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Cena 2 (Canto III)

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 70-76)

3. O COTEJO POEMA DANTESCO E ILUSTRAÇÕES

3.2. A técnica de Sandro Botticelli da representação do poema dantesco: a

3.2.2. Cena 2 (Canto III)

Da mesma forma com foi realizado no canto I, a análise do canto III terá início com um breve resumo sobre ele, seguido da análise das ilustrações de Botticelli para este canto e o cotejamento entre os dois.

É possível verificar que o canto III começa com a chegada dos dois poetas, Dante e Virgílio, à entrada do Inferno. A partir da visão do portal do Inferno, Dante introduz suas primeiras impressões sobre o que vê e é reconfortado pelo seu guia. É neste canto que Dante, personagem, e não mais autor, passa a ver os danados, e aqui ele vê os danados que não praticaram o Mal, mas que também não optaram completamente pelo Bem. Desta maneira, esses danados são condenados e tem como castigo o fato de serem picados por nuvens de vespas e obrigados a correr sem parar.

É também neste canto que Dante e Virgílio encontram-se com Caronte36, o barqueiro do mundo dos mortos, o qual transporta os danados de uma margem a outra do rio Aqueronte, enveredando-os as suas punições. Convém salientar que Caronte aparece deformado, no sentido de que se tornou um demônio, o primeiro demônio do Inferno, que se realiza ameaçando as almas que chegam para pagarem por suas condenações. Este canto acaba no momento em que ocorre um terremoto e Dante desmaia, como se estivesse em um sono profundo.

Desta maneira, segue, em seguida, a análise das duas ilustrações de Botticelli sobre esse canto e o cotejamento com o trecho do poema. (Anexo 6.2 – Ilustrações 1 e 2, Canto III)

36 Figura mítica do mundo clássico.

Na primeira ilustração do canto III, é possível visualizar, primeiramente, um barqueiro em um rio, dentro de um barco e várias pessoas à margem desse rio. Dentre essas pessoas, que, na verdade, são as almas que acabaram de chegar ao inferno, estão Dante e seu guia, Virgílio. Convém acrescentar que, nesta primeira ilustração do canto III, há a utilização dos tons claro e escuro, que fornecem uma ideia tenebrosa para a ilustração.

Nessa ilustração, detalhando-a, é possível verificar que Dante e Virgílio se encontram na parte esquerda da imagem e, à frente deles, está o portal do inferno, onde se observa a escritura descrita por Dante, no poema. Dante está atrás de seu guia, com a mão direita semi elevada, olhando para a escritura do portal, apreensivo de entrar em um local desconhecido e Virgílio, com a mão esquerda levantada, como se estivesse

gesticulando, parece explicar a Dante o que ele irá encontrar no momento em que o poeta florentino atravessar o portal.

A figura segue em uma linha reta e eles aparecem já do outro lado do portal, quer dizer, ambos entraram, concretamente, no inferno. Deste modo, a ilustração apresenta os dois no centro da imagem e as almas aflitas que se contorcem estão, praticamente, ao redor deles, os quais estão à margem do rio Aqueronte. Dante aparece esguio, com sua mão esquerda encostada no rosto e, do seu lado esquerdo, aparece o rosto de Virgílio e seu braço esquerdo estendido em direção às almas, dispostas próximo a eles. Eles, na posição que estão, parecem conversar, esperando algo. As almas que aparecem no entorno estão nitidamente aflitas e aglomeradas, haja vista a contorção de seus corpos nus, a expressão de terror de seus rostos, com as testas franzidas, os olhos apertados, seus cabelos desgrenhados, bocas abertas, como se gritassem.

Na sequência dessa ilustração, observa-se ainda uma terceira aparição de Dante e Virgílio, os quais estão no canto direito da ilustração, onde se nota a presença de Dante, de perfil esquerdo, mais próxima da margem do rio e Virgílio do seu lado direito. Verifica-se também a presença de uma alma que está jogada aos pés de Dante, ajoelhada a seus pés, com a cabeça encostada em seu antebraço esquerdo, em uma posição de súplica ou de pedido de perdão. Dante está com a mão direita estendida sobre o peito e a esquerda abaixo do queixo, o que dá a percepção de que ele está surpreso com a atitude desta alma jogada a seus pés.

Próximo a esta última aparição de Dante e Virgílio, está o barqueiro, Caronte, sentado em seu barco, que navega no sentido da esquerda para a direita da imagem. Ele leva nas mãos seus dois remos, segurando-os com firmeza, uma vez que suas mãos estão cerradas. Seu corpo é completamente peludo, possuindo uma cabeça monstruosa e uma grande barba. Normalmente, o que a figura alegórica do barqueiro simboliza é a travessia e, neste caso, é ele quem transporta as almas condenadas para a outra margem do rio.

Essa primeira ilustração do canto três caracteriza-se por um equilíbrio harmônico entre as figuras presentes nela, apesar dela ser assimétrica. Ela é complexa devido à episodicidade presente, já que há uma profusão dos personagens. É possível dizer que, devido ao movimento dados aos personagens, existe também uma atividade na imagem, não exagerada. Outro fato relevante é que há a profundidade da imagem, o que coloca a figura do barqueiro em ênfase. A utilização dos tons claro-escuro favorece

o entendimento da ilustração, uma vez que os tons claros iluminam a parte escura, que dá a sensação tenebrosa do inferno, para o observador que a percebe.

Posteriormente a essa ilustração, em seguida, Botticelli faz outra, que é, basicamente, a visão ao contrário do que foi relatado na primeira ilustração deste canto, é um olhar sob outra perspectiva. Nela, observa-se agora que a cena ocorre da direita para a esquerda, sendo assim, Dante e Virgílio estão no canto direito da ilustração, diante do portal do inferno, mas ainda do lado de fora. Percebe-se que Virgílio, com a mão direita estendida para cima, mostra a escritura do portal para Dante, que a olha, uma vez que seus olhos estão na direção do portal.

A segunda aparição deles é depois do portal, em que Virgílio aparece com o braço direito estendido para frente e o rosto voltado para Dante que se encontra do seu lado esquerdo, com a mão esquerda levantada, na altura do queixo. Virgílio parece mostrar algo que está à frente deles a Dante, provavelmente, as almas, que na imagem estão à frente deles. As almas, nesta segunda ilustração, estão dispostas no fundo da imagem, com seus corpos contorcidos e nus, entretanto é mais difícil de verificar tantos detalhes dos rostos dessas almas. Percebe-se nitidamente que elas estão aglomeradas, contudo seus semblantes não estão tão próximos para que se possa fazer uma descrição mais minuciosa a respeito delas.

Nesta última aparição de Dante e Virgílio, ambos aparecem de costas. Dante está com a cabeça virada para o rio, que passa ao seu lado esquerdo, olhando para as almas que estão mergulhadas na água. Virgílio está localizado ao lado esquerdo de Dante, com o dorso da mão esquerda apoiado no ombro direito de Dante. Aos pés de Dante é possível observar uma alma caída, com o rosto apoiado sobre o braço esquerdo, como se chorasse. Ao seu lado, no rio, verifica-se uma grande quantidade de almas mergulhadas na água e o barco do barqueiro, que está dentro dele, com os remos nas mãos, contudo, é extremamente difícil identificar as características dele.

Essa segunda ilustração caracteriza-se pela instabilidade da imagem, assimetria, irregularidade e complexidade, que se dão devido à profusão dos personagens. Há uma profundidade nela, onde é possível observar a justaposição de vários personagens ao fundo, que são as almas amontoadas. Diferentemente da outra imagem, esta é um pouco distorcida e difusa, sendo que a utilização dos tons claro-escuro faz com que não fique tão distorcida.

Para o cotejamento do canto III, seguirão, abaixo, os trechos selecionados. Em anexo segue a versão completa deste canto. (Anexo 6.1 – Canto III)

3 6 9 12 72 75

«Per me si va ne la città dolente, per me si va ne l’etterno dolore, per me si va tra la perduta gente.

Giustizia mosse il mio alto fattore; fecemi la divina potestate,

la somma sapienza e ’l primo amore.

Dinanzi a me non fuor cose create se non etterne, e io etterna duro. Lasciate ogne speranza voi ch’intrate.»

Queste parole di colore oscuro

vid’io scritte al sommo d’una porta; per ch’io: «Maestro, il senso lor m’è duro. [...]

E poi ch’a riguardar oltre mi diedi,

vidi genti a la riva d’un gran fiume; per ch’io dissi: «Maestro, or mi concedi

ch’i’ sappia quali sono, e qual costume

le fa di trapassar parer sí pronte, com’ i’ discerno per lo fioco lume.»

Ed elli a me: «Le cose ti fier conte quando noi fermerem li nostri passi

78 81 84 87 90 93 96

su la trista riviera d’Acheronte.»

Allor con li occhi vergognosi e bassi, tremendo no ’l mio dir li fosse grave, infino al fiume del parlar mi trassi.

Ed ecco verso noi venir per nave un vecchio, bianco per antico pelo, gridando: «Guai a voi, anime parve!

Non isperate veder lo cielo:

i’ vegno per menarvi a l’altra riva ne le tenebre etterne, in caldo e ’n gelo.

E tu che se’ costí, anima viva,

pàrtiti da cotesti che son morti.» Ma poi che vide ch’io non mi partiva,

disse: «Per altra via, per altri porti verrai a piaggia, non qui, per passare: piú lieve legno convien che ti porti.»

E ’l duca lui: «Caron, non ti crusciare:

vuolsi cosí colà dove si puote

ciò che si vuole, e piú non dimandare.»

Com o fim de realizar a comparação entre o canto III, do poema dantesco, e a ilustração de Botticelli referente a esse canto, observa-se, nos versos de 1 a 9, que Dante inicia esse canto com a descrição da inscrição do portal do inferno. Tal escritura é

bastante intensa em suas palavras, tanto que, nos versos de 10 a 12, Dante, já personagem, comenta com seu guia, Virgílio, que o sentido daquelas palavras é duro para ele. Na ilustração de Botticelli para essa passagem, pode ser verificada a presença do portal do inferno, com as escrituras, entretanto, não é possível ler tudo que está descrito no poema, uma vez que o ilustrador optou por não escrever tudo. Percebe-se que Dante e Virgílio estão localizados, em um primeiro momento, de frente para o portal, como se estivessem lendo a placa com as escrituras. É possível notar também que, na primeira ilustração desse canto, Botticelli utilizou-se bastante do recurso de claro e escuro, com o intuito de diferenciar, principalmente, a parte do fundo da imagem, o que leva a percepção deste inferno escuro e tenebroso.

A partir dos versos 70 até 96, Dante descreve aquilo que vê assim que passa pelo portal. Ele vê muitas almas à beira de um rio e segue conversando com Virgílio. Logo em seguida, ele vê se aproximar uma barca, guiada por um velho, branco, que vinha gritando, chamando as almas que ele atravessaria para o outro lado do rio Aqueronte. Botticelli, em suas obras retrata as almas contorcidas, sofrendo e também o barqueiro, Caronte, dentro de seu barco. A cena descreve, detalhadamente, os passos dados por Dante e Virgílio, porém, a primeira ilustração é mais nítida do que a segunda, apresentando muitos contrastes de claro e escuro. O recurso utilizado por Botticelli, na segunda ilustração desse canto, é muito inteligente, visto que ele apresenta outra perspectiva de uma mesma cena, o que faz com que se veja tudo de forma diferente.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 70-76)