim rotuladas pelo Estado. Nestas nomeações (BOURDIEU,

2014) e violências simbólicas (DAS, 1995) ratificadas pelo Estado, havia 700 desabrigados (aquelas pessoas que não tem para onde ir) e 1.245 desalojados (pessoas que ficaram na casa de parentes). As pessoas foram acomodadas, na primeira noite, segundo informações divulgadas pelos órgãos públicos e pela imprensa, no ginásio esportivo Avertino Ramos (em torno de 150 pessoas), lugar este localizado na divisa do Bairro Perpétuo Socorro com o Centro, na Rua Cândido Mendes (lugar muito concorrido

pelas pessoas por ficar perto de “casa”, ou seja, do Bairro Perpétuo Socorro); na escola

Edgar Lino (em torno de 150 pessoas), no ginásio Diocesano das Pastorais (com inicialmente 30 famílias e depois mais 12 famílias – Em torno de 300 pessoas), e também foram utilizadas como abrigo duas escolas no Bairro Perpétuo Socorro: O Mario Andreazza, a escola Maestro Miguel (em torno de 85 pessoas), escola Deuzuite Cavalcante e escola São Benedito, estes sem estimativa de número de abrigados. Estes dados foram de um relatório inicial da Defesa Civil (SANTIAGO, 2013).

Baixada Perpétuo Socorro destruída. Esta era a entrada por trás do Casa Estrela, pela rua Quintino Justo de Almeida. Neste local muitos moradores, cidadãos amapaenses e jornalistas

registraram suas fotografias, diante de um calor quase insuportável.

“Parte de trás da Baixada”, próximo à casa de John Macapá, conhecido lutador de MMA, que era morador do local.

Havia muitas pessoas que trabalhavam representando Prefeitura e Governo do Estado, em tarefas como servir comidas e bebidas às pessoas que não tinham mais suas casas, organizar roupas e sapatos para doação, coordenar postos de entrega de doação (gerenciar as doações que chegavam e as doações que saíam. Vale ressaltar que a comunidade macapaense doou uma quantidade imensa de todos os itens necessários). Mas foi surpreendente o número de voluntários que não tinham vínculos com o governo, que na mesma noite do incêndio estavam dispostas a servir. Estas pessoas subiam as arquibancadas dos ginásios e/ou adentravam as salas de aula, onde as pessoas estavam se acomodando, levando bandejas de comida, roupas, sapatos, ou um simples abraço. Ao contrário de algumas determinadas pessoas – logicamente sem efetuar nenhuma generalização – forçadas por seus empregos de cargos comissionados do governo que andavam de salto alto carregando uma bandeja de bolachas na ponta dos dedos, sem de fato querer estar ali.

Quem perdeu sua casa, suas coisas, seus pertencimentos, tinha o cheiro da memória trágica impregnado no nariz, nas roupas, na pele. As pessoas permaneciam estupefatas, pareciam perdidas. Pegavam uma roupa doada, deitavam em colchões do exército ou doados por lojas de Macapá, tentavam falar com parentes. Não sabiam direito o que havia acontecido. Estavam arrasados. Ninguém falava muito naquela noite... As pessoas estavam em choque. Muitos grupos voluntários entregavam biscoitos, sucos, refrigerantes. As arquibancadas do ginásio Avertino Ramos, onde tive acesso no primeiro dia (até porque as escolas ainda se articulavam para receber as pessoas, já que havia muita confusão no bairro, bombeiros permaneciam apagando fogo e o bairro continuava sem luz), viraram uma grande vitrine de usados, pois a cada lance de arquibancadas havia camisas por números, calças por tamanhos, e uma infinidade de sapados, cada número em uma arquibancada: 34, 35, 36, 37, 38 e 39.

Enquanto voluntários corriam de um lado para outro com a bandeja de cachorro- quente, caminhões de grandes lojas do Amapá como Center Kennedy e Domestilar chegavam em frente ao Avertino Ramos descarregando caminhões e mais caminhões de colchões para doação. Na quadra de esportes, havia banheiro de um lado para as mulheres e de outro para os homens. Colchões foram espalhados na quadra e telões ligados para que eles pudessem ver televisão no outro dia. Mais voluntários passavam com alimentos e bebidas. Conversei com algumas pessoas naquela noite. Todos haviam perdido quase tudo. Anastácia, 30 anos e mãe de cinco filhos, só não estava mais triste porque seu bebê recém-nascido acabava de ganhar um berço novo e as lojas de crianças mandaram

entregar roupas para todos eles. Talvez eles tenham passado a ter mais do que jamais tiveram. Inicialmente, percebe-se a benevolência e caridade do Estado e das empresas privadas amapaenses. No entanto, num segundo momento, se percebe uma força

coercitiva por parte do Estado para enquadrar as pessoas nas categorias de “vítimas”,

nomeadas e ratificadas, e por outro lado a resistência dos moradores sobre este poder

disciplinador, ou, na categoria nativa, “humilhação”. Foi esta categoria que fez muitas

famílias dormirem aglomeradas em casas de parentes para não precisar dormir em colchões doados, vestir coisas que lhes foram dadas de segunda mão, comer biscoito mole, cachorro-quente frio e tomar banho junto com muitas pessoas. Mas para quem não tinha para onde ir, restava apropriar-se do sofrimento sancionado pelo Estado e por empresas (estas logicamente sem ações mancomunadas e de má fé, mas contribuindo para o sofrimento social de ser pobre, estigmatizado, de não ter mais nada), num primeiro momento, fazendo com que o Estado se legitime (DAS, 1995) e, por outro lado, gere uma nova violência simbólica nos atores sociais. Esta é a força da legitimação inculcada pelas estruturas estruturantes (BOURDIEU, 2014, p.227), que estão engendradas no espaço de relações dos agentes. Logo, apropriar-se das estruturas impostas pelo Estado, como submeter-se às estruturas deste, segundo Bourdieu, não deixa de ser um ato de cognição do que foi impetrado pela estrutura do sistema.

Eu estava lá. Conversei com todas as pessoas que pude, abracei outras, dei uma palavra de força, porque naquele momento eu também não sabia o que fazer. Fiquei lá até apagarem as luzes para que os moradores tentassem dormir. Já era 1h da madrugada. Muito provavelmente ninguém conseguiria dormir, mas fui convidada a me retirar, naquele momento, porque só os desabrigados poderiam permanecer no local. Naquela noite eu fiquei muito assustada: Com tudo o que as pessoas passavam, com a vulnerabilidade das baixadas, com meu trabalho de pesquisa que dava um giro de 180 graus, e assustada em estar pensando nisso enquanto outras pessoas sofriam. Lembro da mensagem que meu orientador Leonardo Sá me enviou, mais ou menos assim: “Roberta, agora ajude a todos, faça seu trabalho como pessoa, como voluntária, como jornalista.

Depois relate tudo o que viu. Mais tarde conversaremos”. E foi o que fiz. Relatei a

tragédia acionando doações nas redes sociais, fui doar roupas, levei alimentos não perecíveis para os postos de coleta, acionei amigos para doarem. Nos postos de entrega para doações havia quilos de roupas, muitos móveis e alimentos não perecíveis. Os jornalistas pululavam histórias. Histórias honestas, outras sensacionalistas explorando a

subjetividade e a dor das pessoas. Assim como os moradores, nesta noite também não dormi.

No outro dia, pela manhã, fui cedo ao local do incêndio. Ainda havia fogo e o lugar estava muito quente. Maria chorava de felicidade, pois encontrou Mia, sua gatinha, viva entre os escombros. Salvou-se escondida embaixo dos escombros da casa de sua dona, onde as brasas permaneciam... Conseguiu se esconder embaixo de uma marquise entre o fogo e a água. Estava ferida e muito machucada. Aliás, desde o dia do incêndio, Mia nunca mais miou. Além das pessoas, muitos animais passavam por intenso sofrimento. Seu Lobo e mais algumas pessoas que trabalham com proteção ambiental, passaram a noite recolhendo animais abandonados, perdidos e feridos, que moravam na Baixada. Na casa de Lobo havia uns quinze resgatados que foram tratados e medicados. Ele foi para a imprensa mostrar os cachorros e gatos encontrados. Alguns donos apareceram para pegar seus animais de estimação. Os demais animais foram doados à comunidade. Esta questão com os animais foi de grande comoção para todos, até porque muitos morreram acorrentados às casas de seus donos que não estavam em casa. Inclusive, na noite do incêndio, saindo da área queimada para o abrigo, encontrei uma família, pai, mãe e filha, indo para casa no escuro da noite. Eles estavam andando em fila. O pai carregava um gato

filhote. Perguntei se era dele, a resposta foi: “Não moça, acho que ele morava na

queimada... ele tá com um pequeno ferimento e tremendo muito. Deve estar perdido”, dizia o homem afagando a cabeça do gato. A filha, aparentando 6, 7 anos, entrou na

Ginásio Avertino Ramos, um dos muitos locais de abrigo aos desabrigados. Foto: Roberta Scheibe

Local onde era a Baixada Perpétuo Socorro, no dia seguinte ao incêndio. Acesso pelo trecho da rua Pedro Américo, via Lixão Maestro Miguel. Foto: Roberta Scheibe

disse: “Poxa, se não acharem o dono dele, não o abandonem. Fiquem com ele”, ao passo

que o senhor me olhou, sorriu e disse: “se seus donos não aparecerem, ele já tem um novo

lar”, e seria um lar de gente simples, vizinha da baixada, de pessoas pobres e

trabalhadoras, mas muito provavelmente um lar em que seria protegido e cuidado. Pela manhã, nos abrigos, as pessoas que conseguiram dormir foram acordadas cedo. Havia informações ditas no microfone sobre as deliberações públicas e as ações a serem executadas por eles. A Secretaria Municipal de Mobilidade Social (SEMAST) organizaria uma lista com todos os moradores que comprovassem residência no local. Quem havia perdido seus documentos no incêndio seria investigado para ver se de fato morava no lugar. Naquela situação de dor intensa, havia muitas pessoas de outros lugares da cidade que estavam instaladas nos abrigos fazendo-se passar por vítimas. Muitos foram denunciados pelos próprios moradores, que nunca haviam lhes visto antes. Como me

disse um menino na escola Maestro Miguel: “Mana, temos que cuidar! Lá dentro da

minha sala tem uma mulher que eu nunca vi na vida!! Eu conheço cada pessoa que morava

lá naquela área, e eu nunca vi aquela maluca....”, disse. Outra pessoa próxima também afirmou: “Nós temos que tomar cuidado, porque muita gente está querendo se passar por

desabrigado para ganhar casa, roupa e comida”, disse. Os amigos ao redor concordaram com eles. Todos ajudavam a fiscalizar uns aos outros. Eram todas vidas vulneráveis que competiam, afinal, uma casa estava em jogo. Naqueles primeiros dias, Governo e Município levaram aos abrigos os serviços de emissão de documentos, àqueles que tiveram RG56, CPF57 e certidão de nascimento queimados, e, posteriormente, haveria a

confecção da tão esperada lista para o recebimento de uma casa. Após a elaboração da

lista, investigada e “sancionada”, seriam liberados os aluguéis sociais para as pessoas

procurarem uma nova residência, até a concessão de uma casa pelo governo – o que também dependeria do nome na lista. Naquele momento, ver seu nome na lista era garantir a continuidade da própria existência, denotar um novo sentido para a vida das pessoas. O nome na lista oficial da SEMAST revela uma luta, uma resistência, o começo de um novo cotidiano, dando partida a novas formas de subjetividade, que em tese vai

56 Registro Geral (RG) é uma carteira de identidade nacional que todo cidadão brasileiro deve ter para

identificação oficial. É um documento de identificação civil emitido pelos órgãos de segurança dos estados da federação brasileira e distrito federal a qual o cidadão pertence. Contém as informações de identificação pessoal (nome, sobrenome, filiação e data de nascimento) de seu portador.

57 Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) é um registro do cidadão na Receita Federal do Brasil. Todo cidadão

impor novas ocupações de espaço, novos pertencimentos sociais, outras práticas cotidianas, outras significações e ressignificações para um passado que é presente.

Muitas famílias estavam divididas em abrigos diferentes, como dona Fernandes, que estava no Avertino Ramos, e seus filhos nas escolas do Bairro Perpétuo Socorro. Fernandes não sabia onde estavam suas amigas. Perguntou-me sobre Maria de Jesus, mas ninguém sabia do paradeiro dela. Havia até rumores de que ela teria morrido queimada... Na escola Maestro Miguel e na escola Mario Andreazza (pude acessar a três dos abrigos: Ginásio Avertino Ramos, Escola Mario Andreazza e Escola Maestro Miguel, mas permaneci mais tempo no ginásio e na escola Mario Andrezza porque a maioria de meus interlocutores estava nestes abrigos) as pessoas eram destinadas a salas de aula. Os espaços do pátio das escolas eram ocupados para pequenas caminhadas – já que eles não podiam sair por muito tempo dos abrigos –, para pequenas rodas de conversa, e para os momentos de café, almoço e jantar. Normalmente as pessoas permaneciam dentro de salas de aula, agarradas aos seus parcos pertences. Alguns cachorros ficavam nas portas das salas, presos a cordinhas, com um copo de água ao lado e um pedaço de cachorro-quente. Eles estavam com seus donos. Quando alguém ia ao banheiro, outra pessoa da família,

um amigo ou um vizinho “reparava” (cuidava) os pertences da pessoa e seu animal de

estimação. Estes fatos mostram como o evento crítico reverbera no novo e transitório cotidiano. Ter que atar seu animal de estimação a uma porta, ficar grudado aos seus pertences, dividir uma sala de aula com outras pessoas, comer o que lhes dão e não o que se tem vontade, são formas de violência sofrida. Não deixar levarem seus objetos, o

revezamento quase militar aos pertences, o “olho por olho, dente por dente” sobre o nome

na lista, as reclamações frente à qualidade da comida, a demora na liberação dos aluguéis sociais, são pequeninas formas de resistência que se ratificam em formas de reabitar um cotidiano em transitoriedade.

As famílias de “certas condições”, como a de dona Maria de Jesus, foram para a

casa de parentes sem precisar ficar nos abrigos (por isso as pessoas não a viram e pensaram que ela havia morrido queimada). Naquele dia, ter um parente onde se pudesse passar a noite ou os próximos dias era um grande poder simbólico (BOURDIEU, 2007),

que representava “condições”, “dinheiro”, “importância”, “consideração”, e “dignidade”.

A família de Maria de Jesus comprovou a residência no local porque tinha suas contas de luz regularizadas, então a própria Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA) lhes deu o comprovante. A situação dificultou para as pessoas que viviam totalmente na informalidade. Estas dependeram de investigações e depoimentos de vizinhos, gerando

nos investigados sentimentos de humilhação, raiva, ódio e ressentimentos que foram processados no cotidiano instalado nos abrigos e escolas pós-evento crítico, com a sociabilidade reconstruída em torno da tragédia e de sentimentos de indignidade.

Logo, a tal lista foi o assunto mais falado da semana, gerou medos, expectativas,

sonhos. Todas as pessoas com quem eu conversava me diziam a mesma coisa: “agora vamos esperar o que vai acontecer”, “estamos aguardando para ver o que o governo vai dizer”, “tomara que o governo nos dê uma casinha”, “a senhora é do governo??”, “Vamos escutar! Agora eles vão falar no microfone!”, “e essa lista que não sai?!”, falas que

exacerbam o controle que o Estado tem sobre identidades, burocracias e pertencimentos.

Ele, “O Estado”, age como se fosse o valor mais importante e sente-se acima da vida do

ser humano. Há, nestas falas, revelações de imposições da ordem social, ou, como escreveu Lacan, uma espécie de criminalidade da ordem social (DAS, 2011), envelopada

em “ajudar as vítimas” e esconder/omitir habitações impróprias, direito à cidade, ao seu

centro e à moradia, e direito aos bens de consumo. As pessoas ficaram, por uns dias, aparentemente, submissas ao Estado, porque ainda pensavam em como resgatar sua honra e sua dignidade. Nestes dias subsequentes, enquanto a lista estava sendo investigada, as pessoas ficavam nos abrigos, não queriam sair deles para não perder nada, muito menos o nome na documentação oficial dos órgãos públicos. Assim como Bourdieu, eles também sabem que o Estado detém a legitimidade da força física e simbólica (2014), então ali havia um jogo de verdades (FOUCAULT, 2006), com uma encenação de submissão.

As pessoas que não moravam na baixada não podiam entrar nos abrigos. Eu conseguia entrar porque provei que estava fazendo uma pesquisa com os moradores, então me deixavam entrar alguns minutos por dia. Tempo que sempre burlei e acabava ficando em torno de uma hora em cada abrigo, até me pedirem para sair. Nestes dias as pessoas assistiam a filmes nos telões – muitos de animação para as crianças, os telejornais eram

transmitidos ao vivo, para que eles “se vissem” na televisão, o que sempre gerava uma expectativa enorme. Todos queriam aparecer na televisão ou conceder entrevista “para a internet”. Quando eu entrava nos abrigos, a primeira coisa que ouvia: “Professora, a senhora me viu na televisão?”, “ontem dei entrevista pra internet”, ou, como me choramingou Fernandes: “Poxa, professora, eu também quero aparecer na internet”. “Aparecer” significava existir.

Local onde era a “parte da frente”, pelo acesso da rua Ana Nery. Foto: Roberta Scheibe

Entrada via Pedro Américo. Estas foram as únicas casas que não foram afetadas pelo incêndio, porém foram destruídas pelos bombeiros para impedir que o fogo se alastrasse. Foto: Roberta

Às 19 horas, momento do jornal local da retransmissora da Rede Globo, tudo

parava. Eles não prestavam mais atenção em nada, nem conversavam. “Vamos ouvir e ver o que vai dar!”. Em outro momento, presenciei a filha de Zirma, Cloé, ligando para o

seu pai que estava morando no interior do Pará. Ele havia lhe dito que tinha visto uma

matéria no SBT sobre o incêndio. E ela, explicativa, lhe disse: “Pai, mas tá dando direto, agora a Globo tá aqui ao vivo, vamos ver se apareceremos”! Logo, “aparecer” seja na TV,