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Cena 3 (Canto VIII)

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 76-84)

3. O COTEJO POEMA DANTESCO E ILUSTRAÇÕES

3.2. A técnica de Sandro Botticelli da representação do poema dantesco: a

3.2.3. Cena 3 (Canto VIII)

Para que se torne mais compreensível o entendimento do canto VIII, seguirá um pequeno resumo sobre o que ocorre em todo esse canto e, na sequência, será feita a análise da ilustração de Botticelli, referente a esse canto, e a comparação entre o texto literário e a ilustração.

Assim sendo, no canto VIII, Dante e Virgílio estão à beira do rio Estige, no quinto círculo infernal, local em que se localizam os iracundos, e embaixo de uma alta torre, de onde conseguem ver outra torre distante, sendo que entre essas torres é descrita uma troca de sinais luminosos. Esses sinais luminosos têm por função avisar ao

barqueiro Flégias37 que está no momento de ele vir buscar as almas dos danados para atravessá-las de uma margem à outra do rio.

Dante e Virgílio entram na barca e, enquanto estão sendo atravessados para a outra margem do pântano, encontram um espírito inimigo de Dante, chamado Filippo Argenti. Este tenta atacá-lo, em vão, sendo, então, maltratado pelas outras almas que o acompanhavam, fato que deixou Dante, de certa forma, contente, visto que, em vida, ele era seu oponente político, pertencendo à facção dos Neri, conforme mencionado no capítulo 1.

Quando chegam a outra margem do pântano, eles desembarcam às portas da cidade de Dite, que é a cidade infernal, e encontram vários demônios parados, impedindo-lhes a entrada, acontecimento que acarretou certa perturbação em Dante, que entrou em pânico ao vê-los. Entretanto, Virgílio sabia que um mensageiro celeste chegaria para ajudá-los a entrar na cidade.

A partir deste breve resumo sobre o canto VIII, se iniciará a análise da ilustração referente a ele. (Anexo 6.2 – Ilustração, Canto VIII)

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Personagem mitológico, filho de Marte e de Crise. Dante o transforma no símbolo de um impulso cego de vingança.

Assim, observa-se uma narrativa imagística bastante delineada, começando da parte superior direita da imagem e seguindo por ela, quase que transversalmente, até a parte inferior esquerda da ilustração. Dante e Virgílio aparecem constantemente em cada etapa deste percurso, fazendo uma descrição pontual dos acontecimentos citados no poema dantesco.

A rigor, duas torres podem ser verificadas, as da cidade de Dite. Em uma delas, a que está mais à frente da imagem, nota-se duas tochas em seu topo e, em duas janelas, o rosto de duas almas, uma em cada janela, que estão em chamas. Seus rostos demonstram dor, pois estão com suas bocas abertas, a testa franzida e um olhar quase que perdido para o horizonte. Já na outra torre, é possível notar que uma das almas está com duas tochas nas mãos, com um semblante feliz, uma vez que está sorrindo.

Como dito anteriormente, Dante e Virgílio aparecem constantemente nesta ilustração e, em sua primeira aparição, eles estão na parte superior direita da imagem, juntos, Dante com o braço esquerdo levantado, na altura do seu peito, e o outro na altura do seu ombro. Virgílio aparece com sua mão esquerda também levantada, na altura do ombro, e segura, com a mão direita, sua túnica. Ambos gesticulam como se conversassem enquanto percorrem o caminho.

Na segunda aparição, Virgílio, à frente de Dante, com o braço direito elevado a uma altura acima de sua cabeça, mostra a Dante as torres da cidade. Ambos estão olhando na direção do topo das torres e Dante aparenta estar impressionado, visto que está boquiaberto. Seguindo o caminho que traçaram para percorrer, chegaram à margem do rio Estige.

Esta é a terceira aparição deles na descrição imagística. À margem do rio, eles observam que o rio está repleto de almas que sofrem, pagando por seus pecados, com seus corpos nus, contorcidos na água. È possível observar uma série de fatores que levam a entender o sofrimento que estão sentindo, já que existem corpos imersos até o pescoço, com o rosto para o lado de fora da água, olhando na direção de Dante e Virgílio, outros estão com as mãos na cabeça, puxando seus cabelos, com um semblante bastante aflito e outro ainda com o dorso para fora da água, com a boca aberta, como se estivesse gritando, olhando para cima, demonstrando uma enorme dor. Na água, além de todos esses corpos, nota-se a presença de um barqueiro, Flégias, cuja função é atravessar as almas que irão para a cidade de Dite. A partir disto, observa-se que

Virgílio, inclinado para frente, à frente de Dante, com sua mão direita segurando a túnica e a esquerda na direção do barco, parece falar com Flégias. Dante aparece na ilustração à retaguarda de seu guia, com ambas as mãos na altura do peito e parece estar esperando que ele fale com o barqueiro. Flégias, em seu barco, olha na direção de Virgílio, segurando com a mão esquerda seu remo e a direita está elevada na direção de Virgílio. O barqueiro tem uma aparência monstruosa, com o corpo de homem, mas com asas que parecem de morcegos e chifres.

A quarta aparição de Dante e Virgílio na ilustração pode ser observada dentro do barco de Flégias. Virgílio, aqui, aparece duas vezes, em uma ele parece estar empurrando uma alma para soltar o barco e na outra ele está abraçado a Dante. Esta alma que está dependurada no barco, o segura com as duas mãos. Ele está de boca aberta como quem estivesse falando com eles no barco. Virgílio está totalmente inclinado, com os braços para fora do barco, com as mãos encostadas nos braços dessa alma, que é Filippo Argenti, inimigo de Dante em vida. Nesta outra aparição, em que eles estão abraçados, ambos estão sentados dentro do barco e Virgílio está com seus braços ao redor do pescoço de Dante, como quem o estivesse acalmando do susto de encontrar seu inimigo. Enquanto isto, Flégias está sentado, com os remos nas mãos, de costas para eles, olhando de perfil para o lado esquerdo do barco. Vale acrescentar que a orientação desse barco é da direita para a esquerda da ilustração.

Em mais uma aparição e, desta vez a quinta, Dante e Virgílio já estão fora do barco de Flégias, que segue seu caminho olhando em direção aos poetas (florentino e latino), que estão na cidade de Dite. Virgílio, agora, mais uma vez sozinho, com seu braço direito estendido à frente de seu corpo, na direção dos demônios, tenta afastá-los deles. Os demônios, chifrudos e também com asas de morcego, parecem tentar se aproximar deles, como se impedissem que eles ficassem ali. Os demônios têm um rosto enfurecido e olham em direção a Virgílio, entretanto, um deles, para o observador da ilustração, parece olhar para quem o olha, da mesma forma que Flégias também parece olhar, sorrindo, para quem o observa.

Na última aparição de Dante e Virgílio nessa descrição imagística, no canto inferior esquerdo da ilustração, Dante aparece com um semblante aflito, com a cabeça inclinada um pouco para o lado esquerdo e com as mãos na altura de seu queixo. Sua posição parece quase uma súplica. O poeta florentino está de frente para seu guia, com

ambas as mãos estendidas para o chão e com a cabeça baixa, a sua posição na ilustração permite a leitura de que Virgílio esteja pedindo calma a Dante.

A imagem selecionada para a análise das cenas ilustradas do canto Inferno, da

Divina Comédia, no caso a do Canto VIII, evidenciam a descrição perfeita dos versos da obra literária. Podem ser observados ainda, na parte inferior da ilustração, aproximadamente, cinco alçapões. Dentre eles, os que estão abertos estão repletos de almas que queimam com o fogo. É possível ver suas cabeças tentando sair de dentro desses alçapões, com seus rostos demonstrando aflição e dor, assim como os que estão mergulhados no rio. É notável também a presença de um caixão aberto, de onde também sai fogo, tendo almas dentro.

Essa ilustração tem como características o equilíbrio na disposição das formas representadas, que pode ser notado por meio das duas torres, a simetria da imagem e a irregularidade dos personagens, uma vez que estão justapostos. Um detalhe presente nessa ilustração é a claridade das imagens do desenho, não vista nas outras. Não há a presença do exagero, visto que nem toda a imagem está preenchida, mas há a sequencialidade da cena e a atividade dos personagens. É possível notar, nessa ilustração, que a utilização dos tons claro-escuro não foi realizada, tendo em vista que os desenhos só estão traçados, o que, diferentemente das outras imagens, não fornece a percepção de tenebrosidade. O que se pode acrescentar também é o fato de haver a profundidade, porém ela é tão sutil que a imagem parece quase plana.

Abaixo, seguirão os trechos selecionados para o cotejamento entre o poema dantesco e a ilustração, de Botticelli, do canto VIII, do livro Inferno. Em anexo segue a versão completa deste canto. (Anexo 6.1 – Canto VIII)

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Io dico, seguitando, ch’assai prima

che noi fossimo al piè de l’alta torre, li occhi nostri n’andar suso a la cima

per due fiammette che i vedremmo porre, e un’altra da lungi render cenno,

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tanto ch’a pena il poeta l’occhio tòrre. [...]

Corda non pinse mai da sé saetta che sí corresse via per l’aere snella, com’io vidi una nave piccioletta

venir per l’acqua verso noi in quella,

sotto ’l governo d’un sol galeoto,

che gridava: “Or se’ giunta, anima fella!”.

«Flegïàs, Flegïàs, tu gridi a voto», disse lo mio segnore, “a questa volta: piú non ci avrai che sol passando il loto.»

Qual è colui che grande inganno ascolta che li sia fatto, e poi se ne rammarca, fecesi Flegïàs ne l’ira accolta.

Lo duca mi discese ne la barca, e poi mi fece intrare appresso lui; e sol quand’io fui dentro parve carca. [...]

Lo buon maestro disse: «Omai, figliuolo, s’appressa la città c’ha nome Dite, coi gravi cittadin, col grande stuolo».

E io: «Maestro, già le sue meschite là entro certe ne la valle cerno, vermiglie come se di foco uscite

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fossero.» Ed ei mi disse: «Il foco etterno ch’entro l’affoca le dimostra rosse, come tu vedi in questo basso inferno.»

No cotejamento entre o canto VIII e a ilustração de Botticelli referente a ele, pode ser observado que na obra literária. Dante descreve, primeiramente, o que está vendo, que é a alta torre da cidade de Dite. Em seguida, ele nota que duas chamas estavam acesas e que outras duas respondiam, de longe, ao sinal. Botticelli, em sua ilustração, retrata minuciosamente todo o percurso de Dante e Virgílio, apresentando, na segunda aparição deles, nessa cena em que eles veem as torres.

Dante, do verso 13 ao 27, trata de como foi o momento em que avistou o barco de Flégias, o qual se aproximava chamando pelas almas funestas. O barqueiro desceu de seu barco, para embarcar as almas, e, no momento que Dante entrou o barco acusou que lá estava uma alma viva. Botticelli representou essa cena na terceira aparição de Dante e Virgílio, que estavam para entrar no barco. Já na quarta aparição, ele os colocou dentro do barco, no trajeto para a cidade de Dite.

No terceiro trecho selecionado segue dos versos 67 a 75, Dante trata da chegada deles à cidade de Dite. Virgílio o vai alertando sobre o que ele verá até o momento da chegada, uma vez que eles se depararão com alguns demônios e com almas que ardem no fogo eterno. Botticelli apresenta essa cena na quinta aparição de ambos os poetas, já na cidade de Dite. Não é possível captar o sentimento de Dante em relação as almas encontradas em seu percurso ainda obscuro para ele, mas é possível verificar a tentativa de Virgílio de afastar os demônios de perto de Dante.

Pode-se observar, em relação a esse canto VIII, do Inferno, que Botticelli tentou reproduzir a maior parte das descrições feitas no poema dantesco, entretanto, muitas vezes não foi possível. Acredita-se que um dos motivos para a ausência de algumas cenas desse canto pode ter sido pela perfeição sintética, para evitar o acúmulo de muitas informações que, juntas, poderiam dificultar o entendimento do observador.

Sendo assim, os trechos selecionados são os pontualmente retratados na obra de Botticelli, porém, existem outros que abarcam todo o canto, mas que não são tão relevantes para o entendimento da ilustração.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 76-84)