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3. O COTEJO POEMA DANTESCO E ILUSTRAÇÕES

3.2. A técnica de Sandro Botticelli da representação do poema dantesco: a

3.2.1. Cena 1 (Canto I)

Com o intuito de facilitar o entendimento de como se dará o processo de análise e do cotejamento, primeiramente será apresentado um pequeno resumo sobre o que trata o canto I, em seguida, será analisada a ilustração de Botticelli, referente a este canto e, somente então, será realizada a comparação entre o canto I e a ilustração.

Desta maneira, resumidamente, o canto I, do livro Inferno, descreve Dante perdido em uma selva escura, na metade de sua vida; ou seja, na época medieval, a expectativa de vida era de, aproximadamente, 70 anos de idade. Isso significa que, naquele momento, ele tinha uns 35 anos, no ano de 130035. Cabe ressaltar que o fato de ele estar perdido nesta selva escura, selvagem, representa a consequência de um desvio de virtude.

Ele entra nessa selva e permanece por lá durante algum tempo até se deparar com uma das três feras. É importante pontuar aqui a relevância desse encontro, que não significa apenas o deparar-se com três feras, a onça, o leão e a loba, mas cada uma, em particular, possui uma carga significativa própria que deve ser levada em conta.

Em primeiro lugar, ele encontra a onça, que é o símbolo da luxúria, depois, ele se defronta com o leão, que tem por significado a soberba e, por último, ele fica, frente a frente, com a loba, símbolo da avareza. Tais feras obstruem o caminho do monte iluminado pelo Sol da Graça divina e correspondem às três grandes visões do Inferno, das quais derivam todos os pecados.

É também neste canto que aparece o seu guia, Virgílio, que o acompanhará por todo o Inferno e o Purgatório, até a chegada ao Paraíso, local onde não pode entrar, uma vez que não foi batizado e, devido a isso, sua penitência é ficar no Limbo. Virgílio, neste caso, tem o papel de representar a Razão humana, guiando Dante por todo esse percurso até a chegada ao Paraíso, onde, a partir daí, quem o guia é Beatrice.

Enfim, depois deste breve resumo sobre o canto I, seguirá abaixo a análise da ilustração de Botticelli e seu cotejamento com o canto a que se refere, ou seja, o canto I. (Anexo 6.2 – Ilustração, Canto I)

Assim, ao olhar imediatamente a ilustração acima, é bastante complexo distinguir as partes descritivas que a compõem. Porém, pouco a pouco, ela torna-se mais plástica e é possível remetê-la facilmente à descrição realizada por Dante em seu canto I, do Inferno.

O que se percebe nesta imagem é a figura de Dante, acompanhado por um homem, Virgílio, seu guia, tanto no inferno quanto no purgatório, em uma selva. É possível verificar que a movimentação de Dante ocorre da parte inferior esquerda da ilustração e essa movimentação possui uma ascendência, ou seja, ele está subindo, em sentido transversal direito, na imagem, e, no meio deste caminho encontra-se com Virgílio. Vale acrescentar que esta movimentação, que parece uma ascendência, na realidade é somente o percurso que eles estão fazendo nesta selva, que na verdade não é uma subida e sim o trajeto percorrido por eles.

A descrição pontual para que o leitor desta ilustração entenda que eles estão em uma selva é, justamente, a quantidade de árvores existentes em todo o entorno pelo qual eles passam. Entretanto, é difícil saber o período do dia em que eles estão, uma vez que a técnica utilizada por Botticelli não possui cores e, portanto, para um indivíduo que não leu a obra dantesca, o fato de Dante estar perdido em uma selva escura, ou seja, à noite, é completamente irrelevante, pois somente olhando para a ilustração, não existem indícios que façam o observador entender este fato, descrito por Dante na obra literária.

Desta maneira, há a presença de uma complexidade, uma vez que essa ilustração é um pouco opaca. É, justamente, a profusão das imagens, juntamente com o contraste entre o claro-escuro, que tornam a percepção mais facilitada.

Em relação à continuidade da descrição da ilustração, as vestimentas utilizadas tanto por Dante como por Virgílio são próprias da época medieval, sendo usadas túnicas longas e uma espécie de gorro, sendo o de Dante, visivelmente, mais flexível, haja vista o caimento da parte posterior dele. Já o de Virgílio se parece mais com um chapéu, uma vez que é mais consistente na forma. Como dito no capítulo 2, as vestimentas são parte importante para a identificação de um momento na história, pois caracterizam um período. É possível acrescentar que, na descrição da subida de ambos ao inferno, nesta ilustração, Virgílio aparece somente uma vez, enquanto Dante aparece quatro vezes.

Na primeira aparição de Dante, na descrição da ilustração, ele está na parte inferior esquerda da imagem, parado e sozinho, perdido na selva. Nesta entrada, ele aparece com a cabeça baixa, com as mãos entrelaçadas, como se estivesse refletindo sobre a sua vida. Seu olhar perdido, na direção no chão, leva a esta percepção.

Em sua segunda aparição, ele está em sentido transversal ascendente para a direita, com um semblante de preocupação, visto que está elevando suas mãos no sentido do rosto e olha fixamente para a primeira fera que lhe aparece, a onça. Esta parte gestual também faz com que se verifique o amedrontamento e o susto causado a ele por parte deste animal que, alegoricamente, simboliza a luxúria.

Na terceira aparição, Dante, na imagem, parece estar mais acima, com um semblante ainda atemorizado e, desta vez, depara-se com a segunda fera, o leão, que simboliza a soberba. Aqui, ele não demonstra tanto medo, porém, seus braços, não estão mais próximos ao rosto, mas sim em direção ao animal, como se quisesse afastá-lo.

Em seguida, aparece, então, a figura de Virgílio, acompanhando Dante que, pela terceira vez, se depara com uma fera, desta vez a loba, que simboliza a avareza. Acompanhado, Dante já não parece sentir tanto medo. Ele olha de perfil para a loba, elevando sua mão direita à cabeça e sua mão esquerda está estendida em direção a Virgílio, como se estivesse pedindo que ele parasse.

Convém notar que as três feras estão com suas bocas abertas, como se fossem atacar a qualquer momento, com suas patas também em posição de ataque, e olham, fixamente, para Dante e não para Virgílio.

Essa ilustração caracteriza-se pela assimetria, uma vez que dentro do campo de visão dela, há a justaposição dos elementos que a compõe. Não é possível dizer que,

portanto, existe um exagero presente nela, já que ele quis representar todo o percurso realizado por Dante e Virgílio, desde a entrada de Dante até depois do encontro dele com as três feras, o que caracteriza a sequencialidade da descrição. Na movimentação dos personagens é possível verificar uma atividade presente. É notório também que Botticelli, nesta ilustração, não atentou muito para a questão da profundidade da imagem.

Para a realização da comparação entre o texto literário de Dante e as ilustrações de Botticelli, seguirão, abaixo, os trechos selecionados, do canto I, do Inferno, para tal comparação. Em anexo segue a versão completa deste canto. (Anexo 6.1 – Canto I)

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Nel mezzo del cammin di nostra vita mi ritrovai per una selva oscura, ché la diritta via era smarrita. [...]

Ed ecco, quasi al cominciar de l’erta,

una lonza leggera e presta molto, che di pel macolato era converta;

e non mi si partia dinanzi al volto, anzi ’mpediva tanto il mio cammino, ch’i’ fui per ritornar piú volte vòlto.

Temp’era dal principio del mattino,

e ’l sol montava ’n sú com quelle stelle ch’eran con lui, quando l’amor divino

mosse di prima quelle cose belle; sí ch’a bene sperar m’era cagione di quella fiera a la gaetta pelle

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l’ora del tempo e la dolce stagione;

ma non sí che paura non mi desse la vista che m’apparve d’un leone.

Questi parea che contra me venisse con la test’alta e con rabbiosa fame, sí che parea che l’aere ne tremesse.

Ed una lupa, che di tutte brame sembiava carca ne la sua magrezza, e molte genti fé già viver grame,

questa mi porse tanto di gravezza con la paura ch’uscia di sua vista, ch’io perdei la speranza de l’altezza.

Deste modo, segue o cotejamento entre os textos, literário e ilustrativo. Sendo assim, os primeiros três versos desse canto tratam da maneira como e quando Dante foi parar nesta selva escura. Como dito anteriormente, Dante, neste momento, tinha, aproximadamente, uns 35 anos de idade. Desta maneira, ele é representado por Botticelli não como um idoso, mas sim como um homem maduro, sozinho, em sua primeira aparição na ilustração, de cabeça baixa, como se estivesse perdido. Um detalhe que não pode ser deixado de lado é que, devido à técnica utilizada por Botticelli, existe uma dificuldade em saber o tempo em que se passa tal situação. Isto se torna evidente ao se perceber que as ilustrações não apresentam cores e tons entre claro e escuro, que permitam a identificação concreta da selva escura, conforme já mencionado antes.

Em seguida, partindo para os versos seguintes, de 31 a 54, Dante, em seu poema, descreve seu encontro com as três feras. Em primeiro lugar, seu encontro foi com uma onça ligeira e voraz, de pelo malhado, que impedia sua passagem, fazendo com que ele

quase desistisse de continuar seu caminho e voltasse. Botticelli retrata, na segunda aparição de Dante, ele de frente para essa onça, descrita pontualmente como o poeta havia descrito no seu poema.

Em seu percurso no mundo dos mortos, Dante descreve o tempo, que já era o início da manhã, quando o amor divino moveu as coisas belas, ou seja, as estrelas estavam desaparecendo e o sol ia raiando, quando se deparou com a segunda fera, o leão. Ele se sentiu ameaçado pelo animal, que vinha em sua direção, com a cabeça erguida e muita fome, chegando a sentir que o ar estremecia. Botticelli retrata esta cena na terceira aparição de Dante na ilustração, mostrando ele de frente para o animal enfurecido. Neste caso, ele descreve, detalhadamente, a cena, porém, como já mencionado, a parte temporal que Dante descreve em seu poema, outra vez não foi levada em conta, uma vez que o dia estava raiando e não se observa este fato na imagem.

Na sequência, o poema dantesco descreve o encontro de Dante com uma loba esfomeada e muito magra, que lhe causou um grande medo e ele chegou a pensar que não conseguiria sair de onde estava. Botticelli, nessa descrição colocou Dante de frente para a loba, entretanto seu semblante, desta vez, não parecia demonstrar tanto medo quanto na descrição do poema.

Na ilustração de Botticelli, observa-se ainda o encontro de Dante com Virgílio, como se eles se encontrassem entre o encontro de Dante com o leão e a loba. Contudo, pela descrição do poema, este fato somente ocorre depois de seu encontro com a loba, portanto, existe não um erro, mas uma escolha própria, por parte do ilustrador, em retratar o encontro deles antes e não depois. É possível que tal escolha seja pelo fato de que se eles se encontrassem depois, a imagem ficaria sem sentido, uma vez que Virgílio é seu guia.

É inegável que o artista, neste caso Botticelli, tentou abarcar o maior número de informações descritivas do texto literário para colocá-las em sua ilustração, entretanto, sabe-se que ele possui a liberdade artística de transpor para sua obra o que considera relevante. É possível notar que ele transpôs para a ilustração as principais alegorias descritas por Dante que, obviamente, são as partes mais importantes, já que possuem em si uma carga significativa grande.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 64-70)