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CAPÍTULO 2 – Tem algo queimando: A dor e o sofrimento social de um evento

4. O sofrimento social e as resistências nas relações com o Estado

4.3 A dor do esquecimento de uma vida infame

Seu Barreto me liga quase chorando e pede que eu vá encontrá-lo. Ele descobriu um casal de velhinhos, de 77 e 78 anos que sobreviviam sem aluguel social, nem casa, nem kit, nem cesta básica nem nada. A senhora, Ângela, já teve um AVC dentro da baixada e já estava acamada. No entanto, no final de 2013, teve outro. Já era fevereiro de 2014. Amigos se reuniram para pagar um aluguel para eles.

Cheguei à casa do casal e seu Barreto falava e chorava de ódio e pena. Seu Barreto tem 53 anos e é um homem muito bonito. Corpo definido, cabelo grisalho e barba bem aparada. Deve ter aproximadamente 1,75 de altura. Ele havia sido escolhido como representante dos moradores para resolver estes casos de pendências com o poder público, e ajudava a todos que lhe pedissem. Ele chorava de raiva. Os velhinhos estavam em casa. A casa era alugada e tinha somente tijolos e o cimento. Ainda não estava acabada. Não havia nem a massa e muito menos a pintura. Na frente estava toda suja. Fui recebida pelo senhor, seu José. Recebeu-me com um sorriso e se desculpou por não conseguir falar

direito: “No dia do incêndio eu caí na ponte, bati a boca no chão, cortei toda a gengiva e perdi minha dentadura”, e sorriu, sem nenhum dente. Ele levou a mim e seu Barreto para

um quartinho de 2X2 onde estava dona Ângela, 78 anos, com todo o lado direito do corpo paralisado. Uma filha vinda de Belém lhe ajudava a levantar a cabeça. A senhora estava nua, coberta apenas com um paninho – porque chegamos – em frente a um ventilador. Dona Ângela me olhou e começou a chorar. Acho que ela pensou que eu era do governo. Meu coração apertava muito nessa hora. Muitas pessoas, no início, ou na primeira vez

que me viam, pensavam que eu era do governo. “Não precisa chorar mãe”, disse a filha.

Nunca vou me esquecer como dona Ângela me olhava. Ela quase não conseguia falar.

Chorava, sem dentes, me implorando ajuda. Seu Barreto saiu do quarto para chorar. “Oi Dona Ângela... nós vamos tentar ajudar a senhora... não precisa chorar”... Ela chorava,

me olhava, pegava na minha mão, beijava e chorava.

No dia do incêndio eles perderam tudo, inclusive todos os documentos. E como são velhinhos, não conseguem andar para sair de casa e tirar novos documentos de identidade e CPF, nem como averiguar a documentação da casa. A princípio ninguém havia informado sobre o caso para os órgãos públicos, nem seu Barreto sabia da história. Falta muita informação para os filhos do casal, que não sabiam como proceder. Seu Barreto estava muito revoltado com o descaso. Ele tremia e dizia que enquanto vivesse tentaria ajudar estas pessoas vitimadas pela tragédia. Ele não tinha almoçado, já eram mais de

15h. Ligou para a produção do GB, um novo programa com ênfase policial que também é veiculado pelo canal 16 em Macapá.

Enquanto esperávamos a reportagem do programa, deixamos dona Ângela deitada. Tentamos fazer com que ela dormisse, embora a filha nos dissesse que ela passa o dia e a

noite tentando se levantar. “Tem horas que ela tá boa, conversa, fala com sentido. Mas

tem horas que ela fala com a mãe, o pai, os irmãos... todos já estão mortos... ela tá

variando”, diz a filha, que final do mês terá que voltar para Belém para cuidar dos seus

filhos.

Enquanto tomávamos um café, eles me contavam o quanto a vida estava sendo difícil nos últimos dias. Liguei para o Ronaldo, técnico em enfermagem do posto de saúde e filho de dona Maria de Jesus. Pedi para que ele passasse para vê-la, auferisse sua pressão, levasse um médico, enfim. Ele me prometeu e de fato, no outro dia, foi até a casa dela (e me ligou de lá falando sobre a consulta médica).

Nisso chegou o carro da marca uno mille cor de uva do programa do GB. O repórter e o cinegrafista. Os vizinhos já apareceram lá fora. A reportagem contava a história de

“descaso do governo com os moradores” e contou de forma “espreme que sai sangue” a

vida de Ângela. Eu, como jornalista, sempre fui contra esse tipo de reportagem. Mas pela primeira vez na vida estava concordando com o teor dela, pois eles estavam apelando, negociando, fazendo alianças. Os canais sensacionalistas sugavam suas histórias, mas eram somente eles que iam até lá para ouvi-las. Algumas eram manipuladas, outras não; no entanto, era a forma de negociação que eles (moradores) tinham para atingir o governo, já que o programa de televisão criticava o Governo do Estado em todas as edições.

Enquanto isso, outras pessoas vinham querer “fazer uma denúncia”, para os repórteres.

Toda a vizinhança tinha algo a reclamar, como a senhora loira que veio dizer que seu filho estava sofrendo preconceito pela secretaria municipal de trânsito que o havia multado. Logo, são eles que dão atenção para pessoas que vivem em constante drama e sofrimento. Seu Barreto também ligou para a assessoria de uma deputada, de oposição ao governo. Ela prometeu intervir para agilizar a documentação para a liberação do aluguel e das cestas básicas para o casal. Pediu fotos e provas do lugar insalubre em que estavam. E a matéria policial utilizou-se do sofrimento dos idosos para criticar o descaso do governo. Após a matéria, eles receberam doações da população e ela recebeu assistência médica. Alguns meses depois dona Ângela morreu, vítima de outro AVC, e vítima da falta de consideração, da incredulidade das pessoas, sem receber o aluguel social. Dona Ângela teve uma vida infame (FOUCAULT, 1992).

Próximo dali a esposa de Barreto, Argia, morria de falta de consideração. Dentro de sua própria casa, Barreto tentava, mas não conseguia, ajudar a sua esposa. Ela ficava quieta, triste. Não tinha mais clientes para fazer seu trabalho de costureira, sua razão de viver. Seus amigos não a visitavam mais, pelo difícil acesso de sua residência. Logo, padecia de solidão, de falta de estima. Não tinha a quem ensinar seu grande conhecimento sobre ervas, sua aptidão para a limpeza do trabalho doméstico de que muito se orgulhava.

“A agente de saúde sempre que entrava na minha casa dizia: ‘Na casa de dona Argia é sempre tudo limpiiiiinho, limpiiiiinho”. Dona Argia encontrou em mim, em nossos

poucos momentos, alguém que a ouvisse. Era seu ato testemunhal (DAS, 2007, 2011), seu ato de resistência. Ela me contava toda sua infância, na ilha de Chaves, interior do Pará. Toda a dificuldade de perder sua mãe ainda criança, ser criada por um pai muito

rígido, fazer todo o trabalho de casa. “Eu ariava panela com areia. Ficava limpiiiiinho”.

Sempre dizia a frase final com muito orgulho. Depois me contou sua quase morte ao ser

mordida por uma arraia, sua primeira e única “visagem”, como se refere a ver um espírito,

o que lhe impôs respeito e devoção a Deus. Contou-me de seus profundos conhecimentos sobre ervas medicinais e seu amor pela limpeza. Naquele dia ela estava sentada no chão

de sua casa, corpo longevo, esguio, unhas pintadas de “Brasil” (já estávamos em período

de Copa do Mundo). Ela sorria e me contava sua vida. Seu maior prazer da vida era trabalhar e sentir-se útil. Alguns dias depois sua casa foi assaltada e levaram-lhes os poucos móveis que tinham. Numa noite quente, deitada na rede, poucos dias depois de nossa primeira longa entrevista, e de muitos encontros anteriores, dona Argia teve seu segundo AVC. Levaram ela de bicicleta até a rua principal do Bairro Perpétuo Socorro e de lá de táxi até o hospital. Desde então, seu Barreto tomava banho na casa de amigos e passava dia e noite no hospital com sua “Dona Argia”, como ele chamava. “Nem minha

barba eu aparo mais”, disse-me numa tarde de sol a pino, em frente ao pronto socorro,

chorando, quando me chamou para dizer que era só esperar “Deus chamar dona Argia”, pois ela tinha acabado de ter morte cerebral. Os filhos de Dona Argia também zelavam pela mãe. Como ela estava no pronto socorro, na UTI61, seu Barreto e os filhos passavam o dia no calor ou até no sol, encostados no muro do pronto socorro de Macapá. Argia morreu dias depois, no hospital público de Macapá, sob a presença do agora desgrenhado e barbudo seu Barreto, que viu a tragédia bater à sua porta. Ele que havia ajudado tantas

pessoas, não conseguiu salvar sua esposa (como ele me disse: “Eu arrumei até doação de

61 Unidade de Terapia Intensiva (UTI) é um termo que significa uma unidade de monitoramento em

políticos para fretar um helicóptero-ambulância para levá-la para Belém. Mas o médico

disse que ela já teve morte cerebral”). Ela, católica, foi velada numa humilde sede da

igreja evangélica do Avivamento, por um único motivo: era em frente à baixada, no outro lado da rua do Casa Estrela, de onde dona Argia nunca quis, de fato, sair.

Na experiência coletiva, Ângela e Argia mostram o trauma individual levado ao extremo do sofrimento social, que causa doenças, dores na alma e no corpo. A vida destas pessoas não deixa de ser uma espécie de símbolo do que aconteceu, porque relembram um sofrimento vivido por um grupo de duas mil pessoas. Ângela e Argia, além do trauma do evento crítico, sofreram mais porque foram esquecidas socialmente e moralmente. A subjetividade delas era ignorada e elas próprias as escondiam, liberando-as apenas à família e aos interlocutores que as ouvissem. É o que Veena Das chamou de violência que desce ao cotidiano (DAS, 2007, 2011), que é quando a violência é construída no cotidiano. Nestes dois casos, a violência simbólica já ocorria dentro da baixada, nas faltas de saneamento básico e necessidades básicas. Posterior ao evento crítico, desceu ao

cotidiano na “normalidade” do esquecimento para com estas pessoas, seja por parte do

Estado ou de suas relações sociais.