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Capítulo 4 Análise de dados coletados

4.2 Charge eletrônica

4.2.2 Charge eletrônica – análise intertextual

A fortíssima relação com o noticiário impresso / eletrônico faz com que o número de marcas de outros textos nas CEs seja grande, e muitas são marcas explícitas. Em ‘Cotidiano – Enquanto isso na delegacia’ não é diferente. Todavia, para essa parte das análises, vou enfocar a intertextualidade que ocorre por uma via específica: a ironia.

Fairclough (2001) destaca que, além de significar outra coisa em relação a algo que foi dito, a ironia ecoa um outro enunciado e cria uma demanda, para intérpretes, de reconhecer o significado que o/a produtor/a quer realmente utilizar. Formas de atingir o objetivo de compreender podem ser, por exemplo, contrastar o que é dito com o contexto, ou, ainda, ter pressuposto sobre valores / crenças do/a produtor/a. Acrescento também a percepção que se deve ter por conta do gênero em que a ironia é empregada.

Para as CEs, até mesmo por ser um texto humorístico, a captação da ironia por parte da leitora e do leitor é facilitada. Do texto em análise, chamo a atenção para a crítica que se refere à ‘justiça social’, ao ‘SUS’ (Sistema Único de Saúde) e ao ‘financiamento da Caixa’186.

Quando o cidadão que está morando nas ruas procura a delegacia e queixa-se da onda de assassinato que está acontecendo contra pessoas que estão na mesma situação que ele, e afirma, por esta razão, estar com medo, o delegado responde (em outras palavras) que agora o ‘morador de rua’ está com medo igual a todos os brasileiros (“agora você tá que nem todos os brasileiros”). O medo da violência nas ruas, que seria restrito a uma parte da população, teria

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Em um sentido amplo, que não se restringe a texto escrito. 185

No caso do site, por exemplo, há um espaço comercial para propagandas na própria página (área reservada para divulgação comercial de alguma empresa, geralmente com hyperlink que dá acesso ao site que ela possui). 186

atingido a todas as pessoas. A suposta ‘igualdade social’ alcançada seria resultado das ações do governo (poder executivo) na promoção de ‘justiça social’ (“O governo tá fazendo justiça social”). No texto por meio do personagem ‘delegado’, critica-se a violência, critica-se o governo, mas dissimula-se ideologicamente a insegurança constante da ‘vida nas ruas’, mesmo tratando-se do agravamento gerado pelos assassinatos.

A saúde pública entra em cena para ser criticada como ‘espaço de risco de morte’ administrado pelo governo. A interpretação do texto torna evidente que o delegado ironiza a própria situação do indivíduo ao optar pela significação catafórica de ‘eles’ como ‘o governo’. É com a saúde, inclusive, que essas pessoas enfrentam grandes problemas.

O problema de habitação própria no Brasil é grande e uma das medidas adotadas pelo poder executivo ao longo dos últimos anos é o financiamento da casa própria por meio da CEF. O delegado critica os juros altos e o tipo de contrato estabelecido (“o saldo devedor só cresce”), além de ter um vínculo de dívida que delonga a efetivação da posse residencial (“pago há quinze anos”).

As críticas de problemas sociais apresentadas são todas importantes, pois podem trazer à reflexão os temas da segurança, saúde e moradia. No entanto, em relação à problemática em que vivem cidadãos e das cidadãs em situação de rua, a atenção é desfocada. O delegado fala sempre do ponto de vista que seria o do grupo de pessoas que tem renda semelhante a dele. A insegurança para transitar nas ruas, a necessidade (subentendida) de ter um plano de saúde e não depender da propalada limitação do SUS e ainda as dificuldades de aquisição / financiamento da casa própria. Todas são questões sérias e justas, mas não podem comparar- se em gravidade à condição existencial de extrema pobreza. Que discursos sustentam essas relações, essa forma de olhar para si e para outrem?

A ironia traz para o texto da CE outros textos – intertextualidade – e nesse processo observa-se um conjunto de discursos que se entrecruzam, lugar onde a ironia se interpõe entre o que é dito e o que se pretende dizer. Assim, fazem-se presente divisões de condições sociais, de discursos, de interpretações.

4.2.3 Significado lexical

Entre os itens lexicais que poderiam ser analisados nessa CE, selecionei dois que têm inegável relevância para esta pesquisa: ‘indigente’ e ‘morador de rua’. A palavra ‘indigente’ parece ter uma carga negativa mesmo sem contexto. Dizer que alguém é indigente, ou que morreu como indigente, ou que devemos cuidar de / ajudar indigentes, remete a situações indesejáveis, fora do que se espera socialmente, ou situa as pessoas em uma condição que

demanda piedade (seria diferente dizer, por exemplo, “ajudar cidadãs e cidadãos que estão passando por necessidades materiais”). Se pensarmos em um aspecto do discurso capitalista que sustenta que ‘podemos ter sucesso na vida com esforço próprio’, um indigente não teria esforço próprio, por isso encontra-se na situação em que está. Isso favorece uma relação de sinonímia equivocada e nefasta que associa indigente a ‘preguiçoso/a’, ‘vagabundo/a’. É preciso refletir sobre o que seria ‘vagabundo/a’ no recente contexto do mundo do trabalho e da sociabilidade. ‘Vagabundo/a’ muitas vezes é uma designação pejorativa para pessoas que simplesmente não têm um emprego, um trabalho.

Nos usos mais correntes na mídia e registrados também em dicionários, ‘indigente’ é o ser humano que vive em pobreza / miséria extrema, nesse sentido o termo guarda uma forte relação com o termo ‘moradores de rua’. O indivíduo que recebe esses dois rótulos pode ainda vê-los re-significados de maneira mais pejorativa na medida em que é percebido como um incômodo: ao mendigar, ao usar espaços públicos como abrigo, ao deixar a cidade ‘feia’, ao ‘atrapalhar’ o comércio, ao ser testemunha ocular de desvios sociais (ou mesmo crimes) – tornando-se assim passível de eliminação.

Pensemos no grupo nominal ‘morador de rua’. Que outras possibilidades teríamos para identificar as pessoas que estão vivendo esse drama? ‘Pessoas / População em situação de rua’ é uma possibilidade que já é utilizada com alguma frequência e parece bem mais adequada. Outras formas de identificação seriam ‘pessoas / população que estão / está morando nas ruas’ e pode-se alterar ‘morando’ por ‘vivendo’ ou ‘habitando’. Seria mais forte ainda se a palavra ‘pessoas’ fosse substituída por ‘cidadãos’ / ‘cidadãs / ‘brasileiros’ / ‘brasileiras’ / ‘semelhantes’ / ‘desempregados’ / ‘seres humanos’ / ‘homens-mulheres-crianças-gestantes- pais-mães-idosos/as’.

Qual é o problema com a representação ‘morador de rua’?

Primeiro, o termo está utilizando o masculino genérico. Apesar de pesquisas indicarem que a maioria das pessoas nessa condição são homens, há mulheres também e é importante que a linguagem demarque essa realidade. Magalhães (2006, p. 83) diz que

o masculino genérico não é apenas uma questão da língua na medida que a língua é padronizada em um contexto social que envolve uma rede de práticas e uma relação de hierarquia entre os grupos sociais como ainda é o caso da relação entre mulheres e homens.

Segundo, esse termo transmite uma ideia de situação fixa, uma condição existencial permanente e, com esse reforço da linguagem, dificulta as possibilidades de superação do problema social.

A opção pela designação ‘cidadãos e cidadãs em situação de rua’ pretende ser mais que uma simples ‘opção’. Devemos ter sentimentos humanos em relação a outros seres humanos e esses sentimentos precisam ser efetivados em ações – nesse sentido, a piedade tem valor. Contudo, uma ‘prisão à piedade’ e somente isso, em um sistema democrático, pode provocar confusões que contribuam para a manutenção da problemática social. Como? Enfocando somente ‘caridade’, ‘filantropia’ e ‘ajuda humanitária’, encobre-se a necessária discussão e ação que envolve questões ‘de política e de justiça’, de ‘cidadania’ e de ‘direitos humanos’187. Nesse sentido, o movimento social organizado por cidadãos e cidadãs que estão ou estiveram em situação de rua demarca muito claramente a “Luta e Defesa dos Direitos” no próprio nome que identifica o movimento (Movimento Nacional de Luta e de Defesa dos Direitos das Pessoas em Situação de Rua – MNPR).

4.2.4 A representação de agentes sociais

Uma das categorias mais produtivas para analisar essa CE é a ‘representação de agentes sociais’188. Mesmo sem dedicar atenção delongada a aspectos extralinguísticos, não poderia deixar de destacá-los, pois fazem parte do texto da CE, que é um gênero multimodal. O cenário (ver Figura 8), que acompanha o que já foi indicado pelo título da CE, é de uma delegacia. As demais características que serão apresentadas referem-se aos personagens (agentes sociais representados), por isso estão nessa subseção.

FIGURA 14: Na delegacia (parte do Anexo T; Quirino, 2004)

Os estereótipos são fortemente marcados no texto, sendo possível observar como as pessoas em cena representam imagens classificatórias padronizadas de grupos tal como são percebidos por uma determinada coletividade. O delegado (representando delegados/as de um modo geral) sentado de maneira um pouco reclinada em sua cadeira que está virada levemente para o lado, com a gravata e o colarinho da camisa frouxos, chupando pirulito e sem convidar

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Ver Danielle S. Bonella e Diogo Frantz (sem data), e Marina P. S. Castro (2006). 188

As primeiras análises dessa CE foram feitas juntamente com José Ribamar L. Batista Jr. e proporcionaram a apresentação de um trabalho que focalizou a representação de agentes sociais (Bessa e Batista Jr., 2007). Posteriormente, aprofundei as análises avançando com base em outras categorias e apresentei uma outra comunicação (Bessa, 2007c).

o cidadão para se sentar, demonstra um grande descaso com quem se dirigiu à instituição de segurança pública para prestar uma queixa. Como seria se o cidadão fosse um empresário, por exemplo?

O brasileiro que vive nas ruas (que representa o coletivo dos chamados ‘moradores de rua’) é apresentado como alguém que não está com higiene, pois há uma mosca rondando sua cabeça. Além disso, seu cabelo e barba estão por fazer; seus dentes são amarelos e incompletos (os do delegado são brancos e completam a arcada superior – que é visível na CE); a roupa está suja, rasgada (camisa de campanha política) e é de tamanho inadequado.

A representação da voz do delegado não apresenta um tom formal, mas está muito mais próxima dos ‘padrões da cidade’; o cidadão tem sua prosódia assemelhada a habitantes do interior – próximo ao estereótipo de ‘caipira’. A utilização da linguagem verbal também denota diferenças, ao demonstrar maior grau de escolaridade do delegado e ‘marcar’ o cidadão com uma utilização da língua mais distante da chamada ‘norma padrão’189.

Outro aspecto a ser observado no texto é a forma de tratamento utilizada para se comunicar com o outro. O Quadro 16 apresenta uma relação das formas de tratamento na CE:

delegado à cidadão você rapaz amigo amigão cidadão à delegado Dr. delegado dotô senhor ocês190 QUADRO 16: Tratamento entre os agentes sociais

É nítida a representação do tratamento dado à autoridade policial no texto. Além de chamar o delegado de ‘senhor’, demonstrando a formalidade / seriedade da comunicação estabelecida, o cidadão trata aquele servidor público como ‘doutor191’ e ‘doutor delegado’,

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Isso também cria mais um estigma para as pessoas que estão morando nas ruas: ‘não falam o português corretamente’ – dizer isso é um equívoco social e comprovadamente linguístico (Scherre, 2005; Naro e Scherre, 2007; Bagno, 2002, 2003; Cameron, 1995).

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É empregado para falar de ‘responsáveis’ pela segurança pública, o que inclui o delegado e amplia a perspectiva da crítica para uma prática mais ampla.

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‘Doutor’ é um grau acadêmico, um título obtido em Universidade após a conclusão de um curso de Doutorado e empregado para identificar as pessoas, geralmente, em circunstâncias específicas dentro do próprio meio acadêmico. No Brasil, costuma-se empregar indevidamente o título para médicos/as, advogados/as, juízes/as, delegados/as, deputados/as, engenheiros/as e estende-se também para executivos/as ou pessoas que

criando ainda mais um distanciamento entre os dois; entre o indivíduo e a instituição; entre diferentes pólos de uma ‘hierarquia social’. Quando o cidadão utiliza o pronome você, no plural (‘ocês’), não ocorre um desrespeito ou informalidade. Nesse instante, como um recurso regular de uso da linguagem, o cidadão fala das pessoas da instituição de segurança pública, podendo referir-se a delegados/as, policiais e talvez possam enquadrar-se aqui pessoas ligadas ao sistema judiciário.

Por outro lado, a maneira de o delegado tratar o cidadão é informal e chega a simular uma falsa intimidade / proximidade que ascende no decorrer da conversa (você, rapaz, amigo, amigão). Isso, associado à forma relaxada (não tensa) da conversa e à ironia que percorre a CE, escancara o descaso. A diferença na forma de tratamento entre os dois demarca a relação de poder e o ‘lugar social’ que é destinado ao cidadão por conta de sua condição.

É preciso destacar que os agentes sociais representados não são ‘nomeados’, o que remete para um contexto social mais amplo e que envolve os grupos específicos (pessoas em situação de rua e servidores da segurança pública192). A CE apresenta ‘classificações’, o ‘delegado’ e o ‘morador de rua’. Esta é uma auto-classificação, a pessoa se auto-identifica como ‘morador de rua’, reforça a perspectiva de situação fixa (conforme subseção 4.2.3) e acrescenta sua própria caracterização como ‘indigente’.

Um dos graves problemas que brasileiras e brasileiros que têm habitado nas ruas enfrentam é também registrado na CE: a falta dos requisitos sociais de identificação. Parte dessas pessoas perde seus documentos (‘identidade’, ‘certidão de nascimento’, ‘CPF’193), o que é previsível se consideramos pelo menos a falta de moradia. O resultado negativo imediato disso é que a identidade de cidadão (legitimada constitucionalmente / institucionalmente) depende da documentação legal – nos órgãos públicos, por exemplo. Acrescente-se a isso o fato de não possuir um ‘emprego’ nem ‘residência’. O “não possuir” esses atributos sociais e registros dificulta até mesmo o recebimento de assistência governamental.

Pode-se depreender do texto, ainda, que ele representa diferenciações sociais de seus agentes e também de outros citados, como mostra a Figura 15.

tenham muito dinheiro. Por meio desse designativo, o distanciamento e a diferenciação social se robustecem, principalmente relacionados a profissões de acesso restrito, a autoridades institucionais ou mesmo detentores/as de poder financeiro.

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De maneira mais restrita: delegados. 193

FIGURA 15: Diferenciações sociais (parte do Anexo T; Quirino, 2004)

Brevemente, pensando na estratificação social básica, temos um grupo que não possui a necessária renda para sobrevivência, representado pelo ‘indigente’; uma grupo que possui uma renda razoável, representado pelo ‘delegado’; e um grupo que possui uma renda superior à necessária para uma vida razoável, representada na referência a quem é ‘rico’. Nesse momento do texto, práticas materiais da justiça e segurança pública ganham visibilidade negativa, ao registrar que ‘não é possível’ que o Estado só atenda (ou privilegie tanto) a indivíduos mais abastados. Nessa representação, há um adendo quando se percebe a diferença racial dos personagens. A estratificação sócio-histórica brasileira ainda resulta em diferenças sociais para os afrodescendentes em relação aos eurodescendentes. É possível perceber como os discursos que sustentam a situação de ‘moradia nas ruas’ vão se mostrando em práticas materiais, históricas, discursivas, enredadas em crenças e valores.

Ainda é preciso dizer que, nessa CE, os ‘moradores de rua’ estão ‘presentes’ no texto, na fala do delegado, para serem em seguida transformados em ‘ausentes’. Inclui-se ao dizer que ele (o cidadão) está como ‘todos os brasileiros’, trata-o como ‘você’, ‘amigo’, ‘amigão’ para ser representado, no fim, como ‘ninguém’.