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Questões relativas ao poema dantesco e a sua representação imagética

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 42-50)

1. A DIVINA COMÉDIA : REPERCUSSÃO NOS CAMPOS LITERÁRIO E

1.3. Questões relativas ao poema dantesco e a sua representação imagética

Nesta terceira subseção, será apresentada a retomada da obra dantesca, a Divina Comédia, pelo artista Sandro Botticelli, tentando pontuar a importância da recuperação

deste clássico da literatura italiana, pela ilustração, com o intuito de mostrar a construção simbólica da identidade italiana, por meio dessa retomada.

Conforme indicado anteriormente, dentre uma série de grandes artistas renascentistas, o escolhido para esta investigação foi o artista Sandro Botticelli. Este, por meio do mecenato, retomou a obra dantesca, ilustrando toda a Divina Comédia. A escolha deste mecenas, Lorenzo di Pierfrancesco de’ Medici, pela obra de Dante, obviamente, teve uma fundamentação política e social, desta maneira contribuindo para a ideia da construção simbólica de uma identidade literária italiana, não só por ter suas origens no endereçamento político da família florentina dos Medici. Tal representação tem ainda suas procedências na fomentada discussão entre os intelectuais da Academia Florentina, e os da Accademia della Crusca, surgida em 1570-158023, por exemplo, que inicialmente eram opositores por conta dos discursos eruditos da primeira, em relação aos discursos leves, da segunda24. Pode-se observar ainda, nessas ilustrações fomentadas por um dos Médici, uma espécie de resgate da história e da cultura italiana.

Vale notar que o papel do mecenato, na época do Renascimento, teve grande importância, como afirma ASOR ROSA (1985: 108):

Grande e crescente importanza assume perciò in questo quadro il fenomeno del mecenatismo, cioè la disponibilità del principe a finanziare l’esecuzione o la stampa di opere d’arte o letterarie e a sostentare intorno a sé con donativi e stipendi letterati, pittori, scultori, architetti, scienziati.25

Destarte, o mecenato apresentava pontos negativos, como a tendência à subordinação do artista para com o príncipe, e positivos, como um estímulo a uma maior integração entre cultura e sociedade civil.

23 Sobre esse tema sugere-se a leitura de Grazzini , G. “L’ Accademia della Crusca”, Firenze, 1968. 24

DELI - Dizionario Etimologico della Lingua Italiana, di Manilio Corelazzo e Paolo Zolli, Bolonha, Zanichelli, 1999, p-4-7 e 421.

25“Grande e crescente importância assume, portanto, neste quadro, o fenômeno do mecenato, isto é a disponibilidade do príncipe a financiar a execução ou a impressão de obras de arte ou literárias e a sustentar ao redor de si com donativos e salários letrados, pintores, escultores, arquitetos, cientistas’. (Tradução própria)

A obra de Botticelli foi encomendada por Lorenzo di Pierfrancesco de’ Medici

(1463 – 1503) com um intuito político, uma vez que é possível observar indícios comuns entre a política da época de Lorenzo e a política tratada por Dante em sua obra. Vale acrescentar que Lorenzo tinha planos futuros para a unificação da Península Itálica, contra o Vaticano e Roma. O resultado final da obra foi considerado uma maravilha, haja vista a quantidade de outras pinturas e ilustrações sobre a obra dantesca que não foram consideradas de boa qualidade.

Seus desenhos, feitos entre os anos de 1480 e 1490, foram realizados em cento e duas folhas de pele de ovelha, a saber, de tamanho 47,5 x 32,5 cm. Em um lado da folha, o mais duro, Botticelli redigiu, à mão, cerca de noventa e nove versos, por página, organizados em quatro colunas. O lado mais macio, quer dizer, o outro lado da página, foi meticulosamente preparado para que ele realizasse seus desenhos, utilizando a técnica da punta d’argenteo, cujo método será explicado com detalhes no capítulo 3. Convém acrescentar que esse trabalho ocupou todo o final da carreira de Botticelli e que, a título de curiosidade, as primeiras edições impressas e ilustradas da Divina Comédia foram, a saber: Foligno, em 1472, e posteriormente Veneza, em 1477, Mântua, Nápoles e Milão, em 1478, respectivamente. É válido acrescentar que a edição de 1477 foi publicada em escrita gótica, até então reservada somente aos textos sacros.

Partindo do ponto de como foi estruturada e realizada a obra de Botticelli, é necessário tratar da questão da construção identitária italiana e, segundo RAIMONDI (1998: IX):

L’identità di un popolo si forma da una memoria comune, che deve essere critica per poter guardare lucidamente al passato.26

Essa citação traz à luz o pensamento de que a obra dantesca fornece, de certa forma, indícios dessa identidade, uma vez que ela é sempre retomada, ou seja, está presente na memória comum da população italiana, tornando-se um traço identitário.

26“A identidade de um povo se forma de uma memória comum, que deve ser crítica para poder ver lucidamente o passado”. (Tradução própria)

A literatura, para Raimondi, tem um papel fundamental para a construção identitária de um povo, pois fixa e delimita essa identidade por meio de obras clássicas, de grande importância para o país. No caso da Itália, que, como afirmado anteriormente, ainda não era concebida como um país no período do Renascimento italiano, a literatura tinha como base os três grandes pilares clássicos: Dante Alighieri, Francesco Petrarca e Giovanni Boccaccio. Entretanto, a obra dantesca foi justamente a mais retomada pela pintura, obviamente, como já mencionado também, graças ao incentivo de Boccaccio ao fazer inúmeras cópias da Divina Comédia e de sua importância como obra literária.

É importante indicar que a obra de Dante foi revisitada, três séculos depois, simplesmente por um gosto estético. Ela foi retomada, uma vez que sua referência à parte política é bastante pontual, o que a faz ser uma obra que perpassa o tempo, chegando até os dias de hoje. Portanto, Lorenzo di Pierfrancesco de’ Medici tinha motivos para pedir que a obra fosse realizada, já que, no momento em que a encomendou, ele estava no poder. A respeito da importância da literatura como um sinal identitário, RAIMONDI (1998: XVIII) declara ainda:

La letteratura è il segno di un’identità che fissa e rende eterno, anche nelle sue successive modificazioni, il carattere di un popolo. E l’identità è qualcosa che si possiede e che vive attraverso le epoche.27

Ou seja, com essa declaração, Raimondi deixa transparecer que a literatura possui um valor relevante para a construção dessa identidade, visto que ajuda a construir também o caráter do povo, o qual irá ultrapassar os séculos, caracterizando aquele povo. Em consonância com a citação acima, segundo CHASTEL (2012: 176), observa- se que:

27“A literatura é o sinal de uma identidade que fixa e eterniza, até nas suas sucessivas modificações, o caráter de um povo. E a identidade é algo que se possui e que vive através das épocas”. (Tradução própria)

Na época de Lourenço, a Comédia não se beneficiava apenas de um prestígio excepcional: por meio dela é que o humanismo platônico teve um contato dos mais frutíferos com os mestres da arte clássica.

Chastel, com essa afirmação confirma que a presença da obra dantesca, no Renascimento, era importante e é possível notar também que o poema de Dante já vinha sendo trabalhado durante séculos, e até aqui são três séculos de diferença, de quando a obra foi realizada. Desta forma, de acordo com Raimondi, pode-se verificar que, uma vez que essa obra vem sendo retomada há tantos séculos, ela participava da construção da identidade literária italiana.

2. REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS E ALEGÓRICAS

Este segundo capítulo discute as representações simbólicas e alegóricas presentes na obra de Dante Alighieri, a Divina Comédia. Como já mencionado, este estudo é baseado somente no livro Inferno, da obra dantesca, especificamente nos cantos I, III e VIII. Tais símbolos e alegorias serão analisados posteriormente, com o intuito de apresentá-los tanto na obra literária quanto na obra de Sandro Botticelli.

Esse capítulo apresenta, ainda, um primeiro subcapítulo que trata da questão da plasticidade do poema dantesco e, em um segundo subcapítulo, a respeito da relação que se dá entre o texto poético de Dante e as ilustrações de Botticelli, referentes aos cantos, conforme mencionado acima.

Os símbolos possuem importância fundamental e foram criados pelo homem para resumir, em si, um significado, estando espalhados em todos os lugares. Eles devem ser simples e se referem a uma ideia, a uma atividade comercial, a uma instituição ou partido político, ou ainda a um grupo. É possível perceber que o símbolo foi desenvolvido para sintetizar a informação, quer dizer, seu significado resume-se a uma imagem como, por exemplo, a figura de uma pomba que simboliza a paz. A intenção de se ter um símbolo é que ele seja observado e reconhecido pelo observador.

Os símbolos são bastante utilizados por Dante Alighieri em sua obra a Divina Comédia, sendo assim, eles tem uma grande importância em seu livro, uma vez que estes carregam um significado que é dado pelos observadores como, por exemplo, das ilustrações de Botticelli, sobre a obra dantesca, conseguindo a leitura por meio do olhar. Sobre os símbolos, DONDIS (2007: 21) declara:

Porém, mesmo quando existem como componente principal do modo visual, os símbolos atuam diferentemente da linguagem, e, de fato, por mais compreensível e tentadora que possa ser, a tentativa de encontrar critérios para o alfabetismo visual na estrutura da linguagem simplesmente não funcionará. Mas os símbolos, enquanto força no âmbito do alfabetismo visual, são de importância e viabilidade enormes.

Assim, com a declaração de Dondis, é possível perceber que a importância dos símbolos para o entendimento de uma imagem é fundamental, possuindo uma força de

grande relevância, uma vez que, como dito anteriormente, o símbolo carrega em si uma significação.

Já a alegoria28, também bastante presente na obra dantesca, é um procedimento retórico, muito utilizado na época de Dante, ou seja, no Medioevo. Nela, os conceitos são representados em figuras concretas de animais, pessoas ou coisas que possuem um significado autônomo. Ela foi definida por Aristóteles como uma metáfora continuada, visto que se assemelha à metáfora, porém tal semelhança não significa que alegoria e metáfora tenham o mesmo significado, visto que a alegoria refere-se muito mais a um campo semântico ampliado.

Cabe acrescentar que Botticelli, em suas ilustrações, se prende em desenhar, principalmente, as alegorias descritas na obra dantesca, já que elas carregam em si muito significado para cada canto, pois Dante utilizou-se delas para exprimir a carga semântica sobre um personagem, ou um animal, servindo para o entendimento do leitor do poema dantesco.

Como já mencionado no capítulo 1 desta Dissertação de Mestrado, existe uma complexidade no entendimento desta obra, devido ao sentido que os personagens da obra de Dante assumem no poema. Esses personagens alegóricos sempre se referem a problemas ocorridos na sociedade de Dante, do Duecento, e que, por um motivo pessoal ou não, foram ali colocadas.

Desta maneira, observa-se que o canto I possui uma série de alegorias e símbolos, como, por exemplo, a selva escura que, neste caso, representa, alegoricamente, a vida pecaminosa vivenciada na Terra. O encontro de Dante com as três feras tem por símbolo alegórico as três divisões do inferno, sendo o significado da onça, a luxúria, do leão, a soberba e da loba, a avareza. O sol, que aparece no poema dantesco é o símbolo de Deus e Virgílio representa e simboliza a razão humana, que também estão colocados alegoricamente.

Nota-se também que, somente o fato de Dante ir para o outro mundo, nessa viagem para o inferno, faz com que exista uma alegoria. Cabe salientar o fato de que nem todas as descrições feitas por Dante em seu poema foram representadas nas ilustrações realizadas por Botticelli para os cantos aqui estudados.

No canto III, observa-se que o portal do inferno representa uma transmutação, de um estado para outro, uma vez que é, nesse canto, que Dante torna-se personagem.

Além disso, verifica-se também o ritual de passagem simbolizado pelo barqueiro Caronte.

Já no canto VIII, é possível perceber, novamente, o ritual de passagem, simbolizado por Flégias, o outro barqueiro, e também a presença dos demônios, que simbolizam a perversidade, a maldade etc. Enfim, estes são os principais símbolos e alegorias que são notoriamente utilizados por Dante e que foram transpassados para as ilustrações de Botticelli nos cantos I, III e VIII, do livro Inferno, da Divina Comédia. Deste modo, é possível identificá-los com certa facilidade nas imagens, porém, seus significados nem sempre serão percebidos por um observador da ilustração que não tiver um conhecimento prévio da obra literária.

Portanto, é possível entender a obra dantesca de duas maneiras, a primeira é superficialmente, quando não se conhece nada sobre o período medieval em que Dante viveu e, a segunda é profundamente, quando se conhece a parte sócio, histórica e cultural daquela época, realizando assim uma leitura densa e complexa, conforme a obra de Dante Alighieri realmente exige.

A título de exemplificação, no livro Inferno, observa-se que, em alguns cantos, Dante refere-se à língua e à literatura, por meio dos personagens que inseriu no inferno, como no aparecimento, no canto I, de Virgílio. O poeta latino, escritor da Eneida, de quem Dante era leitor e admirador, tornou-se o guia do poeta florentino. No canto III, Dante coloca o papa Celestino V, uma vez que ele tinha um caráter duvidoso, abdicando de seu cargo, dando lugar ao papa Bonifácio VIII, inimigo de Dante. Já no canto IV, no Limbo, foram colocadas as almas dos virtuosos, os quais não sofrem pena, mas que devem permanecer lá porque não foram batizados e, dentre eles estão Virgílio, Homero, Horácio, Ovídio e Lucano, ou seja, todos escritores importantes da Antiguidade Clássica. No canto X, Dante colocou dentre os heréticos Farinata, político, chefe dos

Ghibelini, facção oposta a de Dante, que o reconheceu por sua língua, o Toscano. Neste mesmo canto, o poeta encontra-se com Guido Cavalcanti, seu grande amigo em vida, também poeta, que o ajudou muito com suas obras. Já no canto XV, ele encontrou-se com Brunetto Latino, o qual, em vida, foi mestre do poeta florentino. Além dele, ele encontrou-se também com Prisciano, um célebre gramático do século VI, e com

Francesco d’Accorso, um contemporâneo de Brunetto, que era um famoso mestre da

escola jurídica de Bolonha. No canto XXXIII, no verso 80, o poeta faz referência a

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 42-50)