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CAPÍTULO 2 – Tem algo queimando: A dor e o sofrimento social de um evento

4. O sofrimento social e as resistências nas relações com o Estado

4.2 Vidas de famílias valem R$350,00?

Já no fim de semana dos dias 26 e 27 de outubro, Governo do Estado e Prefeitura Municipal decidiram pela liberação dos R$350,00 do aluguel social a todas as famílias vítimas do incêndio. Num primeiro momento todos receberiam o valor em dinheiro enquanto ocorria a investigação sobre quem estava fraudando informações. Caso houvesse casos positivos, estas pessoas seriam excluídas do aluguel social e da lista para o recebimento das casas. As pessoas seriam destinadas para os conjuntos habitacionais Macapaba (Na BR da zona norte, no Bairro Brasil Novo), no conjunto Oscar Santos (na zona norte, no Bairro Ipê), ou seja, há uns 15 quilômetros de seu antigo lugar de moradia, e ao conjunto habitacional São José, no centro da cidade. No entanto, Macapaba e Oscar Santos levariam seis meses para ficarem prontos, e o conjunto São José um ano ou mais, se as obras do PAC não atrasassem. Cada núcleo de família de 3 ou 4 pessoas receberam o valor, ou seja, pai e/ou mãe e filhos. No entanto, não era nem é possível juntar os valores para alugar uma grande casa unindo a grande família (pais, filhos, netos e suas famíilias) como era o caso da maioria na baixada. Logo, cada pequeno núcleo teria que alugar uma casa neste valor. A consequência foi a divisão de muitas grandes famílias espraiadas pela cidade de Macapá em imóveis alugados.

Após esta definição, os moradores esperaram a liberação do dinheiro do aluguel. Logo na segunda-feira, nos abrigos, começaram a procurar residências no Bairro Perpétuo Socorro. Mas poucos foram os felizardos em permanecer no bairro. A maioria que alugou

imóveis nas redondezas pertencia à antiga “parte da frente”, e os demais conseguiram

alugar pequenas casas em outros locais da cidade, incluindo outras áreas de ressaca, algumas no centro, outras longe dali. E enquanto o dinheiro não era liberado, as pessoas permaneciam nos abrigos.

A partir de quarta-feira as famílias esvaziaram os abrigos. A grande maioria das pessoas perderam seus telefones celulares. Muitos, na agonia, saíram para as casas alugadas e não passaram mais seus contatos. Com muitas destas pessoas eu perdi o contato, porque nos últimos dias eles impediram a entrada de todas as pessoas, inclusive a minha. Nas conversas, poucas pessoas diziam seus nomes verdadeiros ou completos, já que a maioria ali é conhecida apenas pelo apelido. Ao procurá-las pelo nome na lista, muitas vezes a casa não estava em seu nome, mas na de outra pessoa da família; ou seus nomes, como elas se revelaram, não estava lá. Desta maneira perdi o contato com Isaura, Zaíra, Maurília, Zoé, Anastácia e Eufêmia. Depois perambulei pelo bairro, perguntei a amigos, e ninguém mais soube delas.

As demais famílias foram se alocando. A família de dona Maria de Jesus inicialmente ficou em um quarto e sala no Perpétuo Socorro. Os outros filhos alugaram outras casas no Bairro Brasil Novo, bem longe de seu lugar de costume. Ela e a filha Isidora relatam momentos de humilhação, pois moravam no andar de cima de uma casa de madeira. Rodrigo, de 2 anos, não podia brincar, nem correr. E um dia fez xixi no chão e este pingou na casa debaixo. Pronto, foram convidadas a se retirar. Então conseguiram uma casa emprestada no Bairro Laguinho, próximo à secretaria de Comunicação do Estado. Uma casa grande, porém antiga e com alguns problemas de infiltração. Ali era o lugar de encontro de toda a grande família.

Argia e Barreto se mudaram para uma casinha nos confins do Bairro Cidade Nova. Um lugar de difícil acesso em função da quantidade de terra em períodos de seca; logo em período de chuva só dava para passar a pé, mesmo assim mergulhando os pés e pernas na lama. De um lado havia uma boca de fumo, onde os traficantes ficavam armados na rua. Para não passar por eles, era necessário dar uma volta de uns cinco quilômetros em meio à lama. Por pouco não atolei uma ecosport há 10 metros da casa deles, ou seja, só passavam carros grandes e olhe lá. Dor e resignação é o que eles viveram, depois de ver perdidas duas casas de altos e baixos na parte de trás da baixada, uma vez que Argia e Barreto cada um tinha sua casa. No decorrer dos anos, ela viúva, ele separado, resolveram namorar e juntar as casas. Fizeram um bar na casa de Barreto. Perderam tudo: móveis, eletrodomésticos do bar, e materiais de trabalho de seu Barreto, que é mestre de obras. Só os equipamentos dele estão avaliados em 15 mil reais. Perderam também o sentimento de dignidade e consideração, já que depois do incêndio não há mais roupas para dona Argia costurar, não há mais bar para ela cozinhar, servir e limpar – do que ela tem o maior orgulho –, não tem mais os materiais de Barreto. Eles estão num quadrado de madeira,

num lugar enfiado na lama. Dentro de casa uma pequenina televisão antiga, um móvel doado. Ao lado uma máquina de lavar e uma máquina de costura que seu Barreto comprou com um trabalho que fez. Há uma cozinha improvisada, sem móveis. As roupas estão

guardadas em trouxas e há dois colchões de solteiro no chão. Só. “A máquina de costura

eu comprei para Argia porque ela anda muito triste e depressiva. Já teve um AVC logo depois do incêndio de tanta tristeza, de tanto pensar no ocorrido. Ela pensa demais.

Comprei a máquina para ela fazer o que gosta”. Dona Argia tem a máquina e não tem

clientes. Ela está morrendo aos poucos de falta de consideração. Ela me olha e sorri, triste. Zirma alugou uma casa no Bairro Perpétuo Socorro, depois foi morar há 15 quilômetros no Cidade Nova, e meses depois regressou ao Perpétuo Socorro, sem

conseguir ficar longe de “seu lugar”. Ela mora num quarto e sala próximo à antiga Rua

Nações Unidas, atual José Tupinambá. Vitória e Maria estão nos arredores do centro da cidade. Fernandes, primeiro foi para um quartinho no Bairro do Laguinho, mas lá foi despejada porque seu aluguel social estava há mais de dois meses atrasado. Ela também não recebeu a cesta básica. Está morando em um quartinho em outro local do bairro, exatamente ao lado da baixada, num antigo ponto comercial. Ela divide o espaço, com um banheiro, com mais 2 famílias. Cada espaço de 2X2 é dividido com um pano. No lugar há muita sujeira, moscas e mau-cheiro. Eu conheci o lugar. Fernandes estava com problemas de visão e esperando a cirurgia para curar-se da catarata nos dois olhos. Dias depois de minha visita eles tiveram que sair deste segundo lugar porque o dono iria voltar a alugar o ponto para o comércio. Logo, Fernandes foi morar de favor na casa da irmã,

dividindo o quarto com as sobrinhas: “você sabe quando você tá sobrando, tá

atrapalhando e não tá no seu canto. O que eu mais quero agora é minha casa, porque lá

eu vou ser o rei”, me disse Fernandes, no dia em que voltou da Secretaria de Mobilidade

Social, quando foi verificar a situação da lista.

Muitas pessoas relatam as dificuldades neste período. Dona Maria de Jesus passou mal, foi ao hospital com crise de asma e de rins. Quando se mudou para uma casa no Bairro do Laguinho, vivendo do aluguel social, ela me disse:

Mas eu vou te falar uma coisa, aqui mesmo, com esse aluguel social... é tão pouquinho, que a pessoa que não tem emprego, que não trabalha né... tem esses negócios de reparar carro, de trabalhar de diarista... essas pessoas, Roberta, tão passando fome! Até que roupa não, teve muita

doação de roupa. Teve roupa, roupa, roupa, roupa, roupa... de tudo quanto era bairro chegava roupa para essas escolas aí... Foi assim... mas falta comida agora... E as cestas, eles deram pelo Natal... Eu que sou curiosa também fui lá na secretaria do governo... Falei assim: ‘Olha, as minhas noras, nenhuma, ainda receberam as cestas de Natal...’. O cara disse: ‘O que dona Maria de Jesus?’. Eu disse: ‘Nenhuma!’. Aí ele puxou a agenda e tava tudinho o nome das meninas... todinhas! Só a minha que não tava lá porque tinham me entregue.

No período de novembro de 2013 até março de 2014, até as primeiras 100 famílias mudarem-se para o conjunto Oscar Santos, ocorreu entrega do aluguel social e de cestas básicas. Para as outras 150 famílias que esperaram até final de 2014, algumas até setembro de 2015, e umas 20 famílias que não receberam suas casas em 2016, o período foi e é de duras penas. Poucas famílias, segundo relatos, receberam as cestas básicas prometidas no Natal e no Ano Novo de 2013. As demais não receberam cestas, e os aluguéis sociais atrasavam constantemente, fazendo com que muitas famílias, como a de Remo, tivessem que pagar o valor do aluguel trabalhando para as famílias que lhes alugavam casas. “A gente tá morando numa vila no bairro das Pedrinhas. Estamos

lavando a vila em troca de moradia, porque o aluguel social está atrasado”, me disse Remo

em uma reunião dos moradores afetados pelo incêndio. Os moradores viveram meses escravizando-se, rebaixando-se ao sistema, aos grupos dominantes e àqueles que almejam somente lucros e se esqueciam do direito à cidade e, sobretudo aos direitos humanos daquelas pessoas que viviam em meio a um sofrimento social e ao tão repetido sentimento e/ou condição de humilhação. Outro exemplo é o de Fernandes, que morava num lugar insalubre, um estabelecimento comercial improvisado para ela e outras famílias: “Olha professora, todo mundo morava aqui. Dividia o mesmo banheiro. Era moleque que não era brincadeira. Mas ele (marido da sobrinha de Fernandes) me botou ali porque sabe

como é, sou parente”. Ela continua me contando: “mas ele pediu pro povo sair porque,

sabe como é né professora, três meses sem receber aluguel é complicado. Eu pendurava minhas roupas aí nesse negócio (Um móvel de escritório simples). O Governo tá fazendo

muita sacanagem, a pessoa três meses sem receber...”. O cachorro de Fernandes, salvo no

incêndio, passou a morar na rua, pois ela não podia colocá-lo dentro de casa (alguns meses

depois ele faleceu de desnutrição, anemia e virose). “O banheiro era aqui fora, tinha que

com o pessoal que morava aqui. Ela (a vizinha) dividiu a nossa casa com um balcão e ela

colocou a tv no meio, dai eu podia enxergar a TV também”. No outro lado da sala

comercial havia mais uma família num espaço de 2X2 metros quadrados. A eles apenas chegava o som da televisão. Este caso específico das humilhações relatadas pelos moradores, há um sentimento de impotência perante o outro. Segundo Ansart (2005), a humilhação se enquadra a uma situação de relações entre atores. Um é sempre mais forte do que o outro, física ou simbolicamente. Se esta influência que ofende, agride, machuca o outro, for provisória, ou vivida por um momento, ela pode ser reparada através de uma resposta. Mas os casos extremos são como os vividos pelas pessoas que perderam suas casas e precisavam aceitar as condições e os modos de influência do Estado. Neste caso, a humilhação não é reparada, logo, é deveras desigual, fruto de coação, é “experiência de

impotência” (ANSART, 2005, P.15). Desta forma, humilhação é uma situação que revela

um sofrimento, cujo humilhado sente-se inferior, com o orgulho ferido, sensação de amargor, tristeza, tendo sua imagem e seus valores dilacerados e desrespeitados. Ou seja, é uma situação de sentimento de falta de respeito. A estas humilhações que não são reparadas, Ansart incorpora o conceito de “humilhações sociopolíticas” (ANSART, 2005, p.16), onde há, além destes sentimentos e situações, relações de poder, coação e imposições de violências simbólicas por poderosos para dominados. Estes casos de humilhações sociopolíticas são vividas conjuntamente por grupos afetados por situações específicas de disparidade social, como é o caso de quem perdeu sua casa no incêndio da Baixada Perpétuo Socorro, que, além do sofrimento social do evento crítico ocorrido, experienciam os olhares de reprovação dos outros, resultado de representações que

reforçam preconceitos e sentimentos de intolerância e humilhação. Esta “humilhação coletiva” (ANSART, 2005, p.17) transformou-se em memórias, silêncios e resistências.

Para entendê-las, é necessário, segundo o autor, repensar a situação vivida por estas pessoas frente aos afetos e, invariavelmente, seus pertencimentos. Para Decco (2005, p.106), a humilhação não é um sentimento, mas uma conduta de rebaixamento. Mas, para estas pessoas, sentir-se humilhado é ser indigno, é sentir-se inferior, rebaixado, desrespeitado. É um efeito, uma sensação, um sentido, que afeta as pessoas na sua sujeição, nas suas práticas subjetivas, na sua honra. E, por enquanto, para eles, não se

vislumbra uma “cura” para este sentimento de impotência da humilhação forjada pelas

distâncias sociais e culturais entre quem executa (o Estado, as instituições formais incutidas nos mapas mentais das pessoas) e quem recebe a humilhação (pessoas sem casas, sem dinheiro, impotentes).